Olhar corrosivo em relação ao teatro nacional

Crítica da peça Árvores abatidas ou para Luís Mello

29 de março de 2012 Críticas

O diretor Marcos Damaceno assina a dramaturgia de Árvores abatidas ou para Luís Mello, espetáculo apresentado dentro da programação do Mambembão 2012. É natural, dado o grau de intervenção no texto do austríaco Thomas Bernhard. Damaceno se serve da obra do autor, que descortina a hipocrisia imperante na aristocracia vienense e questiona a pertinência da perpetuação de um teatro capitaneado por atores ainda reverenciados como monstros sagrados, mas já destituídos de frescor. A montagem da Marcos Damaceno Companhia de Teatro parece ter surgido de um desejo de atualizar a discussão, de modo a suscitar uma reflexão sobre os rumos do fazer teatral.

O autor/diretor preserva a localização da história – centrada no misto de inadequação e revolta da convidada de um jantar realizado em homenagem a um célebre ator –, mas promove uma articulação direta com referências próprias do teatro de Curitiba, cidade onde está estabelecida a sua companhia. Marcos Damaceno aproveita a menção de Thomas Bernhard à figura do incensado ator do teatro nacional para buscar uma referência local, encontrada, como anuncia o título, no ator Luís Mello.

Damaceno orquestra uma brincadeira crítica, talvez um pouco cruel, ao localizar em Luís Mello a figura do “famoso ator do teatro nacional que faz até telenovela”. Afinal, Mello saiu de Curitiba e migrou para São Paulo, onde se tornou ator de ponta no Centro de Pesquisa Teatral (CPT), coordenado por Antunes Filho, grupo no qual realizou trabalhos emblemáticos entre a segunda metade da década de 80 e a primeira da de 90. Depois da montagem de Antunes para Gilgamesh, Luís Mello se desligou do CPT e veio para o Rio de Janeiro fazer televisão, postura polêmica que o tornou alvo de certo patrulhamento.

Em Árvores abatidas, o espectador se depara com mais referências à cena de Curitiba, a exemplo da menção de uma das personagens evocadas no monólogo ao “meu amigo Felipe”. Trata-se, possivelmente, de uma citação ao diretor Felipe Hirsch, que fundou na capital paranaense a Sutil Companhia de Teatro. Marcos Damaceno, que mantém ainda hoje a sua companhia na cidade, parece abordar a tendência dos artistas de se afastarem de Curitiba a partir do instante em que alcançam certo grau de notoriedade. Mas Damaceno não sobrecarrega o texto com uma visão desfavorável no que se refere a essa conduta.

Outras citações esparsas (como ao diretor Gerald Thomas e ao Thèâtre du Soleil, conduzido por Ariane Mnouchkine) soam gratuitas. Felizmente, Marcos Damaceno não reduz a dramaturgia de Árvores abatidas a um acúmulo de referências. Constrói com sensibilidade a personagem desse monólogo, que, isolada no hall de uma casa durante um jantar do qual não deseja participar, revisita acontecimentos determinantes de sua vida, em especial a perda muito recente de uma amiga, ausência que a assombra ao longo da noite.

De qualquer maneira, o grande mérito do espetáculo é da atriz Rosana Stavis, que, por meio de apreciável domínio vocal, externa deboche e revela ressentimento pelo mundo no qual se vê inserida, mesmo que a revelia. Através da voz e de divertida composição física, a atriz materializa com habilidade personagens do jantar, sugeridos ao espectador a partir de desenhos bastante precisos. E, no que diz respeito à personagem que interpreta, dimensiona a melancolia de uma mulher sem perspectivas.

A cenografia de Waldo Leon reconstitui uma elegante ante-sala, espaço onde a personagem destila seu rancor. Em Árvores abatidas, a ação não se passa no que seria o espaço principal (onde estão reunidos todos os demais personagens – invisíveis aos olhos do espectador – para o jantar), e sim numa área periférica, que adquire relevância por abrigar a deslocada personagem desse monólogo.

A personagem se coloca sempre como observadora de um mundo que despreza. Transita do lugar de protagonista, na medida em que revela ao público a sua visão de mundo sem qualquer interferência externa (o som dos convidados logo desaparece), para o de espectadora privilegiada da briga que irrompe durante o jantar, conforme relatado à plateia. Uma briga centrada na discordância em relação ao valor das obras de Henrik Ibsen (o célebre ator está em temporada com O pato selvagem) e August Strindberg – dramaturgos filiados ao realismo, classificação ocasionalmente apressada – e do próprio ator, denunciado em sua vaidade. A iluminação, também de Waldo Leon, ajuda a imprimir uma certa sensação de opressão ao espaço único. O figurino de Maureen Miranda é adequadamente austero.

Daniel Schenker é doutorando da UniRio e crítico de teatro do Jornal do Commercio e da Isto É / Gente.

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