Para saber ler estrelas

Crítica da peça Cachorro Morto da Cia Hiato dirigida por Leonardo Moreira

30 de agosto de 2012 Críticas
Foto: Diculgação.

O texto foi elaborado durante a Oficina de Crítica ministrada por Dinah Cesare no Projeto Teatro na Contramão do Espaço Cultural Escola SESC.

Cachorro Morto, da Cia. Hiato de São Paulo faz o espectador vislumbrar o mundo por meio dos olhos de um menino portador da síndrome de Aspenger, semelhante ao autismo. A dramaturgia inspirada no livro Nascido num dia azul de Daniel Tammet, aparentemente despretensiosa, se desenrola a partir da morte do cachorro da vizinha. O papel do protagonista, que busca uma resposta sobre o crime, é fragmentado pelos cinco atores. Cada um construiu características individuais peculiares, como ter o talento com os números ou a obssessão pelo estado de Massachusetts, que acabam formando um quadro único da personalidade do menino, que recebe o nome do ator que está interpretando-o no momento.

A dramaturgia, criada pelo também diretor do espetáculo Leonardo Moreira, é a principal ferramenta para conduzir o público a apreciar a vida do modo do autista. Com isso, podemos acompanhar vizinhas interpretadas por mais de uma atriz ao mesmo tempo, com jeitos exacerbados, que fogem do natural, a omissão e a amenização de um desentendimento com policiais, como também a solidificação dramática de seus pais. Para esta visão do menino se tornar ainda mais particular, o personagem se autoproclama criador do espetáculo e não se priva em contar o final quando bem entender e resolver terminar a apresentação a qualquer momento. A cenografia, também de Leonardo Moreira, é feita com referências à relação entre a imaginação do autista e sua ligação com o mundo dito normal.

Uma das possibilidades de apreensão nos é dada pelo protagonista fragmentado que mostra que os nomes das constelações que conhecemos são apenas convenções: basta ligar diferentes estrelas para que o desenho se mostre outro e para que um nome novo surja. Sob essa perspectiva, a peça parece sugerir que, para mergulhar na sensibilidade catalogadora e enciclopédica do autismo, devemos saber ler estrelas. As constelações se replicam na cenografia, elaborada por Moreira, com os números que constituem a projeção visual do cachorro morto, ou nos post-its amarelos e de mau agouro que anunciam a reviravolta na trama. Ou ainda na refração do protagonista em cinco atores, com seus respectivos trejeitos, nomes e particularidades, mostrando as diferentes e possíveis facetas do personagem. As constelações de sentido aparecem ainda na profusão de piadas que recebem o público no início da peça, ou até mesmo nas ervilhas — prato favorito do multifacetado protagonista —, cada qual com sua singular rugosidade. Trata-se, enfim, de uma realidade captada desde os seus ínfimos constituintes até os altos sistemas celestes, através da qual somos guiados pelo olhar perscrutador do autismo, que sabe ler as constelações do cotidiano (seja ele comezinho ou cósmico), sempre apontando os absurdos e peculiaridades que passam despercebidos pela dita normalidade.

Foto: Divulgação.

O mundo compreendido como “o real” aparece na composição dos pais que, em conflito, são apresentados de maneira mais densa e natural, deixando escapar a leveza por onde a peça era guiada. Neste momento, o menino deixa de ser quem move a história para retornar ao lugar de menino indefeso portador da síndrome de Aspenger. É possível apreender um teor crítico-social na encenação, por tratar de um tema muitas vezes esquecido na sociedade contemporânea, mas que ao mesmo tempo está muito presente. Assim como os atores disseram, cada um tem uma “mania” que remete ao autismo, ao mesmo tempo as pessoas estão cada vez mais individualistas e se segregando dos contatos humanos. Uma força da encenação talvez seja mesmo sua delicada despretensão, que acaba construindo uma recepção que possibilita o trânsito por aspectos concretos do que seria nossa sensação do autismo, bem como sua potência em sinalizar o avessamento do mundo nos termos das relações pessoais.

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