A radicalidade do processo coletivo

Conversa com Adriana Schneider sobre a formação do Grupo Pedras e seus processos de criação

11 de abril de 2012 Conversas
Restin. Foto: Divulgação.

DINAH CESARE: Quais são as particularidades que envolveram a formação do Pedras?

ADRIANA SCHNEIDER: O Pedras se formou em 2001 a partir de um encontro de atores. Boa parte deles era da Companhia Atores de Laura, eu, o Luiz André, a Georgiana, a Ana Paula e a Helena. A Marina e o Diogo Magalhães trabalhavam com a Christiane Jatahy no Grupo Tal. Nossa intenção era a de dar conta da pesquisa do trabalho do ator, investigar perspectivas distintas. Nós tínhamos muito interesse em oficinas de técnicas do ator. Então, desde sempre, o grupo fez muitas oficinas com outros grupos, como o Moitará para estudar máscaras, com o Enrico Bonavera do Piccolo Teatro de Milão, com o Sotigui Kouyaté, com o Anônimo e as técnicas de palhaçaria, com a Juliana Jardim que tinha uma oficina excelente sobre o bufão e várias oficinas com o Lume. Nós sempre fomos inquietos e queríamos ter estes trabalhos nos Atores de Laura, mas não conseguíamos fazer isto lá por que éramos muito jovens e a criação se pautava por uma estética mais determinada. Mas existia cada vez mais o desejo de, ao invés de estar sempre envolvidos com montagem de espetáculos, poder ir para a sala de ensaio e investigar, experimentar as técnicas e desenvolver alguma coisa a partir destes materiais

DINAH CESARE: Como você entende a relação entre a formação do Pedras e o trabalho desenvolvido nestes dez anos?

ADRIANA SCHNEIDER: Nossa intenção era formar um grupo radicalmente coletivo, que é o que o Pedras é hoje. Radicalmente coletivo no sentido de que não há um centro, não há uma direção geral e as decisões surgem pelos debates e pelas harmonias do convívio em grupo, o que se constitui como o nosso grande aprendizado ao longo de dez anos. O aprendizado de como construir um trabalho radicalmente coletivo, não no sentido dos anos 60 ou 70, mas no sentido de enfrentar que todas as funções no teatro não são hierárquicas, mas são funções respeitadas no processo de construção do espetáculo. A direção é um lugar de função específica na sala, mas não um lugar de hierarquia autoral. Essa ideia levou nossos espetáculos a ter uma cara completamente diferente um do outro, nós não temos propriamente uma linguagem, nós não somos palhaços, não trabalhamos com máscara, não montamos clássicos, mas ao mesmo tempo essas técnicas estão dentro do trabalho. Então são quatro espetáculos muito diferentes, a maneira com a qual cada espetáculo é construído é o que nos dá a identidade.

DINAH CESARE: Uma identidade que não se fixa em um território, mas que percorre lugares.

ADRIANA SCHNEIDER: Perfeito! Não tem um território técnico, uma identidade técnica. Quando olhamos para os quatro espetáculos, pensamos: o Pedras tem dez anos e tem quatro espetáculos. A princípio isso seria pouco para um processo de dez anos, mas é fundamental. Uma coisa importante é que os espetáculos não saem de repertório e o Pedras tem uma grande capacidade de circulação, então o espetáculo estreia e de fato a gente circula muito, já fizemos o Palco Giratório do SESC duas vezes, já fizemos mostras no Estado do Rio, sempre com a inquietude de multiplicar o público que nos assiste. Isso faz o espetáculo ganhar em potência na medida em que está sempre se trabalhando. É um pensamento de muitos diretores, o Meyerhold disse que o espetáculo começa quando estreia.

DINAH CESARE: Esta estrutura de outros palcos, outras plateias, parece ter a ver com o que você falou da configuração e do entendimento do Pedras sobre as funções não hierarquizadas.

ADRIANA SCHNEIDER: Uma estrutura que não provoca fechamentos. E essa coisa de quatro espetáculos em dez anos se relaciona também com o fato de serem resultados de processos longos de ensaios, de pelo menos mais de seis meses. E isso tem a ver com o tipo de construção que a gente estabelece na sala de trabalho que é a ideia de uma criação coletiva, com todo o cuidado que o termo deve ter por que ele está carregado de coisas, mas não vale chegar com uma ideia, nem o ator nem o diretor que está ali à frente daquela função. A coisa é construída mesmo numa investigação contínua de experimentação e de improviso, claro que tem uma quantidade absurda de referências em cada um dos trabalhos, de materiais de filmes, de materiais fotográficos, de materiais textuais.

DINAH CESARE: Como a pluralidade das experiências dos integrantes …

ADRIANA SCHNEIDER: Completamente… O espetáculo é alimentado por todas as pessoas que estão fazendo parte dele. É claro que o diretor tem uma função muito importante e eu sempre tenho isso quando dirijo dentro do Pedras, eu percebo que é como se fosse um barco a vela, tem que ser a vela, e o diretor é a figura que está segurando o leme e que percebe para onde o vento está indo e para onde ele tem que colocar as velas. É preciso ir sabendo se este vento vai levar para algum lugar. Então é um trabalho muito concreto.

DINAH CESARE: Como se dá a escolha da pessoa que vai exercer a função de diretor em cada espetáculo? Eu vi que no Mangiare, por exemplo, tem uma diretora convidada, a Fabianna de Mello e Sousa.

ADRIANA SCHNEIDER: A escolha se dá de algumas maneiras. Pode ser que tenha uma pessoa que esteja a fim de dirigir aquele projeto por que tem uma afinidade com aquilo e acha que pode cumprir um papel interessante nesta função, como foi o meu caso em O muro em que existia uma questão espacial, e o Pedras aprimorou a ideia. Então eu percebo que tenho a condição de enxergar direções em que o vento está soprando. No Reino do mar sem fim isto era óbvio por que surgiu de um projeto de um tempo longo de pesquisa. Em Mangiare o Pedras estava desenvolvendo uma ideia com a comida, uma questão que sempre fez parte do ethos do grupo. Então a gente ficou pensando em quem poderia dirigir o espetáculo. Nós temos vontade de trabalhar com outras pessoas que não pertencem ao coletivo e também de experimentar outros processos. Um dia a Fabianna falou que estava com a ideia de fazer um espetáculo sobre comida e fechamos com ela. No espetáculo tem um namoro do Pedras com as máscaras balinesas, que é algo que a gente desenvolve no grupo. A primeira matriz deste espetáculo foi o resultado da formatura da Helena Stewart na UFRJ.

DINAH CESARE: Com esta multiplicidade é possível pensar em algumas características que sejam mais marcantes?

ADRIANA SCHNEIDER: Sim eu vejo, por exemplo, o trabalho com dramaturgias inéditas que se desenvolvem no trabalho de sala, seja partindo de uma ideia, ou de materiais de pesquisa, como no caso do Reino do mar sem fim, ou de uma imagem, como no caso do Muro, do mote com a comida no Mangiare ou da relação entre poesia e cena, como em Restin que tenta provocar outras formas de escuta poética que sejam diferentes do recital ou do sarau. A dramaturgia sendo criada nos ensaios coloca o diretor em uma função muito interessante de perceber que dramaturgia é cena e poder lidar com essas duas coisas que estão sendo criadas ao mesmo tempo. Outra característica é a investigação do uso do espaço. No Restin a Casa da Rua do Mercado era o espaço que a gente tinha e de fato nós usamos todo o prédio histórico. No Muro tem uma investigação clara, a dramaturgia parte da questão espacial que divide a plateia em dois. No Mangiare se estabelece uma relação de cantina com as mesas compridas e os espectadores que se sentam e jantam durante o espetáculo, é quase como uma dramaturgia-menu e cada cena tem a ver com o jantar. O que é servido também fez parte do processo de criação como uma dramaturgia de cena. O Mar sem fim é o primeiro espetáculo em que se estabelece uma relação de palco italiano, mas que faz o maior sentido por que tem um trabalho com imagem, em que a ideia de espaço vazio se torna fundamental. Então tem a parte frontal que é como a casa do Severino da Cocada, um primeiro momento bem etnográfico e que depois se abre no espaço do mar entendido como pertencimento livre, um espaço não identitário, mas pensando na fantasia.

DINAH CESARE: Aparece um sentido de profundidade.

ADRIANA SCHNEIDER: É, e tem um desenho do chão em degradê muito sutil.

O reino do mar sem fim. Foto: Maria Mazillo.

DINAH CESARE: O fato de o iluminador ser integrante do grupo facilita o trabalho?

ADRIANA SCHNEIDER: Sem dúvida, o Luís André é ator e iluminador e isso é incrível, não é alguém que acompanha o trabalho, ele é o trabalho também. Eu vejo uma coisa radical. Se você olhar a ficha técnica dos espetáculos, na maioria das vezes é isso. No Mar sem fim é diferente, é o primeiro em que chamamos uma galera. O que acontece é que nos processos dos espetáculos que nós fizemos até agora, uma ficha técnica com perfil de mercado teria dificuldade de entrar por que existe um tempo de produção viciado na cena do Rio de Janeiro, então o cenógrafo, por exemplo, sobrevive fazendo vários trabalhos ao mesmo tempo e ele assiste um primeiro ensaio lá atrás, depois assiste no meio para fechar a ideia e vem com a coisa pronta. Em geral é isso. Mas nos nossos processos é um problema, por que o que ele viu lá atrás não é o que ele vai encontrar no meio e assim por diante.

DINAH CESARE: E aí surgem os conflitos.

ADRIANA SCHNEIDER: Sem dúvida, o que é diferente do caos. Eu não tenho medo do caos, eu considero que ele é inerente aos processos colaborativos radicais. O conflito é o lugar de negociação, ainda mais em se tratando de um coletivo em que as diferenças são afirmadas constantemente. E de um modo geral, o profissional de mercado não está educado para perceber processos que são constituídos por pulsões criativas realizadas na própria cena. Ele está acostumado a ter uma ideia, eu tenho tomado horror dessa história de ter ideias. É fácil ter ideias, eu tenho várias, mas a proposta não é essa, é claro que elas surgem, mas precisam estar em um diálogo muito poderoso com o que se está fazendo.

DINAH CESARE: No Mar sem fim existe um diálogo com a tradição popular, o que é diferente de ter uma ideia.

ADRIANA SCHNEIDER: E é um diálogo que tem como princípio um lugar utópico de vivenciar a coisa em si mesmo. A Tatiana Motta Lima foi assistir o espetáculo e falou uma coisa bastante interessante. Ela disse que a gente não idealiza a figura do Severino, ele não é colocado num pedestal, mas ao nosso lado. E o fato de quatro atores fazerem o Severino tem a ver com uma visão científica sobre a etnografia que faz a gente perceber que uma pessoa não é coerente dentro de si. Tem um texto do Bourdieu que eu usei muito na tese, fundamental na história oral, que diz basicamente o seguinte: quando você faz uma entrevista e uma pessoa está falando dela mesma, na verdade ela diz o que você quer ouvir. Quando eu estava conversando com os artistas para fazer minha tese, eu estava interessada em como eles falavam, quais as estratégias que usavam para me convencer. Então para mim as estratégias de negociação eram mais importantes que as informações sobre o Mamulengo, até por que, como foi uma pesquisa de muito tempo, eu acompanho alguns destes artistas por mais de quinze anos, eu pude vê-los em muitas circunstâncias, em espaços políticos distintos que me apontavam as contradições da figura. Resulta em uma figura que pode ser todos os brincantes ali em um certo sentido e, ao mesmo tempo, é uma visão de cada um de nós. Estes diálogos em contradição provocam o estranhamento no espectador no Mar sem fim.

DINAH CESARE: Você está falando de uma cena que se forma em conversa com uma visão antropológica.

ADRIANA SCHNEIDER: E isto foi uma das coisas importantes no fato de eu ter feito o doutorado em antropologia, por que essa disciplina discute muito as ferramentas de pesquisa e problematiza igualmente o pesquisador. Uma coisa que para mim ficou muito clara é a nossa idealização do campo. Em algum momento eu passei a odiar o meu objeto. O Mamulengo é um espetáculo machista, as personagens femininas são curradas pelos bonecos e o público da Zona da Mata ri. Eu pensei: por que eu estou estudando isto? Eu tive que passar pelo ódio para poder depois sair do outro lado do túnel e entender qual era o valor de estar falando do Mamulengo em seus múltiplos sentidos.

DINAH CESARE: Que outros elementos influenciam a brincadeira nos espetáculos?

ADRIANA SCHNEIDER: Existem também mais duas coisas que reverberam em nosso trabalho. Uma é a brincadeira do Boi Cascudo que começou em 1997 e surgiu do encontro de um coletivo grande que reunia gente do Cordão do Boitatá, do Teatro do Anônimo e que começou a estudar a tradição popular pela música e entendeu que não queria reproduzir a coisa, mas que queria viver a coisa. Lá atrás quando a gente era moleque, queríamos ser a coisa, era uma dimensão utópica. Então criamos o Boi, que era o resultado de muitas tradições do Brasil, mas com a diferença no uso de instrumentos cariocas, que eram instrumentos de samba e de surdão para tocar o Bumba Meu Boi do Maranhão. Nesta história construímos um Auto do Boi, com a dimensão utópica daquele momento ingênuo da Commedia dell’arte no sentido de que não havia um texto escrito, mas um improviso. Nós batizávamos o Boi no dia de São João em junho e ficávamos indo toda semana, até outubro ou novembro, no Largo da Carioca ao meio dia, na hora do sol na lata fazendo brinquedo e passando o chapéu. Nós fizemos isso durante muitos anos, depois levamos o Boi para a Cinelândia e outros lugares na rua. Hoje em dia ainda temos o Boi, mas com outra configuração, com os filhos das pessoas. Basicamente batizamos o Boi, fazemos uma folia e sua morte no final. Nós criamos uma espécie de culto próprio, inspirado nas manifestações do Boi, em que a gente experimenta ritos do teatro e as dimensões do popular através de uma vivência. Nós tivemos a oportunidade de viajar com este trabalho no Palco Giratório, justamente em 2001, quando formamos o Pedras. As viagens foram pelo interior de Pernambuco e Ceará, trocando com os grupos de Reisado, de Cavalo-Marinho e de Boi dos lugares, nos colocando como um brinquedo do Rio de Janeiro. Então nós ouvíamos coisas inacreditáveis como, por exemplo, que nós éramos o Boi do Rio. Assim a gente vê como as tradições são inventadas e isso tem a ver com aquilo que eu estudei no meu mestrado e no doutorado a respeito da desconstrução da ideia de uma busca do povo como o representante do autêntico e da origem. Isso é uma invenção romântica e, na verdade, a coisa é mais complexa. Uma ideia que eu discuto em meus trabalhos é que as artes populares não são espontâneas, elas são frutos de uma técnica forjada no que chamamos de tradição, uma técnica de longa duração. O trabalho do pesquisador é mais o de revelar esta técnica e menos o de falar da estética, é perceber como os brincantes entendem a técnica que eles fazem por que, em princípio, se você vai perguntar para um brincante, ele vai falar que é dom, que recebeu de Deus. Mas o pesquisador percebe que existe uma técnica que se encontra por trás de todas as tradições populares. Eu me refiro também ao Kathatkali, ao Topeng, a um sentido maior. E não é à toa que estas tradições do oriente contaminaram o século XX de uma forma potente no teatro.

DINAH CESARE: Nas tradições orientais a técnica é um elemento visível para nós e quando pensamos na cultura brasileira o olhar é mais confuso, muitas vezes não existem elementos suficientes para fazermos distinções.

ADRIANA SCHNEIDER: Mas na verdade é por que o Brasil tem apenas quinhentos anos, é mais novinho e tudo fica mais complexo por que entram também as questões de identidade. O processo de aprendizado de um mestre mamulengueiro é extremamente complexo, eu discuto isso na tese, por exemplo, quando eu falo do trabalho vocal do Zé Divino que diz que para ser um mestre primeiro o cara tem que ter o som estéreo. O meu trabalho é entender o que ele está dizendo com isso e, ao mesmo tempo ele começa a dar uma aula de técnica vocal popular de multiplicar vozes distintas.

DINAH CESARE: Então existe um lugar que mistura o trabalho e o desenvolvimento pessoal.

ADRIANA SCHNEIDER: E isto aparece também no nosso envolvimento com o carnaval, com a revitalização do carnaval de rua na cidade, nós somos fundadores do Cordão do Boitatá, que movimenta agora cerca de dez mil pessoas na Praça XV. O carnaval exemplifica muito bem a ideia do brincar por que você vive e vira outra coisa e no Pedras isso está na construção pessoal e artística.

Informações sobre temporadas no blog do Grupo Pedras: http://grupopedras.com.br/

Dinah Cesare é Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na linha de pesquisa Poéticas Interdisciplinares, é mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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