Entrega e resistência
Crítica da peça Cuidado com o Cão
O espetáculo Cuidado com o cão, em cartaz na sede da Cia do Atores, será analisado aqui a partir das propostas da Cia de Teatro Íntimo, explicitadas no programa da peça:
“Segunda experiência com dramaturgia própria. Seis monólogos são transformados, viram diálogos e resultam num espetáculo vigoroso. Quando duas mulheres buscam se libertar da opressão masculina, a reação é violenta. A direção persegue o essencial e a entrega dos atores é impressionante. Palco e platéia já são uma coisa só. A fragmentação da cena permite várias leituras da história. A luz vai para as mãos de quem assiste. O espectador é que decide o que vai ser iluminado durante o espetáculo e, assim, constrói o seu próprio enredo. Violência e delicadeza se alternam. A proposta da encenação é mais ousada e a intimidade, muito mais veemente.”
Pela brevidade do texto, é possível perceber que não se trata de uma apresentação aprofundada e a busca pela concisão pode ter contribuído para a imprecisão de algumas afirmativas. Como ninguém assina, é presumível que o texto seja dos próprios integrantes da companhia. O que parece um pouco estranho é que o texto seja um tanto auto-elogioso. De qualquer forma, é um procedimento comum que este tipo de texto seja porta-voz dos sonhos e intenções mais sinceras dos artistas envolvidos e não uma apresentação mais clara e distanciada do que o resultado final se tornou. Com isso, corre-se o risco de gerar, pela leitura do programa, uma série de expectativas no espectador que não necessariamente se cumprem. No caso específico de Cuidado com o cão, o espetáculo pode ser bem mais interessante do que aquele anunciado no texto do programa.
A dramaturgia é um ponto de apoio firme do espetáculo. O procedimento de colocar falas monológicas em conflito produz certa estranheza nos diálogos resultantes e gera, às vezes, uma indefinição para a cena que entra claramente em sintonia com a proposta da encenação. Mas não está claro em que medida esta operação na dramaturgia produz por si só um espetáculo vigoroso. Talvez o vigor esteja mais relacionado à idéia exposta em seguida no texto supracitado, que faz referência à violência. É comum que se faça uma aproximação entre vigor e violência, especialmente no que diz respeito ao trabalho de atores. A peça traz algumas situações de violência e os atores fazem estas cenas usando força física (ou lançando mão de técnicas que aparentam o uso desta força). Seus movimentos são vigorosos, mas isso não cria necessariamente cenas vigorosas. Assistir um ator se atirando no chão ou sendo arrastado por outro ator pode produzir indiferença na platéia na mesma medida em que pode produzir impacto. Vigor físico e vigor estético são duas coisas diferentes.
A frase “A direção persegue o essencial e a entrega dos atores é impressionante” talvez nos dê alguma pista para compreender o que é este vigor que está sendo buscado. A vontade de perseguir algo que se chama “o essencial” é sinal de uma indefinição, uma imprecisão, acerca do que se está perseguindo. Será que existe uma essência na situação de teatro? Essencial não é o que se opõe ao supérfluo e talvez ao acaso? Será que esta idéia, “o essencial”, não entra em contradição com os excessos e as “sujeiras” presentes na estética do espetáculo? Da mesma forma, é possível questionar a “entrega dos atores” e pensar se não é neste ponto que reside a expectativa de vigor. O que é essa entrega e que tipo de reação ela produz?
Antes de mais nada, é preciso pensar de que forma isto se manifesta na realização da peça. Os atores não estão todos no mesmo registro. Como exemplo, aponto a diferença entre João Cunha e Hudson Senna. O primeiro faz uso de uma forma de atuar que me parece mais próxima de determinada noção de entrega: ele fala mais alto, tem um gestual mais expansivo, se aproxima da platéia com mais agressividade, sua e parece se cansar. O outro é praticamente o oposto: projeta a voz sem falar alto, tem uma contenção física e procura uma intimidade com a platéia através da cumplicidade, mais do que pela fisicalidade. Os demais atores transitam entre um e outro registro e embora tenham uma tendência para o registro do primeiro, não chegam a uma intensidade próxima da sua. No trabalho das atrizes – com a exposição dos seus corpos a encontros violentos com os atores – a entrega fica mais aparente. A exacerbação e a valoração disso (“é impressionante”) me fez pensar no avesso: como seria esta peça se, em vez de se deixar levar por essa noção de entrega, os atores trabalhassem com uma idéia de resistência? Não se trata aqui de demandar do espetáculo algo a que ele não se propõe, mas pensar possibilidades para chegar onde ele se propõe a chegar (“um espetáculo vigoroso”) a partir do tensionamento de um procedimento (entrega) que é levado a tal extremo, que traz à tona a necessidade de seu oposto (resistência). Vejo, nas escolhas de Hudson Senna, um apontamento para esta possível resistência. Não digo, com isso, que um ator está “melhor” que outro, mas proponho pensarmos nas questões que a convivência entre diferentes registros pode suscitar. Vejo, nesta coexistência de diferenças, uma liberdade para os atores fazerem suas escolhas sem que sejam homogeneizados pela direção. Isso revela que o diretor não tem aquela vaidade tola de querer imprimir a sua assinatura: a direção dá espaço para o ator como co-criador do espetáculo.
A questão é que a resistência pode ser mais vigorosa que a entrega. Falo de uma resistência a esta noção já conhecida de entrega de ator – aquele que expõe seu corpo, que provoca embates com outros corpos, que se joga no chão. Por mais que se trate de um conjunto de bons atores, parece que cada um está na sua zona de conforto, entregue ao ator que já é. Mas como seria Cuidado com o cão se cada um resistisse ao que já sabe fazer e se entregasse a outras formas de atuação? Há indícios de resistência em alguns momentos, nos quais se insinua um determinado vigor. Como exemplo, posso lembrar a cena em que o personagem de Hudson Senna violenta o corpo da morta. O ator faz a cena com certo distanciamento e a atriz, Fernanda Boechat, coloca uma ambigüidade – tanto no corpo semi-imóvel quanto no olhar semi-esvaziado – que indicam alguma resistência a fazer uma cena intensa e dramática.
Quanto ao palco e a platéia serem uma coisa só, é difícil fazer tal afirmação, pois por mais geograficamente próximas que as cadeiras estejam do espaço da cena, a platéia e a cena são instâncias separadas por definição. Mesmo que a minha cadeira esteja dentro do palco, eu não deixo de ser platéia. É como se esta separação fosse uma coisa ruim que devesse ser suprimida, mas ela é a própria condição de uma situação de teatro. Se palco e platéia são uma coisa só, então aquela apresentação se torna um ritual, uma comunhão, uma assembléia e não um espetáculo. Em Cuidado com o cão, palco e platéia são duas coisas nitidamente separadas e isso não é um problema. Por que, então, indicar que não há separação? Ou, ainda, que “palco e platéia já são uma coisa só”, como se estivéssemos lidando com uma noção evoluída de comunhão artística? Na verdade, isso se aproxima de uma noção romântica de teatro que nem sequer combina com aquela encenação.
Para finalizar, aponto a última incompatibilidade entre o texto do programa e a execução da peça – a promessa de que “o espectador é que decide o que vai ser iluminado durante o espetáculo e, assim, constrói o seu próprio enredo.” Isso realmente não acontece. A iluminação é toda prevista e o enredo também. O release que recebemos diz: “Lanternas distribuídas para a platéia antes do início do espetáculo possibilitam ao espectador total interação com a obra, montando a história a partir do que escolhe iluminar.” Com a lanterna, o espectador pode apenas lançar mais um foco difuso sobre uma cena, mas isso não interfere no espetáculo – nem na montagem da dramaturgia (que segue seu curso independentemente das lanternas), nem na interação que o espectador pode ter com a obra. Não são todos os espectadores que recebem lanternas, o que já desbancaria a proposta, e nem a ação nem a inércia das lanternas provocaram qualquer mudança no que estava sendo feito. Quando alguns espectadores iluminavam cenas no início, parecia que a proposta poderia ser levada adiante. Mas, no decorrer da peça, quando a maior parte das lanternas ficava descansada sobre as pernas, traçando linhas dispersas e aleatórias pelo chão, o espetáculo continuava no mesmo ritmo, com luzes mais fortes que as das lanternas, sem se deixar interferir por aquela indiferença. Para este recurso funcionar, talvez não devesse ter nenhuma outra luz e nada poderia acontecer que não estivesse iluminado pela platéia, ou seja, ele precisaria ser levado ao extremo, ser executado de maneira radical. O resultado disso, no entanto, poderia não trazer nada de interessante e se tornar apenas um jogo sem sentido, como na proposta da performance Luz (-) no programa 3 do festival Resta pouco a dizer.
Isso mostra que este tipo de recurso raramente diz ao que veio, não só porque não funciona de fato, mas porque a relação de um espectador com uma peça ou em qualquer situação de arte não precisa dessas bengalas evidentes. O olhar, o pensamento do espectador, já interfere completamente na recepção, na construção do enredo, no deslocamento do foco. A montagem de Cuidado com o cão não precisaria deste recurso, assim como não precisaria do desejo de juntar palco e platéia e da “entrega” dos atores.
A Cia de Teatro Íntimo apresenta um trabalho autoral com seriedade, cria uma atmosfera que se afasta do convencional e de fato propõe certa intimidade com o público. O discurso do programa da peça, no entanto, parece antigo para aqueles artistas, como se eles estivessem lançando mão de chavões de outra geração para validar o seu trabalho – trabalho este que aponta na direção oposta dessas noções de teatro que já foram saturadas até dar a ver por completo a sua fragilidade.
Vol. I, nº 2, abril de 2008