Na contramão do distanciamento analítico

Crítica da peça As pontes de Madison

25 de abril de 2010 Críticas
Atores: Denise Del Vechio e Marcos Caruso. Foto: João Caldas

Um texto como As pontes de Madison desponta como legítimo exemplar do que talvez possa ser classificado como teatro de identificação direta. Robert James Walter, autor do romance que deu origem ao filme protagonizado por Clint Eastwood (também diretor) e Meryl Streep e à peça em cartaz no Teatro dos 4 (adaptada por Alexandre Tenório), criou uma história que suscita empatia imediata no leitor/espectador: a da súbita paixão entre Robert Kinkaid, fotógrafo da National Geographic em visita ao Iowa, e Francesca, dona de casa acostumada à rotina de um casamento acomodado. Walter não mobiliza o público “apenas” ao falar sobre o impasse entre um sentido de obrigação em manter a família unida (tendo como exigência a continuidade de um cotidiano pouco estimulante) e a coragem de partir rumo ao desconhecido e ao risco. O poder de conquista do autor se expressa, sobretudo, no momento em que aborda a delicada questão dos irrealizados sonhos de juventude, do degrau entre sonho e realidade.

Robert James Walter destaca este descompasso que reverbera em cada espectador, que, quase instantaneamente, se projeta no palco e passa a dialogar com os personagens, reproduzindo uma relação que, juízos de valor à parte, se aproxima da perpetuada pela novela de televisão. Nesse sentido, As pontes de Madison estimula um vínculo passivo entre público e obra. Os espectadores não parecem se apropriar individualmente do que é apresentado; ao contrário, formam uma unidade que vibra em sintonia. A questão não é nova: Bertolt Brecht defendeu o distanciamento entre ator e personagem com o intuito de impedir que a plateia se relacionasse de maneira alienada com a peça, ou seja, visando a evitar que o espectador aderisse ao espetáculo a ponto de “esquecer-se” de sua condição de espectador e do fato de estar no teatro assistindo a uma encenação.

Atores: Denise Del Vechio e Marcos Caruso. Foto: João Caldas.

A diretora Regina Galdino procura aproximar ao máximo os personagens centrais da plateia. Há um padrão de correção que atravessa a montagem, valorizada pelas interpretações de dois bons atores: Marcos Caruso e Denise Del Vecchio – ele, responsável por um Robert Kinkaid sedutor e conferindo às palavras uma materialidade concreta, e ela, ainda melhor, projetando com sensibilidade as hesitações de Francesca diante de um fascinante mundo novo que se descortina à sua frente. Prosseguindo nessa análise restrita aos méritos e problemas do espetáculo, Alexandre Tenório não conseguiu resolver, durante o processo de adaptação, a quase inexistência de dramaturgia para os personagens dos filhos de Francesca (encarregados de trazer à tona toda a história de amor, até então desconhecida), inconsistentes demais para serem defendidos (tarefa a cargo de Adriana Londoño e Marcos Damigo). Na cenografia, Marco Lima reproduz uma aconchegante cozinha do interior dos Estados Unidos, mas deixa mais indefinidas do que o necessário outras áreas do palco. Seja como for, em que medida cabe analisar As pontes de Madison (ou qualquer outro espetáculo) unicamente a partir de sua eventual competência ou falta de eficiência sem considerar (ou até mesmo priorizar) a relação que a encenação propõe ao espectador?

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