As faces da mesma moeda – o jogo das duplas

Crítica da peça Contrações, do inglês Mike Bartlett, pelo Grupo 3 de Teatro

22 de dezembro de 2014 Críticas

Vol. VII, nº 63, dezembro de 2014

Resumo: A crítica analisa a montagem do espetáculo Contrações, do Grupo 3 de Teatro, a partir da leitura de Jean-Pierre Sarrazac sobre a transformação da dramaturgia no século passado, no livro O futuro do drama. A outra via de análise aborda a ideia de dicotomia para pensar os jogos entre polaridades presentes nos demais elementos cênicos.

Palavras-chave:Dramaturgia, Jean-Pierre Sarrazac, Mike Bartlett.

Abstract: The review analyzes the montage of the play “Contractions” by Grupo 3 de Teatro from the reading of Jean-Pierre Sarrazac’s book on the transformation of drama in the last century: L’Avenir du drame. The other via of analysis handles the idea of dichotomy to think about the games between the present polarities in the other scenic elements.
Keywords: Dramaturgy, Jean-Pierre Sarrazac, Mike Bartlett.

As faces da mesma moeda – o jogo das duplas

Débora Fallabela e Yara de Novaes. Foto: João Caldas.

Estreada em 2008 na Inglaterra, a peça Contrações, de autoria de um jovem inglês de pouco mais de trinta anos, Mike Bartlett, tem feito sucesso em muitos países. O drama se desenvolve num ambiente coorporativo de um contexto capitalista avançado, – uma empresa com muitos setores – não é estranho que esta realidade gere identificação em vários cantos.

Esta é a principal condição de trabalho encontrada no mundo inteiro, portanto, Contrações se trata de um drama no interior da empresa, no interior da vida da sociedade capitalista. Quando o teórico Jean-Pierre Sarrazac analisa as dramaturgias do final do século XIX, o autor esclarece que as transformações na forma dramatúrgica são provocadas por uma crise interna, uma crise do espaço íntimo, da casa e seus habitantes.

Na sociedade moderna o interior da casa era o local mais privado e, por isso, revelador do homem desse tempo. Hoje, no curso desta sociedade contemporânea, em crise com os desmandos capitalistas, pode-se entender o local de trabalho como íntimo, a empresa como casa, os demais funcionários como família; metáforas comuns deste nosso tempo. A crise do interior da casa migrou para o interior da empresa. Perceber isto se torna mais fácil quando pensamos que, no século XIX o trabalho fora de casa era tarefa masculina, já o século XX levou as mulheres também para o seu “interior”.

Emma, personagem vivida por Débora Falabella, vive uma situação violenta de assédio moral, no qual a gerente de RH, personagem de Yara de Novaes, em nome das regras gerais da empresa, priva a funcionária de ter vida pessoal, ou vida íntima, já que o íntimo é o próprio trabalho. Na empresa é proibido manter contato sentimental ou sexual com outro funcionário, sob pena de demissão, mudança de sede, de cidade ou de país para um dos empregados envolvidos. Com isso, o espaço íntimo da empresa também é globalizado e os personagens podem ter suas crises em qualquer parte do mundo. Significa a explosão das paredes, a deterioração dos limites físicos da “casa” e a profunda desterritorialização destas individualidades.

A forma dramatúrgica de Contrações, então, está desenvolvida a partir desta crise interna do eu-íntimo, já reconhecida pelas teorias do teatro do século XX. Por isso, achei interessante pensar na contemporaneidade desta dramaturgia a partir da leitura do livro O futuro do drama (1981), no qual Sarrazac analisa as modificações dos elementos dramatúrgicos antecipando seu futuro com e depois da crise.

Prólogo

A peça começa com o anúncio de um prólogo – elemento narrativo, característico do drama em crise. Nele, a direção de Grace Passô revela os signos, as regras de leitura, desfaz o mistério, o suspense, pois, a crise é seca. A peça se inscreve num cabo de forças que, obviamente, a parte mais fraca será derrotada ao fim. Por isso, as polaridades ficam muito bem definidas em dicotomias que ditam o ritmo da encenação.

A começar pela trilha: “sentimental”, um instrumental melódico acompanhado de uma luz rosada quente versus “sexual”, uma sonoridade com mais rock acompanhada de uma luz azul fria. As paredes das divisórias que separam os nichos do ambiente coorporativo são revestidas por uma estampa de pele humana, uma lente fotográfica que mostra as minirrepartições da derme. É uma imagem microscópica de uma superfície sensível, quente e palpável. Contra ela está o ar-condicionado e suas tubulações prateadas, frias, que aos poucos gelam o ambiente e escondem a pele. A pele, o humano, o vapor abstrato cortante, a empresa.

Uma dialética simples. As duplicidades inseparáveis, uma exercendo mais poder sobre a outra. Este jogo permeia todos os dispositivos da montagem, do cenário à interpretação, que será abordada mais a frente. Aqui ainda vale ressaltar a presença dos técnicos de luz e som em cena como figurantes ou outros funcionários, dentro de seus aquários, silenciosos, de cabeça baixa quase sempre, mesmo quando Emma se desespera, grita, atira móveis na sala bem em frente às suas. Mesmo quando o vidro entre as divisórias revela toda a dor de Emma, os demais funcionários permanecem impassíveis. Este jogo das duplas, ainda que pareçam faces da mesma moeda, quando pensados pela lógica do drama, demonstram um desenlace, o desmembramento da ação-reação em oposição ao confronto instantâneo, que não gera movimento, mas aumenta a tensão.

“Apagar da obra a relação de interdependência, inscrever no seu lugar a [relação] de estranhamento. E, antes de mais, problematizando a relação primordial do teatro dramático, a sua partitura original: a dicotomia do espaço intratécnico (o microcosmo) e do espaço extratécnico (o macrocosmo) que o engloba.” (SARRAZAC: 1981 – pg.38).

O íntimo revela o mundo. Um extremo lança luz sobre a outra ponta. Trabalhar com opostos, neste caso, produz um sofisticado jogo de fazer ver o óbvio. Para Sarrazac, o estranhamento surge na forma quando a estrutura clássica do drama é impossível. O que Mike Bartlett parece fazer em Contrações não é mostrar uma dramaturgia impossível, mas, com alguma ironia, revelar que esse estranhamento, iniciado na crise individual, contemporaneamente, está normatizado. Porque existe algum ar de compreensão e riso sem oposição no fato de não poder se apaixonar num ambiente de trabalho. Porque uma funcionária prestando contas da sua vida afetiva e sexual para a gerente de RH só começa a transparecer contornos de absurdo quando a mulher desenterra um filho morto.

A dramaturgia ainda não está depois da crise íntima, porém a crise não causa desconforto, ela está, antes de tudo, normatizada, aceita, a ironia consiste em fazer ver que o estranho não é mais tão estranho assim. Nem a forma, nem a vida.

Contrações

O texto se divide em estações – um calvário para Emma. A cada cena, algum tempo se passou desde a última satisfação dada. As cenas são independentes, mas apresentam uma progressão de ritmo e tensão internos. Como contrações. A dor aumenta, as mentiras não podem ser sustentadas, o namorado é mandado para um lugar distante, o ar gela, Emma engravida, mais e mais casacos, a agonia é fria, não se pode perder o emprego. Jamais. A relação amorosa/sexual acaba, o ex-namorado volta. Repetição de ciclos de angústia.

A gerente é inatingível, inalcançável, impassível, é uma empresa. Emma é uma mulher jovem, doce e com esperanças, teria um futuro promissor, se aguentasse ver seu corpo se curvar até o chão. As interpretações das atrizes se somam à estrutura dicotômica já estabelecida e criam personagens com características bufônicas, não como palhaças, se bem que, aos olhos do espectador as duas estão sujeitadas a vidas sufocantes, com uma achando que está em vantagem, o que é tipicamente uma essência da palhaçaria de duplas. Mas bufônicas pela apresentação grotesca e rapsódica da fábula (com um tom mórbido e risível), pela relação de complementaridade que as duas (Emma vive apenas “com emoção”, a gerente “sem emoção”), pelos antagonismos vocais e corporais que tornam as personagens, mais uma vez, faces da mesma moeda.

Nas observações de Sarrazac, no futuro do drama, as personagens se transformam em figuras. Menos subjetivadas e mais definidas por corporeidade e tessituras vocais, menos psicológicas e mais exteriorizadas como metáforas comportamentais. Cascas e não interior. Emma é vulnerável, sua voz e seu corpo sofrem grandes alterações durante o desenrolar da fábula. A voz doce, suave e simpática se torna agressiva, doída, gritada, sem controle. Seu corpo ereto e harmonioso curva-se com uma visualidade não orgânica, de alguém que não sofreu uma deformidade natural, mas que não consegue se erguer, pois, está sendo pisada. A posição final é quase fetal. Seu corpo branco fica sujo de barro e sem proteção para as baixas temperaturas que tomam a sala. Obviamente, a gerente é o seu oposto. Rígida e inflexível, seu tom de voz permanece inalterável, com uma falsa cordialidade e um automatismo de fala técnica. Seu corpo também, irredutível, que sequer levanta da cadeira. Suas roupas suportam o frio, casacos de pele, gorros e luvas para sobreviver ao ambiente coorporativo.

“A voz e o corpo desencaixaram-se. Enquanto que a primeira permanece errante no infinito da linguagem, o segundo parece revelar-se atónito com seu próprio aniquilamento, no Nirvana da terra, da areia, das cinzas ou na protecção fetal. A figura, consagra, deste modo, uma perda de identidade progressiva da personagem e a sua definitiva não correspondência com o passado.” (SARRAZAC: 1981 – pg. 106).

A figura é o personagem que deixou de ser possível. Em decorrência disso, os diálogos também perdem profundidade para serem construídos com a mesma matéria da constituição dos corpos. Dor, frieza, vulnerabilidade, rigidez, etc. Emma revela tudo da sua vida íntima, da vida da gerente nada se sabe. Os diálogos não seguem o fluxo consecutivo da ação e reação, mas imprimem um confronto de forças, um embate que não se desenvolve como expressão do diálogo dramático (clássico), mas como uma narrativa dramatizada. O estudo de Sarrazac também classifica este tipo de fala que se estabelece em condições de hierarquia como “confronto entre o mestre e o escravo”, ou o chefe e o empregado. O diálogo é mais um recurso descritivo do embate, até saber quem vai se render primeiro.

Débora Fallabela e Yara de Novaes. Foto: João Caldas.

Este esvaziamento do indivíduo, da subjetividade, das referências psicológicas, a diminuição da complexidade da fala, todos esses aspectos põem o foco na exterioridade dos elementos, e até enquanto forma, a dramaturgia é realizada na dicotomia entre exterior (qualidades caricatas das figuras) e interior (crise do eu-íntimo/personagem).

A influência que o esvaziamento exerce na configuração dos cenários é o de criar ambientações estéreis, ocas, difíceis de serem habitadas por esses seres que já estão sem lugar no mundo. A casa perde os limites, desconfigura-se junto com o eu. A analogia de lugar sem fronteiras (paisagem desolada) está presente na cenografia de André Cortez nas paredes de pele (material humano) que são congeladas (mortas) num interior que perdeu a condição de ser um lar.

“Mas esta concentração do espaço do drama moderno no universo doméstico também não resulta sem um espaçamento. Porque o universo doméstico não é convocado na sua unidade e no seu fechamento, mas sim na sua dispersão: os objetos referência da vida de interior são recortados sobre o fundo de deserto. […] o espaço doméstico é discutido no palco do mundo; o lugar privado é submetido a um desmembramento e a um espaçamento.” (SARRAZAC: 1981 – pg. 85).

“Desertificação” é uma boa palavra-síntese de Contrações. O mundo capitalista-coorporativo faz Emma engravidar sem poder e parir um deserto sem fim. Uma lama.

Epílogo

Com a estranheza do lugar comum termina a narrativa. A gargalhada que confunde riso com pranto, da gerente que, finalmente, está livre para poder exprimir algum afeto. Emma exausta e a luz chega ao fim. O futuro do drama é um híbrido.

O homem desterritorializado, a solidão e a ausência do eu. A casa é o eu, mas o eu não está. A empresa poderia ser o eu, mas a empresa não deixa o eu ser. Então não há nada, só o estado físico do vapor e pele.

Pela aproximação confortável entre as leituras de Sarrazac e a dramaturgia de Batlett, e pensando nas peças (de Beckett) analisadas no livro, acho viável perceber um seguimento da temática beckettiana no texto do dramaturgo inglês. Nada que apareça propositalmente, mas, como o estudo de Sarrazac apresenta uma linha de certa maneira historicista, se for pensar em aspectos classificatórios, tem muito de terreno desolado, diálogos atravessados e complementaridade de figuras neste texto para esta ser uma referência invisível (e sem remeter aos “absurdos” todos).

“Admitir o fato de todo o drama se desenvolver num lugar isolado. Lembrar-nos que nós, espectadores, vivemos individualmente os acontecimentos essenciais da nossa sociedade como exilados do interior.” (SARRAZAC: 1981 – pg. 41).

Quando Bartlett usa de ironia para dizer que o que era estranho já é familiar, normatizado, significa que a sociedade assumiu que a casa e o lugar de trabalho são mesmo desertos. Somos todos figurantes.

Referência bibliográfica:

SARRAZAC, Jean-Pierre. O Futuro do Drama. Porto: Campo das Letras, 2002.

Mariana Barcelos é atriz, teórica do teatro formada pela UNIRIO e graduanda de Ciências Sociais pela UFRJ.

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