Morte de um mundo afetivo

Crítica da peça O jardim, da Cia Hiato, de São Paulo

28 de novembro de 2011 Críticas
O jardim. Foto: Lígia Jardim.

Muito antes das personagens de O jardim citarem O jardim das cerejeiras é possível perceber a conexão direta entre o texto do diretor Leonardo Moreira e a peça de Anton Tchekhov. Assim como os personagens do autor russo, os da montagem da Cia. Hiato, de São Paulo, evidenciam descompassos na comunicação, como se não se enxergassem, não reagissem à escuta, à presença do outro. Dão a impressão de pertencerem a épocas ou a mundos diferentes.

O tempo desponta como protagonista em O jardim. “Como é difícil separar o ontem do hoje”, exclamam, em determinado momento, trazendo à tona o mecanismo de presentificação do passado e a imagem da aristocracia de Tchekhov que evoca períodos mais efervescentes e, de maneira algo voluntária, se comporta com certa passividade em relação aos desdobramentos do presente. O jardim das cerejeiras é o símbolo de um espaço afetivo. Do mesmo modo, o jardim que intitula o texto de Leonardo Moreira, bem como toda a propriedade referida na peça, desponta como geografia impregnada de vivências saudosas.

Em ambos os casos, o valor afetivo ameaça perder terreno diante de uma ordem de mundo mais pragmática. O jardim das cerejeiras, que também simboliza um passado de escravidão (questão mais evidenciada através da outra tradução para o texto – O Cerejal), está prestes a ser leiloado. Os objetos que integram a casa de O jardim perigam ser reavaliados por sua utilidade, de acordo, portanto, com critério menos sentimental. “Por mais impregnado de significados, um tapete é sempre um tapete. Essa utilidade permite que recomece a vida dele num outro contexto. Mas as fotografias não servem para mais nada”, dizem.

Independentemente da necessidade de preservar a casa como espaço concreto (“as coisas da família a gente não joga fora”), o passado não volta. O jardim é, num certo sentido, uma peça sobre a morte: de um tempo, um lugar, uma atmosfera, de relações. Os instantes de felicidade permanecem vivos “apenas” em cada um dos personagens, desestabilizados pelo descompasso entre passado e presente, ainda que essa comparação esteja impregnada de subjetividade. “Quando foi que nós nos tornamos uma cópia do que lembrávamos ser?”, questionam. A família agora pouco se comunica. O pai, símbolo da morte em vida, será enviado a um asilo. As ilusões se tornaram impossíveis de serem sustentadas (“quando foi que eu deixei de ser aquilo que você imaginava que eu fosse?”).

É natural que Leonardo Moreira tenha potencializado a questão da perda ao materializar seu texto em cena. De início, o público é dividido em três agrupamentos e, dependendo de onde estiver disposto, terá acesso a uma das sequências componentes da dramaturgia. Paredes de caixas impedem que cenas desenroladas em outras partes do espaço sejam vistas. Mas os espectadores conseguem, em alguma medida, ouvir o que se diz e os personagens evidenciam descontentamento com aqueles que se encontram em outros gomos, como se as paredes não blindassem os sons conforme o desejado. À medida que a encenação avança, os atores evoluem pelo espaço de modo a permitir que a totalidade do público assista a todas as cenas do espetáculo. Cada vez mais é possível enxergar o que se passa nas demais divisórias espaciais porque as caixas vão sendo retiradas, tornando o palco menos compartimentado. Mesmo assim, a questão da perda permanece. Afinal, como o passado não volta, os atores não têm como fazer cada sequência de cenas de maneira igual a como acabaram de realizar em outro fragmento do espaço. A repetição, portanto, não existe.

Trabalhando a partir de universo temático bastante pessoal, Leonardo Moreira, não por acaso, faz com que os atores usem seus próprios nomes em cena, consciente, contudo, de que a memória, elemento central em O jardim, implica em acréscimos e subtrações em relação a cada fato evocado. Os atores buscam um registro de voz natural, não representado, e quem melhor parece transitar por essa proposta é Paula Picarelli, que não envereda pela opção óbvia de valorizar o poético das falas. Em meio às criativas soluções de O jardim, vale destacar os figurinos de Theodoro Cochrane, especialmente na solução encontrada para as atrizes, que usam vestidos floridos que delineiam o perfil diferenciado de cada personagem.

Daniel Schenker é doutorando da UniRio e crítico de teatro do Jornal do Commercio e da Isto É / Gente.

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