O lúdico no teatro

Crítica da peça A mulher que ri, que integrou a programação do FESTLIP

31 de agosto de 2010 Críticas
Foto: divulgação

Ao entrar no Espaço Arena do Sesc Copacabana, a primeira sensação captada pelos sentidos é a de um universo lúdico que seria ali instalado pelo jogo da encenação. O cenário é uma caixa de vidro (onde os personagens atuam) que contém três cadeiras simples e antigas, retratos envelhecidos, chão de taco de madeira amarelado pelo tempo, uma parede forrada por um tecido de pelúcia ocre intenso e peculiar, uma luz baixa e também amarelada. A primeira sensação é de uma peça onde o que se contaria seria uma história de gente simples, que habita o interior, o vilarejo, a zona rural. A cor que ressalta aos olhos durante a encenação toda é de uma espécie de sépia, aquele matiz que remete às fotos de antepassados, às lembranças distantes, à memória. A ambiência é revestida por uma luz baixa, macia, aconchegante.

Nesse ambiente habita a figura de um homem com um boneco nas costas, que remete à sua própria imagem, ao seu duplo. Esse personagem tem no boneco a sua imagem quando menino. Carrega consigo um caderno onde faz anotações sobre seu passado – é o que ele nos narra: sua história junto ao pai, rígido e conservador, e uma mãe que se desdobrava em várias para dar ao filho a oportunidade de estudar. O narrador-menino interpretado por Fernando Alves Pinto está em busca da memória e da reconstrução de seu passado para entender seu presente. Nessa viagem que propõe na volta às raízes, descobre a importância da figura dessa mãe que sempre responde a todas as adversidades com uma risada peculiar e estridente, com o objetivo de dar um futuro melhor ao filho. O espetáculo é A mulher que ri, com direção de Yara de Novaes e texto de Paulo Santoro, espetáculo de São Paulo que esteve em cartaz no FESTLIP, em julho passado.

A descrição dessa cenografia, da luz, da sensação que alude ao lúdico, emitidas pela peça, motivou meu olhar a perceber o espetáculo a partir desse ângulo, da visão de uma montagem que deseja esse espaço dedicado à memória e o realiza de forma concreta, através das imagens e recortes no tempo, delimitados pelos personagens dentro daquela história.

O que as cores podem evocar para nossa visão? Que sensações podemos depreender da reunião de matizes que saltam aos olhos e procuram nos colocar em outro lugar, nos transportar para outro tempo, antigo e distante de nossa realidade presente? As cores utilizadas na cenografia de André Cortez – o marrom, sépia, amarelo, ocre – remetem ao lúdico, evocam de certa forma o antigo, os antepassados. Podem também buscar a concretização de um espaço distante das grandes cidades: as vilas, cidades interioranas onde temos a sensação de que o tempo parou por lá. A visualidade do espaço construído em A mulher que ri é aquela que nos transfere de imediato a outro, de um tempo que parece retroceder, de um jogo onde as cores realizam essas passagens, requisitando o lugar da memória que cada um possa ter do que lhe é antigo, passado. Nesse ambiente revestido de tais características, os elementos da cena dirigida por Yara de Novaes jogam entre si em harmonia e pretendem dar-nos a visão de uma bela história.

Foto: divulgação

No que concerne a atuação, em alguns momentos o registro escolhido pelos atores e pela direção parece beirar o caricato, como se aqueles atores estivessem querendo dar uma concretude plausível aos seus personagens. Com uma fala carregada de um regionalismo típico do interior de Minas Gerais (me parece essa a referência forte em cena), vozes e texto caminham lado a lado com uma expressão gestual e corporal que fecham uma composição bem delimitada nos seus arquétipos, com linhas que definem sua especificidade dentro do contexto que remete a um Brasil rural. São personificações que se completam pela vestimenta, pelo ambiente proposto pela cenografia e principalmente pela ideia de estar ali naquele espaço contando uma história com personagens bem definidos. Talvez a composição de Fernando Alves Pinto jogue mais livremente com seu personagem, até pela sua função de narrador. Através dele, chegamos aos outros dois personagens. Tanto a mãe de Eloísa Elena, a mulher que ri, quanto o pai de Plínio Soares carregam na composição de figuras distantes de suas realidades, na busca de concretizar uma materialidade palpável para aqueles dois indivíduos citados pelo personagem filho. Os registros de atuação contêm uma unidade composicional que se encaixa ao tema, ambiente, som e palavras propostos.

O momento mais simbólico e que, por assim dizer, define o espetáculo se dá no momento em que mãe e filho começam a procurar moedas pela casa para comprar um pão para comer com a sopa do dia. Na cena, a atriz arranca cada taco do chão em busca de moedas perdidas. A passagem é entrecortada por uma busca incessante que a atriz realiza através de seu personagem, uma música frenética (Dr. Morris), em alto volume, que dá o ritmo veloz da ação e a alegria esfuziante dimensionada pela interpretação de Fernando Alves Pinto. A cumplicidade que se vê entre os personagens é nesse momento exacerbada pela relação de carinho e admiração entre mãe e filho, que marca definitivamente este último, fazendo-o contar a sua história, tendo o riso da mãe como símbolo daquele tempo.

O boneco, manipulado por Fernando Alves Pinto, parece ter uma função de agenciamento das figuras do homem que saiu do interior e relembra seu passado junto aos pais quando menino. Quando o boneco está pendurado nas costas do ator é como se ele carregasse a imagem do menino pobre que de certa forma não se desliga de sua personalidade adulta.

O ato de lembrar o passado, revisitá-lo, pode ser verificado na ação de tomar nota ao caderno, quando o personagem atua no presente narrando os fatos do passado e estes passam em seguida à cena, no jogo entre os três atores. Aquele caderno contém a biografia do rapaz e materializa, no ato de rever o já escrito e no de escrever o que se viveu, a intenção de contar uma história.

Um homem olha para o passado e conta o que viveu. Ao contar o que se passou, refaz o caminho de sua vida e reescreve a historia de seus pais, da sua infância e de como se fez homem. Esse é o movimento da peça, executado através de composições bem demarcadas dos personagens e de um espaço cênico com tons que criam sentidos que nos movem para outro lugar.

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