Reflexão e comicidade sobre a condição humana

Crítica da peça Senhora Solidão, texto e direção de Leandro Muniz

30 de setembro de 2011 Críticas
Foto: Divulgação.

“Solidão é lava que cobre tudo
Amargura em minha boca
Sorri seus dentes de chumbo
Solidão palavra cavada no coração
Resignado e mudo
No compasso da desilusão.”

A solidão, ao que tudo indica, parece ter se tornado um dos grandes males dos tempos modernos. O tema aparece com certa recorrência em músicas, livros e no cinema. A escola existencialista acredita que a solidão faz parte da essência do ser humano. Cada pessoa vem ao mundo sozinha, atravessa a vida como um ser em separado e, no final, morre sozinho. Aceitar o fato, lidar com isso e aprender como direcionar nossas próprias vidas de forma bela e satisfatória é a condição humana. Alguns filósofos, como Jean-Paul Sartre, acreditavam numa solidão epistêmica, em que a solidão é parte fundamental da condição humana por causa do paradoxo entre o desejo consciente do homem de encontrar um significado dentro do isolamento e do vazio do universo. Entretanto, alguns existencialistas pensam o oposto: os indivíduos precisariam se engajar ativamente uns aos outros e formar o universo na medida em que se comunicam e criam, e a solidão seria meramente o sentimento de estar fora desse processo.

Em relação ao quadro descrito acima encontramos quatro personagens. Mauro tem dificuldades de se aproximar de outras pessoas e abusa do álcool para tentar se encaixar. Andressa é rejeitada pela família, tem na figura de sua irmã a grande rival e imputa a esta a responsabilidade por seus fracassos na vida. Júnior tem uma família atípica e cresceu sendo vítima de atos de violências físicas e psicológicas, até mesmo dentro de sua própria casa. Senhora sofreu uma grande desilusão amorosa ao ser abandonada pelo marido. Em comum, essas quatro figuras sofrem do mesmo mal: a solidão. E eles se encontram justamente na casa desta última, onde uma espécie de terapia vai ocorrer. Esse “tratamento” desenvolvido por Senhora goza de certa credibilidade e, por esse motivo, Mauro, Júnior e Andressa vão ao seu encontro, para participarem da reunião na qual vão discutir em conjunto o tema que os une. A anfitriã, assim como os outros, é uma pessoa solitária que procura encontrar, no contato com indivíduos que passam por situação semelhante, as respostas para o seu problema. Juntos os quatro revisitam suas memórias e tentam reconstruir momentos de suas vidas que não foram agradáveis. Na tal terapia, Senhora incita os outros a revisitar momentos dolorosos e estimula-os a modificar suas histórias por meio de jogos teatrais.

A trama acima é o ponto de partida do espetáculo Senhora Solidão, levada à cena pelas mãos da Quase Companhia e que cumpre sua primeira temporada no Teatro Maria Clara Machado no Rio de Janeiro até o dia 9 de outubro. O texto, escrito por Leandro Muniz – que também dirige a montagem – pode nos levar a acreditar que a peça envereda pelo drama, um daqueles bem carregado nas tintas e capaz de derrubar até o mais insensível dos corações. Talvez grande parte dessa impressão se dê por conta do cartaz do espetáculo, que não nos dá grandes pistas do que vamos ver. Neste caso, aquele velho dito popular que diz: “não julgue o conteúdo de um livro por sua capa” é bastante apropriado. Mistérios à parte, o enigma vai se desfazendo após o início do espetáculo e em poucos minutos somos abarcados por uma grata experiência teatral. Leandro constrói um texto em que a tônica do espetáculo é a comédia, embora as situações abordadas e reveladas no decorrer da apresentação nos abram a possibilidade de inúmeras portas para a reflexão. Existe, creio eu, uma certa aproximação das personagens criadas por Muniz com pessoas do cotidiano e aí está a graça. Não são personagens inverossímeis, as pessoas ali no palco poderiam muito bem ser um amigo, um vizinho ou um parente.

A peça se divide em dois planos: O presente, ou plano da realidade, no qual acontecem os fatos narrados durante o encontro de Andressa (Bia Guedes), Júnior (Luis Lobianco) e Mauro (Claúdio Amado) com Senhora (Cristina Fagundes) que faz as vezes de mediadora e propõe exercícios aos outros participantes com a finalidade de que cada um ali se apresente. O outro plano é o da memória, em que cada uma das personagens apresenta um pouco da sua história pregressa. É neste plano, visível apenas para o público, que ocorre uma espécie de metateatro, em que os atores fazem diversos personagens cujas histórias acabam se entrelaçando.

O espetáculo é definido por seu autor e diretor como uma comédia em tons dramáticos (ou seria um drama em tons cômicos?). O fato é que realmente há momentos cômicos que levam a plateia às risadas em decorrência das situações apresentadas que beiram o nonsense e o Teatro do Absurdo, mas há também momentos de dor, silêncio, desconforto e falta de rumo para as figuras centrais que despertam uma angústia em que está assistindo. Apesar do espetáculo se mostrar bastante convencional em termos de dramatização, é possível perceber que a encenação se vale de certos códigos e elementos de quebra das convenções. O exemplo mais evidente disto é o caso das trocas de personagens entre os atores. Todos em cena acabam respondendo, em algum momento da peça, por uma ou outra personagem. Não se trata de um exercício de metalinguagem, em que os atores assumem explicitamente a troca de personagens e que procuram demonstrar ao público que são atores fazendo personagens. Em Senhora Solidão, isso não acontece. A alternância de personagens começa de modo tímido e depois se torna frenética, mas em nenhum momento o ator se revela para o público.

Outra boa solução cênica é que para viabilizar essa movimentação entre os atores, o figurino permanece intocável. O que define uma personagem ou outra é um objeto, que pode ser um par de óculos, um lenço ou até mesmo um cabelo ajeitado de forma diferente. Estes são códigos que se estabelecem rapidamente.

Em Senhora Solidão, pode se perceber algumas referências utilizadas por Leandro Muniz para a construção de seu espetáculo, tanto em relação ao texto quanto à direção. Ainda que não tenham sido utilizadas de forma intencional, é possível fazermos uma conexão entre Senhora Solidão e os trabalhos do roteirista e escritor americano Charlie Kaufman e os diretores Michel Gondry e Spike Jonze. Não é possível afirmar com certeza que o autor e diretor se valeu destas referências na feitura de sua peça, mas em determinados momentos é possível observar zonas de contato com os filmes Brilho eterno de uma mente sem lembrança (Eternal Sunshine of the Spotless Mind) e Quero ser John Malkovich (Being John Malkovich). Estes trabalhos se ocupam em retratar a realidade de forma inusitada. Adicionaria também ao caldeirão referencial de Muniz o termo psicodrama. O psicodrama – método de investigação e tratamento de problemas psicológicos criado pelo médico romeno Jacob Levy Moreno no princípio do século XX reúne em sua base teórica elementos do teatro e da psiquiatria e tem como recurso de ação a dramatização –o principal fio condutor da história da peça.

Outro ponto que podemos destacar é em relação às interpretações. Não há ator ou atriz que se destaque individualmente. A força de encenação fica por conta do agrupamento de um conjunto homogêneo e que corresponde bem às diretrizes da encenação.

A conclusão a que se chega ao fim de Senhora Solidão é de que mesmo assuntos mais sérios e delicados que procuram tematizar a condição do ser humano consigo mesmo e de sua relação com a sociedade pode ser tratado de uma maneira leve e descontraída e que nem por isso deixa de suscitar a reflexão.

Referência bibliográfica:

CARTER, Michele. Abiding Loneliness: An Existencial Perspective. Park Ridge Center, 2000. Em: http://www.philosophicalsociety.com/Archives/An ExistentialViewOfLoneliness.htm. Acessado em: 24 de setembro de 2011.

Raphael Cassou é ator, iluminador e graduando em Teoria do Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.

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