Nosso moto contínuo pela felicidade

Crítica da peça Estufa, dirigida por Nina Balbi

24 de novembro de 2012 Críticas
Foto: Daniel Zimmermann.

Estufa, uma definição: Lugar fechado dentro do qual se criam artificialmente condições especiais para a realização de determinado fenômeno.

Estufa foi apresentada na Mostra Hífen de pesquisa-cena que aconteceu entre os meses de agosto e setembro no Espaço Cultural Sérgio Porto, em seguida realizou quatro apresentações na Argentina e agora está em curta temporada na Rampa – Lugar de Criação. A Mostra Hífen teve curadoria de Diogo Liberano e Adriana Schneider e seu pressuposto foi o de criar um espaço para exposição e discussão de trabalhos que relacionam a universidade e o processo de criação em artes cênicas. A ideia de hífen tem o caráter de chamar a atenção para as possibilidades de aproximação e distanciamento entre duas instâncias que, de modo geral o senso comum, quando pensa sobre trabalho de arte, costuma ver como inconciliáveis: a criação dos artistas e o pensamento acadêmico. É curioso que quando se tem em mente a ciência, em seus avanços ou em suas tecnologias de ponta, o conhecimento universitário está solidário às práticas.

A fábula dramatúrgica elaborada em conjunto por Nina Balbi, Nina La Croix, Isabella Almenida e Pedro Pedruzzi é um traçado de rastros que necessita de uma recepção-montagem do espectador. Sua matéria é como a repercussão do regime mercadológico em nossos afetos, ou a denúncia de que mercadoria e afetos não se separam. Mas a dramaturgia-montagem aponta para uma crítica do totalizante, da crença no unívoco da estufa e sugere um olhar para seus possíveis deslocamentos. Essa é a região em que a recepção se insere.

A primeira impressão dos atores é que se mostram como estátuas que se diferenciam do ambiente. Essa visão imprime uma sensação que se desdobra ao longo da peça na qual se constrói e se reconstrói um movimento incessante em direção à distração, ao ininterrupto fazer de coisas em busca da felicidade. Estátuas moventes dão a ideia de alguma coisa entre a retenção e o desespero de sair desse estado paralisante. Talvez um modo único de se aliar à fixidez das plantas e ao paradoxo de seu fluxo interno determinado por trocas com o externo. A estufa não é mesmo um ambiente respirável para nós, não é um lugar confortável com sua alta temperatura, com a promoção de germinações e apodrecimentos. As ações vão até um limite e tendem a degenerar. E, para que isso não aconteça, inventam-se outras rapidamente. Busca-se um sentido para elas, mas o infortúnio é que o vazio se apresenta justamente pela determinação de encontrar uma espécie de significado puro nos objetos. O significado aparece como reflexão no jogo entre os atores e que ressignifica o uso que fazemos dos objetos e dos afetos. No jogo, aparecem as inevitáveis hierarquias, as valorações, os gozos com o poder e com a submissão tão presentes na constituição dos regimes em que vivemos.

Os atores-habitantes colocam uma toalha sobre um chão de folhas secas como para um piquenique que é uma estratégia de felicidade seguida por outras. Estabelecem um estar juntos que vai se problematizando. Nesta medida o elenco formado por João Pedro Orban, Julio Castro, Olivia Zisman, Ticiano Diógenes e Tomás Braune se mostra afinado com a proposta e realiza as ações num limite tênue entre a imersão e sua crítica. Neste sentido suas ações são imagéticas. Evidenciam corporalmente as relações entre as pessoas, entre os seres e as inquietações das cidades com seus encontros e dissociações. Suas partituras podem ser vistas como ações psicofísicas que expõem uma precisão, mas que ao mesmo tempo evidenciam uma instância de improviso, dado o inusitado e sua dedicação ao momento presente que investiga as práticas como engrenagens, como mecanismos que fazem viver e deixar morrer as coisas.

As referências pictóricas se mostram como forte fator para a sensação visual em que não se diferem as coisas do espaço. O aspecto de sobredeterminação visual da encenação a partir das experiências com a fruição de pinturas possibilita, ou mesmo impõe de certo modo, uma apreensão que não se estabelece pelo vínculo com a racionalidade, mas por um “estado de consciência”, nos termos de Giulio Argan. A ideia de consciência na fenomenologia sempre está ligada a algo, daí não se distinguir a sensação das coisas, nem o conteúdo de sua forma. A meu ver essa é uma operação que se realiza em Estufa. A plateia se vê colocada dentro do quadro de Manet como os parisienses em férias do Le déjeneur sur l´herbe e, ao mesmo tempo, guarda uma certa distância em que nossas próprias alusões podem ser realizadas. Tais referências pictóricas ainda têm o caráter de se aliar a um momento histórico em que a pintura, mais do que atualizar (representar) o mundo, faz a decifração ou o desvelamento do mundo moderno de então.

O espaço-objeto criado pela direção de arte de Eloy Machado mostra um ambiente que materializa a tensão entre a cultura moderna e a natureza – partes inseparáveis das obras pictóricas impressionistas. Nesta estufa, tudo está morto como num quadro e, por isso mesmo, ela estabelece pontos de fuga para o imaginário. Os figurinos são elementos de um argumento semelhante – alguns parecem anacrônicos ao corpo do ator e ao nosso tempo, como objetos dos arquivos da memória, traços de imagens com as quais nos identificamos e nos distanciamos.

Estufa é um trabalho instigante que mostra qualidade estética e investimento intelectual próprio para questionar nosso tempo, o corpo como função, o utilitarismo de nossas decisões e ainda propõe outras estratégias possíveis.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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