Brecht com clareza exemplar
Crítica da peça Mãe Coragem e seus filhos, de Bertolt Brecht, dirigida por Claus Peymann
O festival Porto Alegre em Cena traz, a cada ano, pelo menos um grande nome do teatro mundial. Encenadores como Eimuntas Nekrosius, Peter Brook, Ariane Mnouchkine, Patrice Chereau e Bob Wilson marcaram presença através de seus espetáculos nas últimas edições do evento. Desta vez, a grande atração foi a montagem do Berliner Ensemble para Mãe Coragem e seus filhos, de Bertolt Brecht, assinada por Claus Peymann.
Essa peça de Brecht integra o repertório do Berliner há décadas. Apesar disso, o frescor se mantém, a julgar pelo resultado da versão de Peymann, que integra os quadros da companhia desde o final da década de 90. A força desse trabalho não reside propriamente numa proposta de operação em relação à peça de Brecht, mas na clareza com que a obra é descortinada diante do público. As três horas de apresentação passam surpreendentemente rápido.
A figura de Anna Fierling, a Mãe Coragem, desponta em primeiro plano. Ela aprendeu a viver e a lucrar com a guerra. Por isto, Anna a deseja e não consegue esconder a preocupação quando a paz é anunciada. A praticidade da personagem não a torna necessariamente mais lúcida, tendo em vista que não antevê a tendência de perder os três filhos em contexto tão adverso.
No início, todos a acompanham na carroça através da qual se movimenta comercializando produtos. Aos poucos, iludida de que detém o controle das situações, ela os perde. Endurece com a guerra, chegando a negociar a libertação de um de seus filhos, Queijinho. Contudo, há uma afetividade que a dureza não anula por completo, a exemplo da determinação em não abandonar Katrin, a filha muda. Algumas sentenças de Brecht, dramaturgo que visava à tomada de consciência do espectador sem necessariamente perder de vista a possibilidade de fruição, ecoam com força: “Culpados são aqueles que provocam a guerra e viram as pessoas pelo avesso”.
O público acompanha a dura jornada de Mãe Coragem e de seus filhos através de cenas divididas por black-outs, dotadas de vida independente, mas interligadas pela continuidade da via-crúcis da protagonista. Brecht condiciona essa travessia de indivíduos às adversidades da guerra, um acontecimento de proporções evidentemente muito maiores do que eles. A guerra não é vista, mas noticiada com força imperante no decorrer de toda a peça. Claus Peymann envolve a plateia no universo da guerra ao irradiar pelo teatro barulhos de tiros e explosões e também o discreto sino da igreja.
A carroça de Mãe Coragem circula por um palco inclinado em formato oval em concepção cenográfica (de Frank Hänig) que evita a espetaculosidade. Os figurinos (de Maria-Elena Amos), com predomínio do preto, são adequadamente gastos, evidenciando marcas de uso. A iluminação oscila entre uma proposital impessoalidade e uma tonalidade crepuscular. Parte considerável do resultado alcançado em Mãe Coragem e seus filhos deve ser creditada ao trabalho de Carmen-Maja Antoni, que torna a personagem-título bastante concreta e crível, valendo destacar dois momentos: o da reação diante da perda de Queijinho e o da expectativa frente a presença do cozinheiro, revelando a preservação de certa dose de vaidade, característica que sua figura camufla durante quase todo o tempo.
Daniel Schenker é doutorando da UniRio e crítico de teatro do Jornal do Commercio e da Isto É / Gente.