Refinamento estético dos detalhes

Crítica da peça Ficção, da Cia Hiato, dirigida por Leonardo Moreira

1 de novembro de 2012 Críticas
Foto: Divulgação.

Ficção teve sua estreia na cidade do Rio durante o Tempo Festival e está em cartaz no Teatro do Oi Futuro do Flamengo. É uma oportunidade de assistir o trabalho da Cia Hiato de São Paulo, dirigida por Leonardo Moreira, que protagoniza uma pesquisa interessada numa dimensão de jogo e abertura da linguagem cênica que, para além de qualquer didatismo ou programas teóricos, se forma numa esfera de atrito entre o mito, a ficção e os poderes do espetáculo como dinamizadores da realidade. Este investimento constrói trabalhos pautados no distanciamento, ou em tomadas de distância para que se possam ver melhor as coisas, sem destituir completamente momentos de imersão e prazer para o espectador. Seus temas se desenvolvem em olhares oblíquos afetados por anomalias tratadas como potências. Assim acontece em Cachorro morto (2008) que performatiza a história de um portador da Síndrome de Asperger, em Escuro (2009) que problematiza a cegueira e a inadequação da linguagem, ou em O jardim (2011) que trabalha com a característica lacunar da memória.

São seis monólogos, ou intervenções, com duração de aproximadamente 55 minutos, que tratam das relações entre nossas construções ficcionais e o que conhecemos e denominamos como o real, desnudando as estratégias de sujeição entre esses âmbitos. Os monólogos são independentes, mas complementares, o que é percebido por meio de detalhes que se repetem, ou que aparecem transformados, esclarecidos, ou mesmo transfigurados em cada mostragem. Sua matéria prima são os procedimentos atoriais que se baseiam em elementos biográficos. Um trabalho com o ponto de referência no ator como autor e no elemento da palavra como veículo do teatral. Embora exista essa centralização, se dá ao mesmo tempo o seu apagamento tensionado por espaços de indeterminação, lacunas que insistem em não serem preenchidas por elementos fixos, mas que imprimem multiplicidades para entendermos como a realidade é um conceito complexo e talvez só possa existir mesmo como ressonância do ficcional.

Assim, a ideia de personagem ganha deslimites que são opostos ao campo finito da ficção em que seu criador pode determinar sua vida do princípio ao fim. Ao mesmo tempo a ideia do biográfico mostra interferências estéticas. Diferente do que acontece com a vida dos homens, que não pode ser percebida como um todo: não há como tê-la imediatamente inteligível. Em nós mesmos somos menos aptos para perceber este todo. Numa obra ficcional, ao contrário, o que se constrói é uma vida com uma trajetória fechada, o que só é possível na criação estética, ou seja, a obra reúne o que a postura ético-cognitiva do autor determina, julga e assegura, num acabamento formal que, por sua vez, gera um todo significante. Em Ficção o personagem se mostra como ator e não se configura primeiramente como um todo, mas por um movimento que inclui o aleatório, as inversões, as máscaras, gestos falsos e inesperados e que dependem das intenções e de apreensões dele mesmo, ou seja, aparece uma “dança” intermitente de atravessamentos entre aparência e verdade.

Este sentido, por exemplo, se mostra na intervenção de Aline Filócomo com sua “pequena enciclopédia de Alines impossíveis”, em que aparece uma espécie de atlas de si mesma, uma montagem de personalidades desejadas. O “impossível” se realiza justamente por sua composição de montagem aproximando recortes biográficos inconciliáveis em um tempo real, colocando lado a lado personalidades que, como em um dispositivo cinematográfico, só podem coexistir pelo falseamento de interrupção da montagem do filme em movimento. É importante ressaltar que é a experiência da história que se faz pelas imagens das diferentes “Alines”, na medida em que as imagens são elas mesmas compostas pela história. Poderíamos pensar no desfile de fotogramas dessas “Alines” como uma emancipação de uma película ainda não realizada, como elemento de uma falta, em semelhança como Giorgio Agamben entende a aproximação de Guy Debord do cinema. Não é por acaso que a atriz estruturou um teste em sua cena, um lugar de desejo do ator que é sempre o lugar daquilo que nos falta.

Uma das qualidades do trabalho é a de criar um problema para encararmos a figura do ator como algum tipo de fetiche, pelo deslocamento entre ator-pessoa e personagem-criação. A cena de Luciana Paes recoloca a questão impressa pelo readymade de Marcel Duchamp na relação objetual-afetiva que estabelece com Frida Kahlo. A atriz revela logo de início que ela mesma seria um objeto deslocado na encenação que só é restituído pelo fracasso de um projeto de cinema. Delineia ainda sua figura em contraponto com a de Paula Picarelli, criando para si um falseamento que a coloca como uma espécie de fantasmagoria, ou uma aparição de si mesma que todo tempo se projeta em Frida Kahlo e vice versa.

Podemos nos perguntar: em que lugar a assinatura engendra seu valor? Voltando ao readymade, parece relevante o fato de que a arte sob a condição de apparition (sua aparição foi por meio de uma fotografia, o objeto mesmo ficou provavelmente perdido no estúdio do fotógrafo Alfred Stieglitz) expressa na relação que o readymade revela, sinaliza o caráter de fetiche do objeto de arte. Sem dúvida, o valor de um objeto oriundo da esfera do cotidiano (dentro de um contexto de arte) ultrapassa em grande medida seu valor utilitário. Isto é análogo às relações que temos com a mercadoria no sistema capitalista, que prioriza o valor de troca em detrimento do valor de uso.

Podemos perceber duas questões: a problematização de uma noção aurática da obra por sua configuração de produto industrial e não artesanal, por outro lado, também figura a potência dos objetos cotidianos. Ao olharmos a Fonte parece que ela “dança” ora mostrando seu caráter comum de mictório, ora mostrando sua face enigmática como objeto de arte. A manifestação aurática de Luciana Paes acontece no corpo como significante da história da pintora mexicana. Seu corpo nu, revela mais fortemente o lugar em que tudo se dá, destacando o palco do teatro e se mostrando mais uma vez como objeto deslocado, inconciliável com o chão, com a plateia, com as paredes. A montagem aqui acontece ainda mais materialmente, ou melhor, expõe o teor de colagem dos espaços que normalmente frequentamos e requer da recepção um pensamento semelhante.

Mas este movimento em direção à opacidade e à desestabilização aurática fica prejudicado em alguns momentos por certas repetições, que aparecem mais como comicidade e menos como elemento reflexivo. A meu ver estas têm a intenção de fazer uma comunicação com a plateia em um jogo mais imediato em que o ator mostra seu domínio da cena, como uma espécie de demonstração da habilidade cômica, apagando o campo da dificuldade e do risco.

A referida cena de Luciana Paes ainda estabelece uma espécie de prólogo para a de Paula Picarelli, introduzindo sensivelmente a questão do fracasso que esta última desenvolve esteticamente. A cena de Paula Picarelli é uma das mais tocantes, no que diz respeito ao que a memória involuntária pode revelar. O involuntário na cena se passa com a recepção, ou melhor, se abre para esta. A atriz inicia com a leitura de uma carta que sua mãe teria recebido a respeito de um convite para que a filha fizesse um teste (lugar de desejo) para um comercial de shampoo, se não me falha a memória. Para nossa surpresa, ela não ganha o papel no dito comercial. Acontece então uma fissura temporal (já aberta pela antiga carta) que, inusitadamente é imposta pelo desmoronamento, pelo desabamento que acompanha o fracasso. Desfaz-se seu corpo, sua voz frágil ganha sentido. Corajoso e belo movimento da atriz que vai corroendo o lugar aurático da ideia de celebridade tão próxima do papel que é conferido aos atores.

A questão da memória ganha ainda um sentido tátil com a presença de parentes dos atores na cena. Soma-se ainda o valor de objeto em deslocamento. Essa combinação cria possibilidades de reinvenção para o teor confessional das cenas, como acontece com a de Thiago Amaral que mostra, com a presença de seu pai (Dilson Amaral), a concretude da motivação psíquica – encenação de sua conciliação com o pai. O ator criou uma dramaturgia que reforça a positividade dos dispositivos do teatro em favor da reflexão, mas forjando todo um lugar de graça e sensações, como quando quer fugir do sentimentalismo e do choro (tema explorado de diferentes modos no espetáculo). Sua investida em aparecer como um coelho, juntamente com o pai, é um forte elemento de deslocamento no conjunto dos trabalhos e mostra um amadurecimento intelectual de sua dramaturgia. Reforça ainda de modo lúdico e, portanto, instigante para nossa reflexão, o amor entre o sexo masculino, seja o de pai para filho, seja o amor homossexual, sensivelmente revelado no relato de sua juventude ou na postura de seu pai ao vestir-lhe com as roupas de coelho.

A força psíquica da cena de Thiago Amaral me foi revelada, de modo incauto, quando assisti Cachorro morto, sem entender exatamente naquele momento o que estava acontecendo. Nesse espetáculo Thiago se divide entre os personagens de pai e criança, mas perpassa mais nitidamente a corporalidade desta última. Porém, em uma cena quase ao final em que se mostra como pai, seu corpo e sua voz se transformam e algo daquilo que costumamos chamar de acontecimento teatral se dá. Não foi possível uma explicação plausível para minha afetação na ocasião. Mas algo de invisível em constelação apareceu na cena. Só em Ficção é que o quebra-cabeça se montou.

O trabalho de Ficção se abre ao desenvolvimento e reverberação de uma série de categorias ou elementos críticos. Talvez seja este mesmo o motivo do estudo crítico: conseguir caber no mundo diante do contato com as obras ou, dito de outro modo, nos fazer construir mundos possíveis, como no caso da investigação policial que descortina a tragédia familiar que nos apresenta a cena de Fernanda Stefanski. Ou ainda a pura reinvenção da vida da atriz Maria Amélia Farah e seu imbricamento de temporalidades e de outras personalidades – conseguir perpassar nossos âmbitos familiares e reformular nossas biografias.

A intervenção criada por Maria Amélia é a que se constitui mais fortemente pelo elemento narrativo em que a palavra nos faz ver as imagens. A graça de seu jogo está sutilmente impressa pelas imagens projetadas que não se casam com a figura da atriz. Promove ainda um sensível movimento de reflexão e de autocrítica no momento em que confessa ela mesma estar expondo seu filho, repetindo o que sua mãe teria feito com ela e que é a questão que sua narrativa expõe. A atriz revela na palavra um incômodo quase imperceptível, que se não fosse verbalizado, talvez passasse sem que nos déssemos conta totalmente do desconforto. Parece mesmo um detalhe e talvez o seja, mas Ficção é um trabalho do detalhe, um refinamento estético das pequenas coisas.

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