Distanciamento para abordar a intimidade

Crítica da peça Luis Antonio-Gabriela, de Nelson Baskerville

20 de outubro de 2011 Críticas
Foto: Divulgação.

A natureza íntima de um projeto como o de Luis Antonio-Gabriela, que desembarcou no Rio de Janeiro para duas apresentações no Tempo Festival das Artes, gerou a necessidade de distanciamento, característica que marca a montagem. Disposto a trazer à tona a sua história familiar – em especial, a relação abortada com o irmão Luis Antonio, que, ao se tornar transexual, migrou para Bilbao, onde viveu durante mais de 20 anos afastado dos parentes mais próximos –, o diretor Nelson Baskerville se valeu de mecanismos de afastamento.

O provável intuito foi o de suportar relatar fatos de natureza tão pessoal. Logo no início da apresentação, os atores, ao invés de proporem um vínculo direto com as personagens verídicas, se identificam e anunciam quais que cada um irá interpretar. Não há qualquer preocupação com a veracidade naturalista. Basta dizer que Baskerville é interpretado por uma atriz e Luis Antonio, por um ator, decisão que corrobora com a determinação de enfocar a sexualidade como um universo imprevisível, impossível de ser reduzido a categorizações apressadas.

Ao abordarem o terreno pantanoso da sexualidade, os atores portam máscaras. Mas ao tirarem, evidenciam outras máscaras. Será que o desmascaramento leva ao encontro de uma essência, de um eu puro e original, ou ao sucessivo confronto com uma sucessão de máscaras? Nelson Baskerville problematiza, desse modo, o caráter de revelação do projeto. Nesse espetáculo expandido, os atores transitam entre a narração e a vivência.

Foto: Divulgação.

Também há cenas intimistas, mais presentes na segunda metade, como a da carta do pai a um distante Luis Antonio e a da fala do personagem-título sobre a saudade de casa e as consequências decorrentes das escolhas que fez na vida. Essa dimensão discreta faz falta num trabalho que destaca o descompasso entre corpo e alma (“Eu nasci num corpo errado”, sintetiza Luis Antonio, em dado instante), surgindo, porém, excessiva no final – marcado pelo pedido de desculpas de Baskerville por não ter conseguido administrar a contento seu trauma familiar.

Em todo caso, impera a decisão (compreensível, em que pesem eventuais restrições) de investir numa cena estilizada, exteriorizada, excessiva, tomada pela utilização de variados recursos. Em exibição num telão, fotos de infância. Mais adiante, fotos e cartas pessoais são expostas diante do espectador de maneira propositadamente impessoal, numa articulação contrastante. As constantes desavenças entre o pai e a madrasta dos irmãos vêm à tona em letreiros. Pôsteres com desenhos de corpos de transexuais são revelados num momento em que mencionam uma visita ao museu Guggenheim. Ainda no telão, Nelson Baskerville fala sobre o processo de criação do trabalho, numa evidenciação dispensável da construção aberta de Luis Antonio-Gabriela, resultado não só da subjetividade do diretor-personagem como dos atores que integram o elenco. Mas o espetáculo representa um passo corajoso na vertente do teatro que conjuga a primeira pessoa.

Informações sobre temporadas no blog da peça: http://luisantoniogabriela.blogspot.com/

Daniel Schenker é doutorando da UniRio e crítico de teatro do Jornal do Commercio e da Isto É / Gente.

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