Retrato do amor quando jovem à moda caipira

Crítica da peça Um dia ouvi a lua, da Cia. Teatro da Cidade, de São Bernardo dos Campos

18 de outubro de 2011 Críticas

Inspirado em três canções da dupla caipira Tonico & Tinoco, o espetáculo Um dia ouvi a lua, de Luís Alberto Abreu, direção de Eduardo Moreira, pela Cia. Teatro da Cidade, de São Bernardo dos Campos/SP, traz ao palco do Teatro Municipal Procópio Ferreira, durante o XVIII Festival Nacional de Teatro de Presidente Prudente, o universo caipira do interior paulista, com seu humor, personagens típicos, ditos populares e, sobretudo, música e estórias de amor.

O eixo do espetáculo gira em torno de três estórias. Respectivamente, a partir das canções “Adeus, Morena, Adeus”, “Cabocla Tereza” e “Rio Pequeno”. Estórias de amor à moda antiga, mas ainda capazes de provocar comoção. As duas primeiras, com triste desfecho, e a última, de final feliz, pois, como diz um dos personagens, “estória triste é sempre uma mentira, a verdade nessa vida é o amor”.

Dramaturgia e interpretação caminham no registro narrativo, dramático e confessional, intercalando temporalidades e personagens, em um ritmo vertiginoso. Os atores, em cada estória, desempenham vários papéis, ora narrando diretamente ao público, ora dialogando entre si, ora em tom confessional. Em todas, há sempre dois tempos ficcionais simultâneos: o presente no qual os personagens encontram-se envelhecidos, sob o signo da memória; o passado, retrato do amor quando jovem. É importante frisar que o épico, o dramático e o confessional se intercalam em ambas as temporalidades.

Há uma ideia de jogo presente na orquestração das interpretações e do texto, explícita principalmente pela perspectiva de um certo olhar infantil a conduzir a encenação. Outra temporalidade que aí subjaz. Infância, juventude e maturidade aqui coexistem e se entrecruzam. Em diversos momentos, o espetáculo é pontuado com jogos tradicionais e os protagonistas dessas brincadeiras são crianças que testemunham ou fantasiam cada uma dessas estórias de amor. A direção de Eduardo Moreira é sóbria, colocando-se a serviço do trabalho dos atores.

O jogo também se manifesta no uso de figurinos e adereços de cena. A peça se inicia com uma roda de viola em que os intérpretes, vestidos com roupas íntimas antigas, entoam canções em torno de uma fogueira. Estão sentados em cima de malas de onde retiram seus figurinos que permitem múltiplas variações. Por exemplo, vestindo um paletó, um ator interpreta o violeiro que seduz a ingênua Beatriz, na primeira estória-canção. Virando-o do avesso, agora sob nova coloração, torna-se o pai da moça, furioso e passional. As malas, além de servirem de suporte para as mutações da cena, remetem às situações de fuga e transição dos personagens, em suas idas e vindas, à própria passagem do tempo. Ideia geral do espetáculo, visto que o tempo (e sua ação sobre as pessoas) é uma de suas matérias-primas de eleição.

Ao final do espetáculo, as crianças decidem brincar de outro jogo: “Vamos brincar de caçar o tesouro”! Pegam uma última mala e, colocando-a na margem esquerda do proscênio, abrem-na. Lá, retiram diversas fotos antigas de moças e rapazes. No fundo da tampa da mala, vê-se a imagem de uma antiga estação de trem. Dispondo esses elementos como um oratório, o espetáculo chega à sua conclusão. Mas antes deste desfecho um personagem diz: “A memória daquele mundo nos ensina, mas é a vida concreta que nos faz amar”.

Por mais que remeta ao passado, sob o olhar melancólico da maturidade, Um dia ouvi a lua trata, em verdade, do presente. Do aqui e agora. E este presente ressoa em cena como um despertar da primavera. Afinal, conforme outro personagem, “precisa-se acreditar que na vida ainda existe desmedida”. Sob o ímpeto da juventude, este espetáculo lembra, de certa forma, as teses sobre o conceito de história de Walter Benjamin, em que o passado surge como redenção do presente. E mais precisamente os conceitos de narração e experiência. Segundo o filósofo alemão, o passado perpassa veloz o presente, deixando-se fixar apenas como “imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido”. (1) Aquele que narra os acontecimentos, “sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o passado é citável, em cada um dos seus momentos”. (2)

Nesse sentido, os narradores de Um dia ouvi a lua abordam a memória e a experiência para através delas fazerem emergir as esperanças não realizadas do passado, inscrevendo no presente seu apelo por um futuro diferente. No entanto, nesta peça o passado também é tratado enquanto reelaboração do presente. Ou seja, ele é ao mesmo tempo memória e invenção. As crianças, que consideram a experiência o grande tesouro a ser reencontrado, imprimem esse caráter ambivalente à montagem. As estórias-canções são contadas como fatos acontecidos de uma pequena cidade do interior, mas também como brincadeiras infantis. Longe de banalizar o tema, os jogos infantis tornam o passado uma recriação do presente, tendo em vista sua própria transformação. Em outras palavras: ao contar o ocorrido, o presente transforma a si mesmo. Redimi-se! Cria-se! Por isso, em Um dia ouvi a lua, o passado atende aos apelos do presente em forma de estórias-canções de amor, retratos de uma juventude, aqui, à moda caipira.

Notas:

(1)BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: ______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Prefácio Jeanne Marie Gagnebin. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 224.

(2)Id., ibid., p. 223.

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