Sonhos de um palhaço

Crítica do espetáculo Circo do só êu, de Ésio Magalhães

30 de agosto de 2011 Críticas
Foto: divulgação.

O espetáculo foi assistido noII Festival de Teatro de Itajaí, SC.

Quando todos os espectadores já estão em seus lugares, um palhaço grita efusivamente da plateia que está ansioso por assistir ao espetáculo que, por sinal, já deveria ter começado. Depois da frustrante informação de que o circo desistiu de vir se apresentar, pois aceitou uma oferta maior de outro produtor, Zabobrim, inconformado, aceita entreter o público. Este é o prólogo do espetáculo Circo do só êu, escrito, dirigido e encenado por Ésio Magalhães.

Uma produção do Barracão de Teatro de Campinas, este espetáculo faz parte do longo trabalho como palhaço de Ésio, que se apresenta para seu respeitável público no II Festival de Teatro de Itajaí com essa paródia do Cirque Du Soleil.

A apresentação acontece em um palco italiano, mas para conseguir ampliar a interatividade necessária ao seu espetáculo, Zabobrim começa por “armar sua barraca”, como diz, envolvendo toda a plateia com uma fita larga, agregando-a em seu espaço cênico. Esse primeiro artifício descaracteriza de imediato a rigidez de uma sala de teatro / auditório e é o momento que o ator tem para reconhecer seu público e iniciar uma relação franca e direta com ele. Aos poucos o ator vai somando uma série de tiques que se repetem ao longo da peça, construindo um personagem coerente. Por mais que excessivamente caricatos em alguns momentos, os trejeitos do palhaço ganham a plateia nos dez minutos iniciais, antes mesmo de seu primeiro número. Essa agilidade com a pilhéria vem de um artifício praticado pelo palhaço que se diferencia do principal caminho da comédia costumeira: ele não é partidário do escárnio.

A tradição do fazer rir, desde a conceituação de Aristóteles que identifica como diferencial humano o fato dele ser o único dentre os animais que possui a habilidade de rir, carrega a teoria fundamental de que toda a animação causada pela zombaria é fruto de uma insinuação de desprezo. Thomas Hobbes já havia assinalado que a função social do riso é reconhecer o diferente e apontá-lo como ridículo até o constrangimento, a fim de educar e corrigir essa disparidade, reinserindo-o novamente na normalidade social regida pelo identitário. Ésio Magalhães explora um lado nada moralizante da comédia, conseguindo produzir uma sensação menos apreensiva da plateia – ela não teme ser ridicularizada pelo palhaço. Essa outra visão do cômico, tal como Henri Bergson define em seu livro O riso, também tem um caráter educativo, contudo, com o efeito de expor a distinção entre o que é vivo (criativo) e o que é simples automatismo na constituição da sociedade. Ressaltando isso, ele espera que o indivíduo fique livre para investir naquilo que aumente sua potência de agir, de criar, de investir em seus sonhos. Para Bergson a identificação da natureza da absurdidade cômica é como aquela presente nos sonhos. Ou seja, se faz com base na distinção entre a lógica da realidade, à qual corresponde o esforço espiritual que ele denominava “bom senso”, e a lógica da imaginação. O esforço do bom senso é de regular, adaptar e modificar os pensamentos de acordo com os objetos que encontra na realidade. Na lógica da imaginação ocorre o inverso: não é o pensamento que busca se adaptar à realidade, mas é esta que é forçada a se moldar segundo aquele. É o que acontece no número de Zabobrim com sua piolha Jupiara que pensa ser uma pulga e quer demonstrar um salto ornamental. Ninguém pode enxergá-la, assim todas as imagens construídas são imaginárias e provenientes do imaginário daquele palhaço. Ou seja, onde ninguém enxerga nada, um indivíduo enxerga um número espetacular. Eis o absurdo cômico que segue a mesma lógica dos sonhos.

Outro elemento explorado nesse circo, que depende da reação rápida do ator diante das interações, é a composição de caricaturas. Elemento seminal do humor, a caricatura não se resume ao exagero aleatório. Ésio constrói caricaturas com base nas reações do público, alargando o potencial dessa troca. A análise da caricatura, tal como é proposta por ele, passa por uma consideração do que é uma fisionomia cômica (entenda-se, de toda expressividade cômica). Para caracterizá-la, podemos voltar, ainda com Bergson, à oposição entre a vida e o automatismo. O filósofo diz ser a fisionomia cômica uma ideia de ações simples e mecânicas. Dado que nenhuma fisionomia (ou ação) é perfeitamente harmônica, qualquer rosto guarda o esboço, a insinuação de uma possível deformação. O bom caricaturista percebe essa “revolta da matéria” por sob as “harmonias superficiais da forma”. O palhaço não inventa nada, apenas continua um movimento natural. A caricatura pode ser vista como a arte do realce de esboços desarmônicos prefigurados na natureza fisionômica. O exagero não é um fim, mas sim um meio de indicar as deformações.

Por fim, a premissa de comicidade vai sendo alcançada quanto mais se imprime o automatismo, a mecanicidade, a rigidez à manifestação de espontaneidade do comportamento humano. Essa é uma leitura possível para entender porque os repetidos tombos ficam cada vez mais engraçados à medida que são repetidos; até que numa outra tentativa o palhaço não cai e olha para plateia como quem diz: “peguei vocês, acharam que eu ia cair de novo, né?” Assim, ele põe às claras o dispositivo simples que tem sua graça por expor um lado mecânico do homem, como se algo vivo pudesse ser produzido industrialmente.

Humberto Giancristofaro é escritor. Formado em Filosofia pela UFRJ e Université Paris VIII, atualmente mestrando em Filosofia na UFRJ, perquisador das teorias francesas de Estética contemporânea.

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