Teatro documentário ou sob o risco do real

Artigo sobre o conceito de Teatro Documentário e a criação da peça Festa de separação.

12 de outubro de 2011 Processos
Foto: Divulgação.

Experimentamos o poder de representação da cena e o fato de que tudo que nela é mostrado se torna automaticamente teatro, mas pesquisamos também, o modo como o olhar se modifica segundo a natureza daquilo que é colocado em cena. São peças onde não se sabe mais onde começa o teatro e onde acaba a realidade. Trata-se de percepção, de recognição do mundo e, particularmente, dos homens.
(texto extraído do site do coletivo alemão Rimini Protokoll)

Na busca de entender o que na cena contemporânea vem se convencionando chamar de Teatro Documentário (1), é que desenvolvemos a breve exposição que se segue. Essa primeira fase da reflexão foi um desdobramento do experimento Festa de separação: um documentário cênico (2008) (2), espetáculo que tem sua dramaturgia e cena constituídas por material autobiográfico elaborado a partir de festas de separação, verdadeiros happenings, que foram a base do processo de criação. Nos perguntamos então sobre as implicações de uma cena constituída a partir do “real” e passamos a refletir sobre os diferentes pressupostos e elaborações através de obras de artistas como a argentina Vivi Tellas ou o coletivo alemão Rimini Protokoll. Como o real pode atravessar a cena teatral? Como trazer para o teatro a experiência documental? Quais recursos? Quais implicações estéticas? Que possibilidades de aprofundamento e sofisticação no uso de material documental e ficcional? Como transitar entre esses limites? Como apagar os limites? Essas eram questões que norteavam o trabalho.

***

A criação do experimento teatral chamado Festa de Separação: um documentário cênico foi o desencadeador da pesquisa que se seguiu entre os anos de 2008 e 2011. Nos parece, portanto, necessário descrever brevemente o trabalho retomando alguns dos pontos de partida e seu posterior desenvolvimento.

Concebido pela atriz Janaina Leite e pelo músico e filósofo Felipe Teixeira Pinto, Festa de Separação: um documentário cênico se debruça sobre o tema do amor contemporâneo usando como ponto de partida a ruptura do ex-casal na vida real Janaina e Felipe. O processo de criação se deu através da realização e documentação audiovisual de festas que funcionavam como happenings (3) onde os anfitriões eram ao mesmo tempo o casal que recebia parentes e amigos para a sua festa de separação e também os “performadores” que improvisavam a partir de um conjunto de ações mais ou menos pré-estabelecidas nos roteiros que se criavam para cada festa e se desenvolviam para a festa seguinte. A criação, o ensaio e a formalização aconteciam simultaneamente já que as festas – esse acontecimento inédito a cada vez (ou alguém dúvida que numa festa de casamento, ainda que exista um pré-roteiro dado pelo conjunto de ações que compõem a cerimônia, os noivos e convidados não estejam experienciando um acontecimento real?) eram a maneira de desenvolver a estrutura para o espetáculo final.

A estrutura se retroalimentava na medida em que os criadores lançavam mão de materiais surgidos nas festas anteriores como, por exemplo, depoimentos em vídeo ou ainda pequenos acontecimentos que sugeriam procedimentos novos. O fato de terem recebido um presente de separação fez com que o roteiro das festas seguintes passasse a contar com o momento da abertura dos presentes. Aos convidados era sugerido que trouxessem um presente de separação, e mais tarde, este jogo passou a integrar o espetáculo. O novo material gerado se somava aos arquivos da experiência do casal (como vídeos de viagens, fotos, cartas, memórias) e eram novamente atualizados a cada festa, já que a presença de um ex-casal verdadeiro e de pessoas que estabeleceram relações pessoais e específicas com eles modificavam completamente as ações estabelecidas no pré-roteiro assim como os sentidos das mesmas (sentidos estes que foram se modificando e não cessaram de se modificar ao longo do processo e dos 8 meses de temporada em que os intérpretes tiveram que lidar com os documentos da experiência amorosa que viveram e tiveram que recontar essa história refazendo nexos e se reposicionando a cada vez em relação a esses conteúdos).

Foto: Divulgação.

Podemos mesmo dizer que a estrutura documental – que num momento abarcava a história de um ex-casal que cria uma espécie de rito (as festas) e uma peça de teatro para lidar com o rompimento amoroso – passa a comportar novos sentidos até chegar a ser, hoje (quase três anos depois de sua criação e ainda sendo apresentada) o documento vivo em que dois parceiros e amigos – um ex-casal – testemunham sobre o tempo e as transformações.

O espetáculo, autodenominado um documentário cênico em franco diálogo com referências do documentário cinematográfico, brincava com conceitos e procedimentos clássicos da linguagem documental como o pacto de veracidade, o uso de material de arquivo, entrevistas, o personagem real (na peça, o ex-casal Janaina e Felipe, destituídos de qualquer camada fabular, se apresentavam como eles mesmos), o que detonou uma série de questionamentos sobre a viabilidade e efeitos do emprego desses recursos na cena teatral. A longa temporada nos permitiu por em cheque, testar, rever, pensar sobre os procedimentos e nossas escolhas estéticas e suscitaram a necessidade do desenvolvimento da pesquisa que se seguiu.

Num primeiro momento, partimos de obras e também referências teóricas dentro do pensamento sobre a linguagem documental no cinema que forneceram substratos interessantes para a pesquisa. Não nos estenderemos apontando aqui algumas das reflexões bastante avançadas no cinema sobre a relação entre documento e representação por ser demasiado extenso. Apenas para pontuar, gostaríamos de citar o cineasta, teórico e crítico de cinema francês, Jean-Louis Commoli, atualmente professor na Universidade Paris VII e Pompeu Fabre (Barcelona), que, ao nosso ver, ao discutir noções como a auto mise-en-scène, a mise-en-scène documentária e o anti-espectador, fornece chaves importantes para pensar a relação entre documento e representação e a necessidade de colocar-se, como diz o autor, “sob o risco do “real”. Não falar da realidade como algo que existe e é passível de ser lida, objetivamente, pelos homens, mas do “real” como aquilo que atravessa a representação e rompe a trama ideológica presente na linguagem, nos códigos, nas relações, criando pequenas fissuras em nossos mecanismos de representação.

Nos parece que essa tentativa de criar zonas de risco em que a realidade é fraturada por ações, acontecimentos, modos de contar o mundo e a existência dos homens corresponde também a uma certa produção teatral contemporânea que, na atualização do aqui e agora da representação, busca “interromper o fazer teatral enquanto apresentação espetacular, para construir situações nas quais a inocência enganosa do ‘espectar’ é perturbada, infringida, tornada duvidosa”. (4)

Tal perturbação nos parece ser um dos efeitos de obras constituídas a partir do “real” que vêm sendo feitas na cena teatral contemporânea e que são muito fortemente associadas a um chamado teatro documentário. Exemplos como o do coletivo Rimini Protokoll na Alemanha, o trabalho da diretora Vivi Tellas na Argentina ou do coletivo Mapa Teatro na Colômbia, caminham nessa direção. No jogo que estabelecem entre os documentos da realidade e a cena, oferecem exemplos do que, segundo a pesquisadora Béatrice Picon-Vallin é umas das pesquisas mais atuais da cena contemporânea (5).

Tentamos pensar o que seria um teatro documentário, pesquisando, a partir de exemplos no teatro e no cinema, alguns conceitos e procedimentos a fim de esmiuçar que elementos estéticos, éticos e políticos estão em jogo na realização de obras que têm no real sua matéria-prima e que fazem desse pressuposto o pilar central da dramaturgia e da composição cênica. Ou seja, os acontecimentos, experiências e formas de registro dos mesmos não são apenas estímulos ou pontos de partida para uma criação ficcional (6), mas são a própria matéria que irá constituir o texto e os demais elementos da encenação. A forma de se apropriar desses documentos do real – pessoas com reais experiências e depoimentos, os próprios relatos, elementos como fotos, vídeos, objetos – é que vai diferenciar a produção dos artistas citados. Mas todos eles têm em comum resultados cênicos que se estruturam completamente a partir da matéria-bruta do real.

Foto: Divulgação.

Notas:

(1) Marcelo Soller, em seu Teatro Documentário: a pedagogia da não-ficção, localiza, na verdade, nos anos 20 o surgimento do teatro documentário a partir das encenações de Erwin Piscator. Ao longo do século XX, o autor mapeia expressões dessa linguagem, passando pelo Living Newspaper nos Estados Unidos, o Teatro Jornal desenvolvido no Brasil por Augusto Boal até chegar ao nosso século com exemplos como o do Rimini Protokoll na Alemanha.

(2) O espetáculo teve sua estreia em 15 de setembro de 2009 subvencionado do projeto Vitrine Cultural, com curadoria de Kil Abreu e Valmir Santos. Foram oito meses em temporada e apresentações pelo Brasil que se seguem até os dias de hoje.

(3) Tomando a definição de Patrice Pavis que diz que o happening é uma “forma de atividade que não usa texto ou programa prefixado (no máximo um roteiro ou um “modo de usar”) e que propõe aquilo que ora se chama acontecimento, ora ação, procedimento, movimento, performance, ou seja, uma atividade proposta e realizada pelos artistas e participantes, utilizando o acaso, o imprevisto e o aleatório, sem vontade de imitar uma ação exterior, de contar uma história, de produzir um significado, usando tanto todas as artes e técnicas imagináveis quanto a realidade circundante. (PAVIS, 1996:191)

(4) Citação de Hans-Thies Lehmann em O teatro na época do Big Brother de Stephan Baungartel, conferência no ciclo de encontros promovido pelo Grupo Folias (SP) em 4 de setembro de 2007.

(5) Em entrevista concedida pela ocasião do 1° Colóquio sobre Teatro Documentário, São Paulo, 2011.

(6) Sobre esta questão, ver a tese de doutorado da pesquisadora Patrícia Leonardeli A memória como recriação do vivido. Um estudo da história do conceito de memória aplicado às artes performativas na perspectiva do depoimento pessoal de 2008, onde de Stanislavski, passando por Grotowski, chegando aos performers como Marina Abramovic e Spalding Gray, a autora estabelece uma curva descendente em relação ao grau de mediação fabular nas obras. Ou seja, nestes casos, os conteúdos históricos dos performers vão ganhando expressão cada vez mais autônoma.

Referências bibliográficas:

LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

SOLER, Marcelo. Teatro Documentário: a pedagogia da não ficção. Editora HUCITEC, São Paulo, 2010.

Informações sobre os autores de Festa de separação e texto para download no site do projeto @dramaturgia: http://www.novasdramaturgias.com/autores/janainafepa/

Janaina Leite é atriz e uma das fundadoras do Grupo XIX de Teatro de São Paulo. Concebeu o espetáculo Festa de Separação: um documentário cênico iniciando a pesquisa sobre teatro documentário. No ano de 2011, orienta o Núcleo de Pesquisa “Possibilidades para uma cena documental” e a oficina intensiva “Histórias Reais”, além de desenvolver seus próprios trabalhos de criação. Atualmente, dirige o projeto documental solo do músico e filósofo Fepa. Algumas das reflexões levantadas até aqui foram partilhadas no 1° colóquio sobre teatro documentário organizado pela Cia. Teatro Documentário através da Lei de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo.

Informações sobre a oficina que Janaina Leite vai ministrar no SESC-Rio em outubro de 2011:


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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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