O exasperante som do sofrimento

Crítica da peça Psicose 4h48, de Sarah Kane

18 de agosto de 2010 Críticas
Atriz: Rosana Stavis. Foto: Elenize Dezgeniski

“Depressão é ódio”. Esta conclusão, uma das externadas pela personagem de Psicose 4h48 (última peça da falecida dramaturga Sarah Kane), parece ter, em alguma medida, norteado o trabalho do diretor Marcos Damaceno, no que se refere ao registro de atuação ambicionado para Rosana Stavis. Damaceno procurou fazer com que a atriz buscasse modos de dizer o texto que evidenciassem, em especial, a raiva diante de um sofrimento exasperante em sua constância infinita. Como um ruído que não desaparece, uma interferência que não cessa. Ainda que fique a impressão de que determinados trechos ganhariam com um pouco mais de contenção, a opção é bastante defensável.

Rosana Stavis também realça a raiva em todas as frases em que transita do tom agudo ao grave. O riso constante e frequentemente interrompido amplia a dimensão do sofrimento da personagem. Mesmo quando a expressão da agonia se aproxima perigosamente de uma melodia chorosa, a atriz revela pleno domínio de seus recursos, a julgar pela precisão nas alterações de volume e velocidade da voz e pela densidade que estabelece no longo período de silêncio que marca sua entrada. Na contracena com Stavis, Marcelo Bagnara se vale de uma autoridade em parte postiça nos primeiros momentos. E talvez o ator pudesse abrir mão da ênfase em certas entonações em favor de uma neutralidade maior, a exemplo do bom momento em que profere um relato mecânico do estado da paciente.

A condição da personagem de Psicose 4h48 vem à tona através da proposta estética de uma montagem que confronta o espectador com uma cenografia (não creditada) asséptica, hospitalar – tanto através do linóleo estampado que recobre o palco quanto dos poucos objetos (cadeira de rodas, cadeira branca, pequena mesa). Se na sede da companhia, em Curitiba, o espectador era inserido praticamente dentro desse espaço, no teatro da Caixa Cultural emoldura com um pouco mais de distância.

De qualquer modo, o resultado é impessoal, conforme o desejado, “qualidade” ainda mais realçada por meio da iluminação fria (de Nadja Naira e Fábia Regina) e dos figurinos (de Maureen Miranda), na contramão a qualquer aceno da vaidade (no caso, de Stavis). Na trilha sonora, Vadeco encontra na banda Radiohead o som ruidoso e rascante próprio ao desespero de uma personagem desesperançada (“Sinto que as coisas não podem melhorar. Não consigo ir além da minha solidão, do meu medo, do meu desgosto”), enredada numa sensação de desajuste (“Acha que é possível uma pessoa nascer na época errada, no corpo errado?”) e paralisada diante do confronto com o real, cujo impacto a aprisionou (“Tive uma noite em que tudo me foi revelado”). Uma realidade em relação a qual não tem como escapar, a não ser através da morte, que desponta como alívio, como anestesia.

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