Muitos Baskervilles para um só Nelson

Artigo sobre o trabalho do diretor Nelson Baskerville

31 de março de 2013 Estudos
Foto: Divulgação.

Tenho uma fotografia emoldurada e protegida por vidro, cujo autor desconheço. Tudo que me lembro sobre ele diz respeito à procedência: um francês, contemporâneo – e acrescentei a essa inexatidão de informações um gênero: um homem, por dedução. Ela chegou até mim como presente. No começo não prestava muita atenção. Fiquei em dúvida sobre onde colocá-la, e assim passou mais de um ano guardada atrás de uma pilha de livros. Na indecisão, esqueci-me dela completamente. Foi durante uma mudança, enquanto desencaixotava objetos, que a resgatei de uma caixa, e resolvi trazê-la para a luz.

Passei dias olhando-a distraidamente, e de diversos pontos. Um dia, decidi deixá-la deitada, na horizontal, sobre um móvel baixo de madeira. Em alguma medida eu percebi que preferia olhá-la assim, por cima. Tudo isso feito com muita desatenção, aleatoriamente, em meio à rotina. Noutro dia, mais atenta, me dei conta que seu autor deve ter fotografado a cena de cima, possivelmente de uma posição equivalente ao segundo ou terceiro andar de um edifício. A cena se passa numa praça qualquer, parece registrar um jogo de bocha. O ponto de vista usado pelo fotógrafo desenha um ângulo que faz o olhar convergir para a cena a partir de um traçado imaginário que parte da lateral direita do observador. Essa lateralidade é a graça da foto e confere espontaneidade, casualidade à cena. O recurso, apesar de simples, determina um modo de olhar para a obra, mesmo que opcional, já que não impede outros tantos modos.

Conto essa breve história para me aproximar da questão do ponto de vista do autor diante de sua própria obra. E também do lugar do espectador nessa relação de muitas dimensões. E para falar do teatro dirigido por Nelson Baskerville.

Começo a pensar nele, após assistir quatro de suas direções, como um autor da cena que dirige e escreve (ou adapta). Esse conjunto de peças inclui: Luis Antônio – Gabriela, Brincando com fogo e Credores (essas duas a partir das obras homônimas de Strinberg); e numa medida mais amena também As estrelas cadentes do meu céu são feitas de bombas do inimigo.

Um autor como alguém ocupado na totalidade da obra; um artista cujos pensamentos sobre e para o teatro atravessam todas as instâncias do processo ao espetáculo, atribuindo uma assinatura própria.

De saída, ele assumidamente tem como leitmotiv de duas dessas citadas direções (Luis Antonio-Gabriela e Credores) a necessidade de colocar em cena questões espinhosas de sua vida pessoal. Isso, apesar de recorrente para a arte, é feito por ele com absoluto desprendimento, com a negação do tom confessional. É latente que se referem às questões íntimas, mas o que se sobrepõe a esse material não tem pertencimento.

Uma explicação para esse resultado talvez seja o modo como ele cria: coloca suas inquietações na roda, ou melhor, na gênese do processo de criação, durante os ensaios, para a improvisação e colaboração (e co-elaboração) ativa dos atores com quem trabalha.

Nesse momento, o material inicial é desvelado, desarticulado, e as referências dadas se submetem ao livre exercício da improvisação. Cortes, excessos, redundâncias, brincadeiras, tudo vale nesse momento de criação em colaboração com atores. E esses tomam para si a obra, se investem do papel de co-autores.

Curioso o fato desse diretor trabalhar de um mesmo modo com companhias diferentes (Mungunzá, Mamba de Artes e Provisório-Definitivo, respectivamente).

Os processos que conduz e propõe parecem seguir uma mesma conduta de trabalho.

O esgarçamento do material inicial, propenso às propostas, referências pessoais e apropriações de cada ator segue para uma liquidificação; não propriamente a assimilação inerte dessas interferências, mas o jogo com elas. O resultado, quando se olha com bastante atenção, entrevê marcas, ou mesmo pistas do que foi esse processo dialógico e um tanto anárquico. Fica ao espectador a impressão de muitos pontos de vista em profusão, mas convergentes para um pensamento, uma lógica interna que tudo atravessa: a autoria de Baskerville.

Autor como alguém que cola, recorta, pinça, desmonta, cola, monta, até alcançar uma unidade para a criação.

Assistir algo dirigido por Baskerville é uma experiência mobilizadora: olha-se de muitos pontos, para cenas que parecem estar dentro de outras cenas, ações que correm paralelamente ou através de outras, num jogo que exige agilidade da assistência. Suas obras geram demandas de atenção ininterrupta para a plateia, e logo a envolvem no andamento da cena.

Como todo colador, ele retira referências de contextos próprios, originais, e desloca para outros novos, às vezes um tanto improváveis. Recorta de seu repertório íntimo, para colar no outro, no ator-jogador, aquele com quem cria diálogos, entre subjetividades, entre pensamentos. Faz usos inusitados de elementos pré-dados, seja do autor (Strinberg) ou do que lhe oferecem seus atores.

(Soube por Baskerville, de um dado curioso: algumas pessoas assistem dezenas de vezes a Luis Antônio-Gabriela. Esse dado parece confirmar a eficiência da comunicação do espetáculo com o público, e dizer sobre o quanto a obra é envolvente, apesar de e porque parte de relatos de família e memórias, mas sobrepõe essa condição inicial)

E se o processo de criação dramatúrgica e da cena como um todo é poroso, maleável, dialógico e irreverente às hierarquias e relações de papeis e pertencimento; a obra final conjuga colaborações em função de uma coesão compacta e unificadora; segue para onde está a plateia sentada, à espera de um outro diálogo.

E se a improvisação é base da criação, o substrato é o jogo com o aleatório, com o incerto, com o outro, com o inesperado do outro, com materiais diversos; o espetáculo apresenta rigor e precisão na articulação de todos os elementos. Há um fio condutor, pensamento e forma de criar, colando as partes organicamente em um todo.

Por trás da sujeira presente nessa cena, dos excessos de referências, dos ruídos sonoros conjugados à música popular; atravessando depoimentos e desabafos, e textos de outros autores, na anarquia aparentemente caótica entre os elementos de cena, por trás da brincadeira das cenas prenhes de cenas; posicionado no bastidor, na batuta e ao mesmo tempo sentado na plateia: a orientação calculada de um diretor. Em cena permanece apenas o que restou da organização minuciosa (e ainda assim bastante libertária) de um emaranhado anterior suculento, caudaloso, aleatório e complexo ao extremo.

Nelson Baskerville parte de inquietações pessoais – sua matéria bruta – para jogar com o emaranhado de outras inquietações, para dialogar com a contradição. Permite sustentar sua obra em contornos imprecisos do humano, nas questões dúbias do desejo, da sensação incômoda de saber-se livre. E só alcança esse nível extremo de diálogo, só sai para fora de si por se colocar em papeis alheios. Generosidade artística de quem assimila, brinca e se faz em muitos, para se comunicar com o público, essa entidade respeitável.

Natália Nolli Sasso é jornalista e técnica de Artes Cênicas do Sesc SP.

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