Criação, universidade, viver junto e separado

Conversa com Nina Balbi, diretora de Estufa e integrante do coletivo Karenkaferem

30 de novembro de 2012 Conversas

DINAH CESARE: Estufa faz parte de um projeto do coletivo Karenkaferem. Quais são as características desse coletivo? E, nesta questão, como se materializa a ideia de artista-pesquisador?

NINA BALBI: Acho que a escolha pela nomeação “coletivo” e não “companhia” apresenta um pouco a nossa proposta. O motivo dessa nomeação é que não nos vemos como um grupo homogêneo, no sentido de fruirmos sob as mesmas ânsias de pesquisa nas artes ou empreendermos uma busca por uma linguagem determinada. O kerencaferem responde mais a uma estrutura de rede que se alimenta para sustentar, criativa e financeiramente, qualquer projeto que venha a surgir, de qualquer um dos membros ou parceiros. No sentindo amplo da palavra, vejo que somos um coletivo de produtores culturais. Se um membro do coletivo apresenta um projeto, nos colocamos como realizadores. De acordo com os afetos e disponibilidades, algumas pessoas ingressam em sua pesquisa artística, outras se colocam como realizadoras, no sentido da produção e da articulação. Este formato nos permite transitar entre muitas funções e pensar a ética da produção cultural de forma verticalizada, o que penso, é o principal objetivo do coletivo. Entendemos o coletivo como uma superfície de encontro de individualidades. Cada um de nós tem um vínculo muito próprio com o ofício, além de virmos de diferentes áreas das artes. O que acontece é que, sendo cada um de nós um propositor e um criador, que responde às suas próprias ânsias, nossas obras se ramificam e ganham expressões singulares. Assim, a mesma obra volta ao coletivo sob visões múltiplas, de forma que nos retroalimentamos e potencializamos tanto os encontros quanto as diferenças. É claro que esse convívio íntimo que lida com paixão e criação acaba nos aproximando enquanto artistas e hoje, penso, temos muitas afinidades e terrenos comuns conquistados. Falamos línguas parecidas.

DINAH CESARE: Por que tratar o tema da felicidade juntamente com a ideia de um ecossistema?

NINA BALBI: Porque estamos falando aqui de um ecossistema total, de ecosofia – o corpo vivo que compreende tudo o que há de abstrato criado pelo homem, todos os efeitos de sua prática sobre a natureza e os efeitos da natureza sobre a sua prática e sobre tudo o que nele há de abstrato (os afetos, as ideias, as lógicas). Ou seja, falamos da relação íntima entre todas essas coisas, de um organismo total. Neste organismo total que apresentamos, há um fato invisível que é o ideal, o espetáculo, ou a criação de imagem sobre a realidade. É um elemento imutável da equação que organiza este ecossistema total, um elemento que está sobre ele mas que também é gerado por ele, que o ordena e é ordenado por ele, e é, portanto, tão concreto quanto qualquer outro elemento que dele faz parte. Acho que o ideal é uma variável pessoal, que pode ter muitos formatos. Na Estufa, ele tem o formato de uma experiência agradável ao redor de uma mesa de piquenique. Quando isso falha, ele adota uma simples forma de ânsia por preenchimento físico, e, mais uma vez, quando isso falha, adota a forma de uma identidade, a ideia de quem se quer ser. Então, o objetivo é desenhar, através desta ação cênica, os efeitos deste elemento invisível, tornando-o assim visível. Impulsionados pela busca deste ideal irrealizável, os personagens modificam o espaço e modificam a si mesmos. O ideal, em interação com o que a realidade concreta oferece, também se modifica. Quando não há mais maçãs onde ele possa habitar, ele se transfere para o plástico, quando lá ele se esgota, ele se transfere para a sensação de identidade. Este é o movimento da falta, o movimento existencial que é super explorado na economia capitalista, que se pauta em criar um objeto sonhado atrás de cada objeto real, que nos faz seres frustrados com a realidade e que a toma por ‘coisa insuficiente’, o que nos permite, com facilidade, destruir tudo a nossa volta. Não há como, portanto, desenhar este ecossistema excluindo o lugar do ideal, posto que o ideal é o próprio motor do ecossistema capitalista.

DINAH CESARE: Qual é a relação, no processo de trabalho de Estufa, entre a dramaturgia e a cena?

NINA BALBI: Bem, creio que dramaturgia é a cena. A cena é a única superfície de escrita dramatúrgica que temos. São coisas físicas que a compõem: a tensão do corpo, os ritmos, a forma com que a boca chupa o geloco, a música e a musicalidade, o cheiro, o conflito com o material do piso, as imagens… é nisso que se dá a escrita da peça -no tempo, na tensão, na leitura imagética, enfim. É sobre essa superfície do real-presente que a dramaturgia se dá, sobre a superfície da experiência. Por vezes, um ator pode não tencionar suficientemente o músculo do braço e então a ideia da cena não se realiza. Digo, isso não diz respeito apenas a uma boa execução da cena para seu efeito de emoção, mas é a própria compreensão do que se está tratando que está em jogo. Além disso, foi na cena que a dramaturgia se criou – na junção de qualidades físicas, de jogos de relação. Então foi lá também que ela foi pela primeira vez escrita. Quando quero alterar a dramaturgia, essa alteração deve passar pelo crivo da ação, do que pode ou não ser administrado pelos corpos agentes. Algumas vezes já tentei interferir na dramaturgia me colocando sobre ela, uma alteração que vem da ideia e não da realização. Nunca deu certo, pois o jogo foi abafado. Isso me levou a um longo pensamento sobre relação forma-força na ação dramática. Acho que a parte imagética da peça, por exemplo, é uma camada de especial eloquência. Essas imagens surgiram organicamente do jogo, sendo expressão dele. Quando tento enxertar algo que não pertence ao jogo, esse algo aparece desprovido de sentido. Para alterar a dramaturgia, a trama de ações, eu preciso alterar as balizas de jogo, os focos de atenção e saídas de força. A partir disso uma cena se realiza e, na cena, a partir dela, eu ministro seus movimentos. Portanto eu não vejo outra relação entre a dramaturgia e a cena do que elas sendo de fato a mesma coisa.

DINAH CESARE: Eu gostaria que você falasse um pouco sobre como o trabalho dos atores formou o modo de conhecimento do mundo que Estufa expõe.

NINA BALBI: O elenco criou todos os materiais cênicos. A autoria é dos atores, quase toda. Cada um se colocou pessoalmente no processo, e o processo demandou esse posicionamento e trabalhou sobre e pelo ponto de vista de todos os artistas. Sendo assim, os atores foram artistas pesquisadores de todas as camadas do espetáculo, e puderam assumir isso dentro do trabalho específico do ator. A dramaturgia foi escrita em cena, por todos nós, então são materiais pessoais que estão ali, são proposições íntimas de cada um. As individualidades criativas foram muito respeitadas, de forma que todos os atores puderam trabalhar em sua própria escrita. Isso se deu, em primeiro momento, na criação dos materiais e depois na vivência cronológica deles. Em dado momento, eu coloquei um material atrás do outro, e começamos a viver essa ação total do espetáculo. Foi nessa vivência que os atores começaram a trabalhar o “quem” que estava em jogo para cada um. A partir de “quem”, quais os afetos, o motivo das ações, as memórias. Assim, eles compuseram as qualidades físicas, os subtextos e objetivos e, a partir deste trabalho, eu pude ver florescer a lógica que preenchia a estufa. Então, devo dizer que o que há de humano em Estufa é criação dos atores. Eles colocaram seus corpos a serviço das forças que a dramaturgia dos materiais oferecia, e deixaram com que eles respondessem a estas forças, psicofisicamente. Assim se deu a criação. A partir dos olhos deles, os elementos da cena ganharam significado e, portanto, a ação ganhou significado. Significados, na verdade, pois cada um construiu uma visão sobre o mundo da estufa a partir de seu posicionamento e isso os retroalimentou, dando material para gerarem mais definições sobre si mesmo. Certamente foi por causa desse trabalho, especificamente sobre e dos atores, que conseguimos manifestar na cena pessoas reais, deixando para trás o campo genérico conceitual e esculpindo corpos individuais. Os atores são, portanto, os criadores do mundo de Estufa. Através deles se deu a genealogia desse mundo.

DINAH CESARE: Como foi o trabalho com as referências e a materialização da cena? A meu ver Estufa é um trabalho imagético na fricção de outras artes, você poderia comentar a respeito da minha sensação? Além disso, gostaria de saber algo sobre o trabalho de arte de Eloy Machado.

NINA BALBI: Estufa se revelou um trabalho profundamente imagético sim, mas não havia essa especificidade em sua pesquisa. As imagens apareceram na experiência da cena, e, como estamos num trabalho de dramaturgia cênica, as imagens têm um enorme poder narrativo e muita coisa depende dela. Então a força da imagem estabeleceu o seu lugar, se impôs sobe o trabalho e mostrou ser o caminho dele. Isso foi percebido com o tempo, durante a montagem. E então a ação foi trabalhada para que a imagem surgisse e se destacasse. Tivemos muitas referências, muitas mesmo, das mais variadas. Cada um de nós tinha as suas e sempre compartilhávamos e íamos digerindo isso uns dos outros. Três quadros foram bastante firmes na criação: O Almoço na Relva, A terra da Cocagna e um outro também, que retrata um piquenique mas eu não lembro o nome. Esses quadros não foram referências somente imagéticas, mas traziam todo um conteúdo que nos era interessante. Na verdade, todas as referências seguiam um pouco essa qualidade, eram sempre uma junção de fatores que as fazia persistir. A parceira com Eloy foi excepcional. Havia muita individualidade em nossos trabalhos e isso fazia com que as trocas fossem muito profundas. Digo individualidade, pois ele manteve sempre uma relação com a obra que não dependia de mim. Ele teve um embate pessoal com o que estava sendo criado e isso aparecia para ele em forma de estímulo. E então ele podia retornar ao grupo com outros estímulos. Foi extremamente relevante a presença do Eloy desde o primeiro dia de trabalho, ainda teórico, pois ali criamos também com ele um vínculo quanto ao conceito da obra (e isso é emotivo) e assim pudemos trabalhar juntos e independentes, criativamente, para o mesmo fim. A criação do espaço é um dado sobre esse envolvimento. O espaço é a obra, ele deu o nome a ela, e isso só surgiu por essa íntima relação entre os criadores. O mesmo aconteceu com o figurino, pelo qual os atores se sentiram absolutamente contemplados, pois era óbvio o íntimo diálogo entre a criação daquela vestimenta e a criação dos atores em sala de ensaio. Foi um trabalho íntimo e um envolvimento profundo que faz do Eloy um autor do espetáculo, tanto quanto todas as outras pessoas da equipe.

DINAH CESARE: Como se deu a relação com a orientação acadêmica?

NINA BALBI: A Adriana Schneider, além de me orientar enquanto pesquisadora, proponente de um projeto, abrindo lacunas no meu pensamento e me apresentando bifurcações para que eu escolhesse o caminho, ela também orientou o processo criativo em si, diretamente com a equipe, diretamente na cena. No início, as reuniões se davam entre mim e ela e estavam no plano das ideias, da conceituação. Depois ela frequentou os ensaios e pode acompanhar a manifestação dessas ideias. Ela propunha algumas resoluções cênicas, apontava desenhos já existentes para que fossem conscientes a mim e enxertava dúvidas, muitas dúvidas. Vejo que o papel da orientação nesse processo foi apontar lugares onde eu não ousaria ir sozinha ou não teria a perspicácia de perceber a existência. E foi leve. Foi como “Olha isso aqui. Está vendo? Brinca com isso!”.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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