“As histórias de hoje não têm clima. É só sacanagem.”

Crítica da peça Os Catecismos segundo Carlos Zéfiro, de Paulo Biscaia Filho

31 de março de 2011 Críticas
Atriz: Martina Gallarza. Foto: Marco Novack.

Os Catecismos segundo Carlos Zéfiro, em cartaz desde o dia 10 de março, no Teatro 2 do Centro Cultural do Banco do Brasil no centro do Rio de Janeiro, e que cumpre temporada até o próximo dia 10 de abril, é uma produção conjunta entre a ClaMa! Cia de Teatro e a companhia paranaense Vigor Mortis. Com direção e texto a cargo do curitibano Paulo Biscaia Filho, o espetáculo presta reverências e justa homenagem àquele que foi o responsável pela alegria dos onanistas de plantão e por boa parte da iniciação sexual dos jovens rapazes dos anos 50, 60 e 70, o cartunista Carlos Zéfiro. Ele se notabilizou por publicar e ilustrar mais de uma centena de revistinhas com conteúdo pornô-erótico que ficaram conhecidos em todo o país como “catecismos” – pois reza a lenda que estas eram vendidas dissimuladamente em bancas de jornais e entregues aos seus compradores escondidas dentro de publicações religiosas. Os “catecismos” eram desenhados em preto e branco diretamente sobre papel vegetal, eliminando assim a necessidade do fotolito. Impressos em diferentes gráficas com a finalidade de burlar uma possível retaliação, chegaram a alcançar tiragens superiores a de 20.000 exemplares. Em 1970, durante a ditadura militar, foi realizada em Brasília uma investigação para descobrir o autor daquelas obras pornográficas. Na ocasião, o editor Hélio Brandão, amigo do artista, chegou a ser preso por três dias, mas – fiel ao amigo – não revelou a identidade do artista. A investigação terminou inconclusa. Zéfiro despertou amor e ódio com seus desenhos e conseguiu se manter incógnito por décadas.

O homem por trás do mito era na verdade o pacato funcionário público do setor de Imigração do Ministério do Trabalho, Alcides Aguiar Caminha, pai de família, casado desde os 25 anos, com Dona Serat Caminha. Teve cinco filhos e sempre escondeu de toda a família sua atividade paralela de desenhista. Morava no bairro de Anchieta, subúrbio do Rio de Janeiro. Autodidata no desenho, manteve o anonimato sobre sua verdadeira identidade por medo de ter seu nome envolvido em escândalo, o que poderia lhe trazer problemas, já que era funcionário público e, portanto, submetido à Lei 1.711 de 1952. Lei esta que poderia punir com a demissão o funcionário público flagrado em “incontinência pública escandalosa”. O temor maior de Alcides era perder os proventos com os quais mantinha a família. Além de seus trabalhos como ilustrador, foi compositor e parceiro de Guilherme de Brito e Nelson Cavaquinho, com quem compôs alguns sambas, entre eles os sucessos Notícia e A flor e o espinho.

Sua identidade somente se tornou pública em 1991, através da reportagem de Juca Kfouri, que na época exercia a função de editor da revista Playboy. A matéria foi publicada um ano antes da morte do artista. Caminha revelou sua identidade às páginas da revista, após saber que o quadrinista baiano Eduardo Barbosa havia declarado ser o verdadeiro Carlos Zéfiro. Barbosa chegou a desenhar alguns “catecismos” copiando o estilo de Alcides, entretanto, teve sua identidade desmentida por Hélio Brandão.

Quadrinhos de Alcides Aguiar Caminha, o Carlos Zéfiro

A história acima é a linha condutora do espetáculo de Paulo Biscaia Filho. A encenação funde de maneira precisa as linguagens das Artes Cênicas, do Cinema e dos Quadrinhos para retratar a vida e obra do obscuro cartunista carioca e acaba por transformar o criador em criatura. A trama desenvolvida no palco nos remete a uma daquelas histórias típicas de Dick Tracy e dos melhores folhetins de detetive. O Tracy em questão é vivido pelo ator Leandro Daniel Colombo – em uma composição mimética que beira a perfeição – que dá vida a Juca, jornalista que acaba de assumir a redação de uma importante revista e procura uma matéria que possa alavancar as vendas do periódico. E eis que surge à sua frente a história de Carlos Zéfiro (Rafa de Marins). Juca, grande “admirador” dos catecismos zeferianos, parte em busca da real identidade do artista. Suas investigações o levam a Hélio “O Gordo” Brandão (Marino Rocha), dono de um sebo do centro do Rio que guarda a sete chaves o segredo que Juca tenta desvendar.

Como num jogo de gato e rato, Juca segue as pistas para conseguir seu intento e se depara com o morador de uma casinha humilde do subúrbio. Em cenas que se alternam entre passado e presente, somos transportados para o Rio de Janeiro dos anos dourados e convidados a “observar” momentos da vida do homenageado. Dos seus encontros na gafieira com a dançarina sensual (Clara Serejo) – que é retratada em um dos catecismos – às conversas com Nelson Rodrigues (Jandir Ferrari), nos inserimos no universo boêmio e testemunhamos o tripé paradoxal existente na relação do cartunista em sua atividade paralela, a vida pacata em família ao lado de Serat (Mariana Consoli) – a esposa subserviente que, apesar de não concordar com os excessos do marido, não tem forças para se rebelar – e seu respeitável cargo na repartição pública.

Aos poucos vão se juntando as peças deste quebra-cabeça, no melhor estilo dos filmes noir. Esta foi a forma encontrada por Paulo Biscaia para transpor a barreira da realidade para o viés dramatúrgico. Vamos aos poucos conhecendo a figura de Zéfiro, que é apresentada em gotas. Durante boa parte do espetáculo não vemos o rosto do ator, o que atiça ainda mais a curiosidade da audiência. Essa fórmula é o que dá o tom detetivesco à encenação.

Quadrinhos de Alcides Aguiar Caminha, o Carlos Zéfiro

Contrariando os escritos do filósofo alemão Walter Benjamin, que afirmava que a aura de uma obra de arte se destrói ao ser reproduzida, Biscaia conseguiu com seu espetáculo manter e ampliar essa aura em torno do homenageado. Ao diretor coube a difícil tarefa de inserir a personagem real em seu mundo imaginário e vice-versa. Esse clima é conseguido por intermédio das cenas de transição, na qual são utilizadas citações de trechos dos “catecismos” de forma bastante cômica pelos atores Jandir Ferrari e Martina Gallarza. Com esse recurso, Biscaia foge da armadilha de transformar o espetáculo em mero documentário e a teatralidade ganha potência. Além disso, o espetáculo nos banha com o universo zeferiano e, por essa mesma razão, toca em outro ponto delicado de nossa sociedade, a repressão moralista em torno do sexo. Outro mérito creditado ao espetáculo foi o de justamente colocar no palco um assunto que ainda hoje é um tabu, por mais que se afirme e se pense o contrário. Durante as apresentações, não raro pode se perceber a reação dos espectadores, que por diversas vezes sorriem nervosos à menor menção ao assunto.

O que fica de Os Catecismos segundo Carlos Zéfiro e a sensação de uma bela história bem contada e que contradiz o autor do título deste ensaio, o próprio Carlos Zéfiro em uma de suas últimas entrevistas. No caso da história contada no palco do CCBB, os dois estão presentes: o clima e a sacanagem, a boa e velha sacanagem que se fez necessária para retratar a história de um artista pouco reverenciado e que fez da sacanagem a sua arte.

Atores: Rafa de Marins e Mariana Consoli. Foto: Marco Novack.

Leia também o artigo de Paulo Biscaia Filho sobre o processo de criação da peça: http://www.questaodecritica.com.br/2011/03/um-divisor-de-lodos/

Raphael Cassou é ator, iluminador estagiário de Jorginho de Carvalho e graduando do curso de Teoria do Teatro da UniRio. Atualmente estuda o Teatro do Grand Guignol e acompanha o trabalho da companhia paranaense Vigor Mortis.

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