O meu local de trabalho é um apartamento no Marquês de Pombal

Artigo sobre o espetáculo Velocidade máxima, do diretor português John Romão

24 de junho de 2011 Estudos
Foto: Susana Paiva.

A grafia em português de Portugal foi mantida, conforme o original.

A meio do espectáculo Velocidade máxima, um dos três prostitutos com quem John Romão, o encenador, co-criou o espectáculo dirige-se ao público em tom confessional e interpela-o com uma pergunta intrigante:

“Eu tomo hormonas para o meu corpo ficar mais inchado, mais bonito e atraente. É uma aposta no negócio.(…) O problema é que com estas hormonas fico sem erecção. Para mim é um sacrifício porque quando as tomo não posso trabalhar e não ganho dinheiro e isso deprime-me, mas faz-me valorizar o investimento. Durante este período com hormonas penso em muita coisa mas quase sempre na minha casa e na minha mãe. E eu me pergunto o que é resistência: Insistência ou desistência? Eu não me sinto seguro ao fazer aquilo que faço e sei que não será para sempre. É uma medida de emergência para pagar algumas dívidas. Eu nem sei se quero viver para sempre na Europa (…)”

O que é resistência? Insistência ou desistência? Eis a pergunta que o jovem prostituto deixa no ar, aquilo em que pensa antes de pensar em segurança de vida.

A precariedade no trabalho cultural

Talvez a principal razão de ser tão complicado falar sobre este tema se deva ao facto de o próprio trabalho cultural ser estruturalmente precário: não só é dos que há mais tempo se define pela sua intermitência e pela grande circulação dos seus agentes (períodos sem actividade sucedem-se a períodos de intenso trabalho, pense-se nas rodagens dos filmes ou nos festivais de teatro), como a regra é o projecto (e cada vez existem menos companhias), cuja “real” execução comporta sempre uma grande quantidade de trabalho “invisível” (de planeamento, conceptualização, produção), muitas vezes feito durante períodos “mortos” em que se está oficialmente sem trabalho ou a viver à custa de outros empregos, frequentemente fora da área. Ano após ano, concurso após concurso, artistas “velhos” e “novos” preenchem papéis onde calendarizam possibilidades futuras, para assim obterem financiamento para os seus projectos, nos quais empregam outros artistas. E agendam co-produções e itinerâncias, e tudo se planeia em função de apoios que, caso não venham, colocam em causa toda uma série de vidas pessoais e profissionais. Como seria de esperar, esta extrema insegurança cria desigualdades que potenciam um clima de competição e separação. Ao que se soma, na opinião pública, uma fomentada desconfiança face àqueles que um dia, muito infelizmente, alguém chamou os “subsídio dependentes”. E ao que se soma ainda o alarido sobre as miraculosas potencialidades econômicas das cidades criativas.

Artistas/Não Artistas(1)

Ao aqui se convidar para a conversa sobre a precariedade no trabalho cultural – uma das “coisas” concretas que os artistas, depois deste demorado processo, fazem (neste caso o espectáculo Velocidade máxima, de John Romão), procura-se emprestar-lhe lógicas de argumentação também suas, ou mesmo acrescentar-lhe algo do excesso que estas “coisas” procuram trazer à luz. Velocidade máxima, como se lê no programa do espectáculo,“tem como génese a vídeo-instalação Voracidade máxima dos artistas Dias & Riedweg (…) e pretende abordar, por um lado, as identidades transnacionais, a prostituição masculina e a relação entre sexualidade/economia, e por outro, o papel do artista no mercado da arte”, abordando o que há de comum entre a precariedade de toda a gente e a precariedade dos artistas. O que há de comum não implica uma identidade única, mas sim a partilha de diferenças e especificidades. É claro que a figura do trabalhador artista, neste caso em Portugal, tem características específicas e precisa de ser reconhecida, respeitada, defendida, etc., e que o modo como o Ministério da Cultura, ao longo dos tempos e, agora, na figura da sua Ministra, tem lidado com os artistas demonstra tudo menos respeito (2). Mas também é importante encontrar em simultâneo com estas especificidades (que têm de ser afirmadas – a “comunidade artística” ter reagido colectivamente é, a todos os níveis, relevante) um espaço partilhável que imagine o colectivo antes de o desenhar como corporativo. Um espaço tanto mais importante quanto as questões económicas, sociais e ideológicas que nos ritmam a existência são comuns a artistas e a não artistas, e quanto a fragilidade em lhes dar resposta deriva justamente da aparente desigualdade entre cada um (artista ou não) e cada qual.

De facto, é na suposta diferença dos “artistas” em relação à sociedade que muito do debate sobre a Plataforma das Artes (composta pelas Plataformas do Cinema, Dança, Teatro e Artes Plásticas) se tem jogado, seja para afirmar uma diferença que resultaria do carácter “obscuro” das suas práticas que, na opinião de Pacheco Pereira “constituiriam um dos mundos menos conhecidos e escrutinados da vida pública”, seja para afirmar uma diferença só passível de compreensão mediante mais educação. Como bem se referiu (3), o artigo de José Pacheco Pereira “não é inocente, antes prepara e condiciona a opinião pública, que já muito facilmente considera como desperdício os subsídios concedidos aos artistas” (4). A ênfase nesta diferença deve ter em conta a sua ambivalência. Por um lado, só porque a “comunidade artística” se juntou é que se conseguiu constituir como força colectiva. Por outro, ao instituir-se uma divisão ontológica “artistas/não artistas” cria-se um isolamento em relação à sociedade, que responde com termos como o de “subsídio dependentes”. Como encontrar uma especificidade da actividade artística sem a construir como esfera separada? O que é que define o trabalho do artista e de que maneira é que isso hoje em dia se afasta/aproxima do da “gente vulga” (5) e do “político profissional”?

Paolo Virno, em A gramática da multitude faz da figura do “virtuoso” − de que o paradigma seria o bailarino, o músico, o orador empolgado… (o performer, em suma) – aquele cuja actividade se cumpre em si mesma, sem que dela resulte a produção de um objecto exterior, e cuja actividade exige a presença dos outros − um eficaz objecto de análise das mutações pós-fordistas do trabalho. De acordo com o autor, “com o nascimento da Indústria Cultural, o virtuosismo converte-se em trabalho massificado” porque nesta a “actividade comunicativa, que em si mesma se cumpre, é um elemento central e necessário. O trabalho assemelha-se então cada vez mais a uma “execução virtuosa”. (6)

Foto: Susana Paiva.

Velocidade máxima

O espectáculo de Romão, ao cruzar artistas e prostitutos brasileiros – fazendo-os aos dois apresentarem-se enquanto figuras cuja empregabilidade depende de como se gerem e se vendem em potência, simultaneamente produto e empresário, num investimento quotidiano com consequências radicais ao nível dos corpos e das subjectividades – consegue, de modo muito eficaz, porque afectivo, dar-nos bem conta destas questões.

Velocidade máxima começa por ser um espectáculo muito irritante. Numa sala de paredes velhas, vazia, onde, ao fundo, se destacam três rapazes de inquietantes máscaras de látex e, à esquerda, se pressente um piano, Romão vem à frente com um cheque gigante e expõe-nos em tom quase arrogante a quantidade de dinheiro que teve para fazer o espectáculo, quem financiou e quanto vão ganhar. Refere a sua condição de jovem artista, comenta o conceito de “novo”, e fala-nos da concorrência brutal e de como é difícil para um jovem artista começar:

“Boa noite. O espectáculo Velocidade máxima foi apoiado pela DGArtes no valor de 10 mil euros. O espectáculo é uma co-produção do teatro de La Laboral com o teatro das Astúrias que nos deu 7000 euros (…) Depois deste espectáculo (…) vai ser difícil porque para já o que pode ser considerado de “novo” sofre da sua própria génese. Sofre porque é desconhecido, sofre porque entra num mercado em que há um defasamento brutal entre a oferta e a procura. São mil cães a um osso.”

Terminada esta nota de apresentação, Romão apresenta-nos os três prostitutos, traçando-lhes um retrato tanto mais romântico quanto se aproveita para falar do tema da imigração em Portugal:

“Mas eu tenho imenso orgulho em poder estar aqui esta noite e em poder estar a pagar muito bem a esta pianista e a estes três rapazes que estão aqui e que são prostitutos, são brasileiros, vivem em Lisboa, não têm documentos, estão ilegais e não são actores. Dois são homossexuais, um é heterossexual e nenhum está aqui para foder (…) [Eles] são vendedores ambulantes. São comerciantes do amor masculino. Comerciantes que vêm de longe, de um país para nós exótico onde há favelas e praias paradisíacas, um país distante que os nossos tetra-tetra-tetra avós saquearam e violaram porque nós somos o povo da miscelânea”.

E, num discurso que contém já alguma da ambiguidade que caracterizará o espectáculo todo − a oscilação entre o fascínio com aquilo que os prostitutos trouxeram a Velocidade máxima de “excesso” e a necessidade de com eles/através deles falar da condição do artista novo −, encontra-lhes um paralelo com esta sua condição:

“Eles também estão aqui porque são pessoas que me surpreendem, tenho vontade de estar com eles, tenho vontade de lhes pôr alguma luz em cima e ouvi-los ou então vê-los a mexer com o corpo que costuma apregoar o desejo noutras praças.(…) Mas pronto, isto tudo só para dizer que são tempos difíceis tanto para os emigrantes como para os novos artistas”.

Neste discurso de abertura, Romão aproveita para falar das condições de produção e de distribuição a que os artistas têm de se submeter, criticando duramente a aleatoriedade do poder pessoal dos programadores. Romão usa o trocadilho entre “Programadores” e “Garotos de Programa” para expor o processo de subjectivação do “novo” garoto de programa que tem de aprender a publicitar-se, a comportar-se. Os paralelos com a actividade artística são explícitos. “Os programadores, eles, têm os dias muito mais fáceis (…) Apostam no que pode ser convincente, naquilo que o meio teatral já conhece (…) A maior parte do tempo eles dizem que não gostam daquilo que vêm (…) Os garotos de programa, esses, não discriminam. (…) Ensinam aos mais novos como podem entrar no ramo, que passos devem dar, como fazer publicidade ao seu serviço, como escrever um texto e em que jornal publicá-lo e a que dias da semana, como falar com o cliente ao telefone, como não ser grosseiro, como dar-lhe tranquilidade, dizer que tudo vai correr bem”.

E nisto vemos desenhar- se à nossa frente a figura paradigmática do trabalhador imaterial em geral: disponível, dependente de uma esfera pública, em constante upgrading, apta a uma circulação global: “Eles [os garotos de programa] são os novos navegadores: trabalham por conta própria a mais de 4000 km de casa, usam tecnologias de ponta, trabalham via telemóvel e internet, sabem vender a sua mercadoria como mais ninguém, e como qualquer outro negócio, eles têm o seu website”.

O discurso chega a um clímax em que Romão, dilatando e brincando com o próprio desespero, invoca a força da presença – presença em cena dos jovens brasileiros, presença da sua própria performance virtuosa, presença do performativo e irrepetível do teatro:

“A sério, porra, vá vá, (de joelhos) eu quero que os programadores que estão aqui esta noite nos programem e é já! (…) Nós não valemos uma boa coprodução, que diabo? É que nós não defendemos o nosso trabalho com cafezinhos no Chiado, não, nós defendemos o nosso trabalho aqui (bate com o pé no chão)! Agora. Com estes corpos que vocês compram ou queriam comprar, com estes tipos que valem mil curriculuns, que valem mil artistas”.

Ao que, se se entender esta parte como prólogo, se segue o espectáculo em si. Romão despe as calças e deita-se de rabo aberto virado para o público. Despem todos as calças e colocam-se em posição espalhados pelo espaço. O piano toca uma música triste que contrasta com os suaves movimentos de simulada penetração que todos fazem com os músculos. Um ambiente melancólico instala-se. Aqui e ali os corpos cedem e colapsam.

Foto: Susana Paiva.

Resistência

Velocidade máxima é um espectáculo integralmente feito com o corpo, um corpo que se dá ostensivamente a ver na sua juventude de corpo masculino construído para ser comprado. Mas que ao expor tão abertamente que se vende, mostra que nunca poderá inteiramente ser possuído, e nisto se constrói como forte. Há em Velocidade máxima uma bravura invulgar, uma espécie de “coragem de empréstimo” tomada à condição do jovem prostituto brasileiro para falar da condição do artista novo português, mas que é tão profunda que, ao mesmo tempo que elenca figuras que é necessário interrogar no mundo das artes (artistas “velhos”, “novos” e “emergentes”, programadores, equipamentos, co-produções, projectos, o peso da crítica), nos transmite um retrato afectivo do trabalho imaterial no pós-fordismo. Mas fá-lo mais com os corpos do que com palavras, e não dá respostas. Que perguntam então os corpos em cena? Em Velocidade máxima os corpos semi-nus sabem que estão a ser vistos. E assim, é simultaneamente para nós e para eles próprios que dançam, simulam cenas de sexo, lutam, misturam-se com comida, contraem-se, tentam seduzir. E é também para nós e para eles próprios que colapsam, desfalecem.

Mas é da ambivalência da alternância destes dois registos físicos (insistência ou desistência?) que o espectáculo se mostra tão eficaz. Porque não é nem de uma coisa nem de outra que se trata. É que estes prostitutos não apenas aceitaram performar com Romão, como são muito virtuosos. E vê-se que o espectáculo, não obstante o desencanto que testemunha (acaba com prostitutos e artista a posarem com o número de telefone, qual anúncio erótico) transmite um inexplicável excesso de alegria e de energia.

Notas:

(1) Partes desta secção foram já publicadas na introdução da tradução colectiva de “O governo das desigualdades” de Maurizio Lazzarato, disponível em: http://www.primeiros-sintomas.com/products/o-governo-das-desigualdades1/

(2) Veja-se João Fiadeiro em “Nó cego”: http://www.pisa-papeis.com/?q=node/12223.

(3) Em “O culturalês e o poder da autoclassificação”: http://abrupto.blogspot.com/2010/07/coisas-da-sabado-o-culturales-e-opoder.html.

(4) António Pinto Ribeiro em: http://www.antoniopintoribeiro.com/cms/?o-mundo-decadente-do-dr.-pacheco-pereira,62

(5) Vejam-se aqui algumas das respostas, tendo em conta que a sua diversidade atesta a vivacidade da referida “Comunidade Artística”. De facto, que eu saiba, houve resposta de Bruno Bravo, Abel Neves, António Guerreiro e da própria Plataforma das Artes, respostas estas que muitas vezes se foram respondendo umas às outras e acrescentando pontos.

(6) Paolo Virno, A gramática da multitude (com prefácio de Sylvière Lotringer), Semio(texte), NY.

Ana Bigotte Vieira é dramaturgista, tradutora e investigadora. Faz o Doutoramento em Culturas Contemporâneas na Universidade Nova de Lisboa. Entre 2009 e 2012 é Visiting Scholar no departamento de Performance Studies da NYU-TISCH School of the Arts.

Informações sobre o espetáculo: http://www.zedosbois.org/events/velocidade-maxima/

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores