Narrativa e intensidade dos afetos

Crítica da peça Música para cortar os pulsos, de Rafael Gomes

29 de março de 2012 Críticas

O espetáculo Música para cortar os pulsos foi apresentado à plateia carioca, no mês de fevereiro, no Espaço SESC, em Copacabana. Depois de viajar por algumas capitais brasileiras, o grupo Empório de Teatro Sortido retorna ao mesmo bairro, no Teatro Gláucio Gill, no mês de abril, em mais um período de temporada.

A montagem de Rafael Gomes, que também é autor do texto, permite que o espectador consiga detectar, no fluxo contínuo das dez cenas que estruturam a narrativa, aspectos de um estilo de escrita peculiar. A fábula de Felipe, Isabela e Ricardo é contada em blocos intercalados pelos atores Fábio Lucindo, Mayara Constantino e Victor Mendes. Na trama, esses três amigos inseparáveis se deparam com fatos e ocorrências no âmbito amoroso que vão afetar o convívio e desequilibrar (ou reforçar) os laços de amizade que vinham sustentando até aquele instante. Os pressupostos da linguagem se destacam como um quarto protagonista da trama, quando as várias combinações, produzidas pelos signos, se reinventam na cena. Os elementos alusivos e os jogos de metáforas não são escamoteados na estrutura dramatúrgica. Eles se tornam perceptíveis na carpintaria do espetáculo, menos pelo intenso volume de texto que os atores proferem, em comunicação direta com o público, mas, principalmente, pela maneira como as situações ficcionais são pensadas, elaboradas e transformadas substancialmente em verbo, sons, imagens e sentimentos.

O diálogo direto entre os jovens, de fato, não existe. Os três adentram pelo espaço cênico e se colocam em estrita frontalidade diante da plateia. Desse instante em diante, o que vemos são camadas de palavras sendo ditas, detecções de diferentes escalas e tonalidades que vão ganhando corpo e moldando as particularidades subjetivas daqueles que narram. Os discursos de cada personagem são impregnados por modos de contar que caracterizam, artificialmente, estados de emoção previamente identificados pelo público. Por exemplo, as situações narradas por Felipe (Fábio Lucindo) estão impregnadas de comicidade em tentativas frustradas, às de Isabela (Mayara Constantino), de descrença e esperança e às de Ricardo (Victor Mendes), de possibilidades e expectativas.

Podemos captar também, na esfera da produção de enunciados, alusões possíveis, resquícios de citações, passagens de temas e assuntos outros que fazem referência a outras áreas do conhecimento, que podem passar despercebidos pelo espectador menos atento. Esse elemento põe em relevo a poética do autor. Isso se dá em instantes muito breves e quase imperceptíveis, como feitas à psicanálise e a seu protagonista maior, Freud, como também em instantes em que o texto se demora mais, nas menções de trechos e personagens da literatura ocidental. A personagem de Mayara Constantino, por exemplo, associa o estado de espírito de sua Isabela à figura de Rosalinda, a primeira paixão na vida de Romeu, na peça de Shakespeare, mas que fora relegada ao ostracismo, negligenciada por seu criador, esquecida facilmente por todos, ainda no início do primeiro ato. Rosalinda não tem sequer vida própria em cena, ela se resume apenas a uma citação. Foi criada para não ser lembrada.

Fábio, Mayara e Victor procuram manifestar os anseios psicológicos dos personagens em gestualidade provocada pelo incômodo das paixões mal resolvidas. Esse sentimento de vazio que a falta do outro provoca é transformado em ações físicas por meio de marcações objetivas, elaborados em conjunto pelo elenco e pela direção. Os atores se movimentam para instaurar zonas espaciais diversas a partir do deslocamento sucessivo dos praticáveis que ocupam a cena e que funcionam como suporte para que os três possam contar suas histórias ao público. Esse fluxo contínuo de montar, remontar, recolocar e ressignificar o dispositivo cênico sugere, na dinâmica dos atos, a possibilidade metafórica de preencher campos em aberto, de tentar ocupar territórios devastados por emoções dilaceradas. Já o registro vocal dos atores constitui, na atmosfera da cena, um fator que os aproxima ainda mais da identidade ficcional dos personagens, como se o espaço auditivo do espectador fundisse as idades dos atuantes e de suas criações cênicas. Tal efeito dá a impressão de que o conteúdo estético dos enunciados equivale à experiência pessoal de um depoimento, vivido pelos atores na vida real.

O elenco veste figurino pensado por André Cerruti. O tênis, a calça jeans e a camisa cotidiana, definem uma certa atitude dos personagens, mostram quem eles são e em que período histórico estão inseridos. Já a cenografia de André Cortez, com azulejos brancos ao fundo e utilizados pelos atores para demarcar a divisão entre as cenas, é alusiva à prática juvenil de utilizar as paredes dos banheiros, e outros compartimentos do ambiente escolar, como campo informal de escrever recados e delimitar territórios de grupos e gangues que por ali passaram. À medida que a narrativa se desenvolve e os espaços do fundo branco vão sendo preenchidos, pela escrita em pillot, os riscos e borrões marcados compõem pistas que denotam e exteriorizam o quadro sentimental dos personagens. Já os microfones que ficam dispostos no proscênio enganam o espectador quanto ao uso banal do objeto. Eles não são usados como instrumento de ampliação vocal. Funcionam como pontos luminosos para indicar aquele que fala, imprimindo certa dinâmica no jogo de trocas verbais entre os emissores e a plateia.

Música para cortar os pulsos tem na encenação um forte apelo ao público jovem, mas não se restringe somente a esse nicho de público. Há uma inteligência na construção das alusões e das situações ficcionais que escapa das armadilhas de uma visão de mundo redutora e estereotipada da crise juvenil.

Pedro Allonso é ator e bacharel em Artes Cênicas, habilitação em Teoria do Teatro pela UNIRIO.

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