Juventude – o novo em recorte dramático

Crítica da peça Os inocentes, do Brecha Coletivo

8 de agosto de 2010 Críticas

A noção de leitura e sua relação com nossos processos de recepção é um forte elemento para a construção das obras contemporâneas que o espetáculo Os inocentes, encenado pelo Brecha Coletivo, formaliza. Criado a partir do livro The holy innocents de Gilbert Adair e tendo como referência o filme Os sonhadores realizado por Bernardo Bertolucci em 2003, o espetáculo é constituído por meio de uma escolha dramatúrgica que privilegiou um elemento caro ao drama que é a relação inter subjetiva dos personagens e como essa relação é propulsora da ação. Essa escolha é um acerto do texto de Julia Spadaccini e Rodrigo Nogueira diante do desafio de realizar uma obra teatral que tem como ponto de partida outras duas obras, uma literária e uma cinematográfica, ambas possibilitando leituras diversas na medida em que são produtos de linguagens distintas. Na literatura, o leitor realiza a construção de imagens particulares que a materialidade das palavras suscita, no filme, a imagem – visualidade – é sua materialidade. Do modo como eu percebo, a dramaturgia de Os inocentes se configura como uma terceira obra, uma espécie de outro original, menos no sentido de uma essência ou de um panorama com qualquer significação vertical ou horizontal das duas obras anteriores e mais no sentido de uma obra que se estende como uma multiplicação.

Se a dramaturgia buscou por uma esfera íntima dos personagens, o que em primeira mão já cria um campo indentitário para a recepção, a direção de Cesar Augusto e Fernanda Félix acompanhou com apuro essa intenção. O contexto de maio de 68 na França aparece nas produções audiovisuais de Mariana Kaufman e Juliano Gomes, como um âmbito pertencente aos afetos da memória, sinalizando a indelével relação entre o político e as subjetividades. Esse modo também indica as contradições do homem alienado de si mesmo e que formam nossas personalidades. O jogo alienante está todo o tempo figurado na paixão pelo cinema, sobretudo o clássico, que os personagens compartilham e que estrutura o diálogo. Aqui, acredito que o humor cumpre a função de aproximar os espectadores dos personagens, torná-los críveis, encarná-los. Um exemplo disso são as falas mais iniciais de Lisa Fávero que, embora fomentem o riso, são constituídas com graça e com um tempo ritmo mais leve que o reconhecido tempo da piada, criando uma espécie de empatia em desdobramento.

Como reforço e contraponto à alienação, a cenografia é constituída por um lugar “de dentro” delimitado em uma das bordas pelas persianas, que mesmo cumprindo sua função – interromper a luz que vem do exterior e resguardar a privacidade – ainda têm uma posição de suas palhetas que deixa ver o que está do outro lado. Ainda no espaço cenográfico, um colchão alto sobre o chão e em diagonal, do lado oposto, uma mesa com três cadeiras. Essa composição reforça a ideia de alienação, porém, a mesa quase minimalista é um convite para a pouca permanência nela. A impressão causada é a de que do exterior desse lugar vaza para dentro um nada a fazer que descamba para os discursos. O exterior aparece com força apenas como o imaginário ficcional cinematográfico. Relação viva entre as obras.Os sentidos se voltam para as questões relacionais. A cenografia, assim, parece não determinar uma moralidade para a alienação e tomá-la como a inocência do título.

Por um tempo toda a ação dos personagens formaliza o fechamento das personalidades em si mesmas, mas com a inegável graça e o vigor da juventude. A transformação da tensão dramática obedece a uma velocidade pouco convencional, porém, está alicerçada nas composições realizadas pelos atores. A ingenuidade imprimida por Michel Blois encontra contraponto, um confronto quase surdo sinalizado por uma espécie de violência latente que a composição escultórica de Patrick Sampaio dá a ver. Lisa Fávero constitui com precisão o elemento que provoca o deslocamento dos primeiros. Os personagens construídos sem o tempo dramático convencional, mas com tensões invisíveis, provocam a aceleração da percepção. No caso do espetáculo, essa conjugação é a própria tensão dramática, tanto que, na cena em que o jogo começa a virar, a platéia também encontra o seu “entre” e passa por uma suspensão. Esse “entre” é um momento de indecisão e de não saber. Aqui o espaço toma a plasticidade das linhas invisíveis entre os atores e compõe com o tempo uma retenção na agilidade da trama.

Dramaturgia e cenografia configuram um continente sóbrio que vai se desmoronando, deixando restos na mesa, no colchão e pelo chão, dando forma à historicidade. Ao mesmo tempo, a direção manteve a limpeza das ações, como por exemplo, na simplicidade da cena da masturbação e também na do sexo. Essas cenas surpreendem justamente por não intencionarem formalmente nenhum efeito, nenhum modo apelativo. O que vemos é a materialidade da inocência formalizada na cena. O novo aparece despretensioso. Essa formalização dispensa o tom um tanto moralizante das últimas palavras do personagem de Michel Blois que, de outro modo, poderiam estar no mesmo sentido de abertura de significados que o final repentino oferece.

Informações sobre a temporada no site do grupo: http://brechacoletivo.wordpress.com

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores