Notas sobre a paisagem

Estudo sobre o espaço em “Na solidão dos campos de algodão” e outras peças de Bernard-Marie Koltès

14 de julho de 2010 Estudos

Sobre o autor:

1. Partindo de uma impressão de “lugar-estado”, é possível pensar um uso específico da palavra deserto como categoria crítica na análise da paisagem poética em Koltès: o deserto enquanto sombra. Não se trata aqui de pensar apenas o deserto físico como natureza inóspita e exuberante; antes, retirar da paisagem concreta o conteúdo de suprema desterritorialização, a sensação de terra de ninguém, ou de passagem de viajantes rápidos, ou morada de animais pouco visíveis; lugar onde o perigo está sempre à espreita. Utilizar a transitoriedade desértica como metáfora de uma sensação muda de perigo sempre iminente: o homem em contato com a sua sombra nas figuras da solidão, da animalidade, do cadáver.

O deserto se instala em Koltès pela passagem das horas: em áreas comuns ao habitat humano das grandes cidades – um canteiro de obras, um parque, uma estação de metrô, uma prisão, a casa –, ele aparece ao entardecer ou à noite, quando no espaço não há mais trânsito corriqueiro e povoado. Através da mudança, ou da falta de luz, o deserto chega no tempo como sombra e vazio, e inunda o espaço, transformando a paisagem.

O deserto se instala em Koltès também pela presença de figuras do Outro – do Negro atrás da árvore que reclama seu irmão morto em Combate de negro e de cães, do assassino que conversa calmamente sentado no banco em frente ao cartaz de “Procura-se” com a sua foto em Roberto Zucco, do Dealer que oferece o casaco como uma rede de caça em Na solidão dos campos de algodão -: o estranho é aquele que, enquanto respira, oferece perigo, e traz consigo o risco integral, que ele espalha pela paisagem como a sua sombra.

O deserto é uma espécie de barreira invisível: uma vez rompida, não há dique possível, a sombra penetra o que quer que seja, e nada mais será como foi até então. O deserto retira da paisagem a membrana do pertencimento: pisando naquele terreno àquela hora, ou diante daquele Outro, nada é mais reconhecível, as leis mudam, a realidade perde os desenhos corriqueiros, a paisagem de repente, e para sempre, passa a ser de outra natureza (1).

Ainda que pertencente a uma ordem excepcional, o deserto não é irreconhecível, como estado, pelo homem; é uma paisagem interior que existe como sombra, comum a todos e a qualquer um, ainda que temida, ou mantida sob constante vigilância pelo medo e pela ordem (o deserto é o território do desejo indistinto?).

2. Os Eixos

Na análise de cenários/proposições espaciais em Koltès, pode-se também pensar o desmembramento de dois eixos em eterna tensão: a horizontalidade e a verticalidade.

A horizontalidade como a linha da terra, de onde tudo nasce, para onde tudo retorna; é no solo que estão enterrados os mortos. Na linha do horizonte não há distinção possível, pois nela está a multiplicidade e a imensidão, o mundo continua e continua para além do que os olhos podem ver. O horizontal é o eixo-lugar da dissolução, da entrega à continuidade, à falta de contorno, à morte. O destino comum a todos os homens e animais: o deslocamento em uma linha contínua sobre o solo, sobre a terra, enquanto a gravidade não os vencer, e os puxar para baixo, para a desintegração (2).

No espaço nunca claramente definido de Na solidão dos campos de algodão, no hangar abandonado que serve de inspiração para Cais Oeste (3), no campo de obras em Combate de negro e de cães há diferentes proposições de espaços não preenchidos por formas acabadas. O amontoado de elementos – lixo jogado pelas janelas, corpos disformes, entulho de obras – não caracteriza um contorno, antes, abre caminho para uma leitura da paisagem como dissolução, lugar de desintegração e reprocessamento. O amontoado, ainda que aponte para uma espécie de construção vertical, por sua falta de precisão pictórica, descreve mais precisamente a ruína, ou apodrecimento de algo. O amontoado é uma variação do horizontal.

A verticalidade pode ser pensada a partir de três leituras:

a) A possibilidade de ligação com o céu traduzida como imagem de libertação: único canal de entrada e saída do território sujeito às leis e efeitos do mundo. Personagens que de alguma forma não compactuam com a ordem em que se encontram, e que transgridem esta ordem, entram e saem por cima: cai do céu o grande pára-quedista negro de Retorno ao deserto, Zucco foge por cima, pelo telhado da prisão (4). São eles figuras de certa maneira míticas: aparecem e desaparecem, seus corpos transitam pela matéria de forma diferente dos outros: Zucco escapa da prisão de onde ninguém escapa (5), numa cena que praticamente cita a da primeira aparição do fantasma em Hamlet; o pára-quedista negro aparece na varanda da casa murada, sem aviso, sem forçar entrada e diz que veio do céu. Ambos aparecem pela primeira vez à noite.

b) As torres de segurança em Combate de negro e de cães e os prédios descritos em Na solidão dos campos de algodão, e os muros tanto de Roberto Zucco quanto de Retorno ao deserto: os elementos verticais atuando como lugares de contenção, de defesa, de resguardo da ordem. No caso dos prédios, a verticalidade que “salva”, puxando para cima, para longe da terra – os apartamentos são altos e têm luz acesa à hora do crepúsculo: lá o deserto não chega. Os muros e as torres de segurança em Roberto Zucco e Combate de negro e de cães, Retorno ao deserto: a necessidade de separação dentro e fora, de criação de espaços não transitáveis por possuírem leis que não podem se misturar.

c)A verticalidade da sustentação da própria fala em oposição à força da gravidade – personagem na dramaturgia e ator na cena. É do alto de seu próprio esqueleto que o homem enuncia seu discurso articulado, lógico. Esta oposição à horizontalidade é individual e, portanto, a única afirmação possível, a única autoridade do humano frente à morte. A fala se dá no tempo, propõe uma duração, é uma afirmação frente ao tempo contínuo ou o não-tempo do mundo.

Em Na solidão dos campos de algodão, são dois homens que duelam a partir da fala. Eles articulam, uma após a outra, longos trechos de fala individual, sempre ouvida até o fim pelo outro. Como num tratado de filosofia, ou de direito, a exposição do argumento tem uma duração sustentada pela escuta do outro, e logo em seguida, a palavra é passada como se passa o lugar no púlpito, e o contra-argumento é desenvolvido. São dois homens em pé, um de frente para o outro, que nada fazem, a não ser falar. Sem parar. Eles estão no deserto, e falam para existir, para materializar o mundo, e para atacar e se defender. A linguagem como matéria e como arma.

O deserto é o lugar da horizontalidade; a verticalidade é tudo que tenta escapar dele.

3. A queda

Ao contrário de suas vítimas, Zucco não morre em cena: ele cai. A cena da queda funciona como um espelho de morte do herói, ao mesmo tempo em que a esconde. A citação da Liturgia de Mithra em Zucco se faz cena e texto da peça: a relação mítica novamente é trabalhada na figura de Zucco, e de forma direta, no sentido que a queda de um deus, de um homem repetidamente comparado a super-heróis, não é a queda encenada de um corpo no chão. O herói não se dissolve, não perde seu contorno, o seu movimento final é vertical e não tem um fim.

Sobre Na solidão dos campos de algodão:

1. Espaço Físico: é possível uma leitura realista?

A descrição espacial inicial de Koltès para a peça é antes uma definição de deal, e propõe um enigma cênico: como materializar um espaço não definido, não definível? A indicação cênica trabalha num grau de desafio entre o que seria a descrição de um lugar e a o grau de indeterminação a que a própria definição o submete, por ser o espaço do deal.

O lugar do deal pertence a um espaço-tempo incomum – “espaços neutros, indefinidos, e não previstos para este uso [do deal]”, e “a qualquer hora do dia ou da noite, independentemente das horas regulamentares de abertura dos lugares de comércio homologados, mas de preferência às horas em que estes estão fechados” (6). O espaço não é descrito de fato. O que a indicação do lugar do deal faz é propor um espaço regido pelas leis do comércio, aqui de comércio ilícito.

Sabe-se, por outro lado, o que este espaço não é: o lugar previsto para o comércio legal, feito em horas regulamentadas (o deal pode ser feito a qualquer hora, em qualquer lugar; ao mesmo tempo, existe uma hora e um lugar pro deal: o lugar do deal é o deserto, na medida em que é uma transação entre estranhos, sob leis específicas, e pode a qualquer momento se tornar violento, ainda que o deserto se instale em pleno dia no meio de uma praça).

Por outro lado, a descrição minuciosa de todas as possibilidades de comércio no decurso da peça propõe um espaço em constante transformação. Não há fechamento do deal, todas as possibilidades são tentadas e refutadas, e a leitura do próprio lugar em que estão Cliente e Dealer muda à medida que caminha o embate entre eles: o lugar é também parte da argumentação, ele nasce da linguagem e a ela retorna a cada proposição e a cada refutação.

A natureza dialética e filosófica do embate verbal afasta, por sua própria natureza, uma leitura apoiada numa perspectiva realista. São dois discursos em embate, em um lugar nunca de fato descrito por rubricas; antes, esse lugar é constantemente criado e modificado pela necessidade da argumentação, pela linguagem.

2. Miragem

Na retina de quem vê – ouve o texto –, esboçam-se paisagens, sempre fugidias, sempre evanescentes, regidas pelo desejo que nunca alcança uma forma.

O Cliente não diz o que deseja, o Dealer não diz o que tem para oferecer. Persegue-se algo que nunca é nomeado (ou nomeável) pela fala (como a sede que, mesmo sob o sol, insiste em falar sobre todas as possibilidades de oásis, mas sem nunca dizer a palavra água).

Ao perseguir o desejo do outro, ou refutá-lo, os espaços são constantemente construídos, e destruídos: Cliente e Dealer falam sem parar construindo os lugares onde estão, as paisagens interiores por onde se deslocam. A linguagem constrói, apresenta, desconstrói: a argumentação em longas passagens dá a cada personagem a capacidade de, numa fala, apresentar/criar o espaço em que se encontram, descrever seu lugar e objetivo ali, além de propor ao outro uma relação específica neste espaço.

Na sua primeira fala, o Dealer descreve o espaço, diz o seu lugar ali, descreve as leis que regem a ambos naquele momento, e propõe negócio. Na sua primeira fala, o Cliente refaz o mesmo espaço segundo as suas próprias percepções, desfaz o lugar em que Dealer o havia colocado, e coloca a impossibilidade do negócio. E assim por diante, o embate caminha até o impasse final.

A paisagem se reconfigura muitas vezes, ela se move no andamento da negociação e se modifica com ela, apesar de nunca se definir. Não há conclusão do deal, não há a enunciação do desejo. As paisagens são imagens construídas, miragens que se formam e se desfazem pelo discurso, como estações fantasma no caminho de busca de enunciação do desejo.

3. O estabelecimento do embate como poética espacial

O Dealer começa, em sua primeira fala, a descrever seu espaço e a ocupação que faz dele. Ele se coloca como aquele que está. Que sempre esteve. Que conhece aquele lugar. E nomeia o Cliente como alguém que só pode estar ali porque quer alguma coisa: “Se você anda na rua, a esta hora e neste lugar, é que você deseja alguma coisa que você não tem” (p.91) (7), coisa esta que ele, Dealer, tem para oferecer. E tem que oferecer. É para isto que está ali. O Cliente é alguém “que caminha sobre a mesma linha fina e plana da liberdade de ação (…) (8) e a única fronteira que existe é aquela entre o comprador e o vendedor, mas incerta (…)” (p. 91). Estão ambos no espaço que o Dealer nomeia, a hora é a mesma para ambos, e a lei entre eles é a lei do comércio. Satisfeito este tipo de transação, eles se separarão: “depois de ter preenchido os vazios e aplanado os montes que estão entre nós, nós nos distanciaremos um do outro, em equilíbrio sobre o fino e plano fio da nossa liberdade de ação” (p.91). Vazios do desejo insatisfeito, montes dos objetos de desejo que precisam ser negociados: dar nome ao desejo e atendê-lo é a forma de desfazer o amontoado, desenhar o espaço, aplainar, acalmando a horizontalidade, conhecendo-a, e assim diminuir o perigo; nomear é espantar o deserto e sua sombra, é abandoná-lo.

O Cliente responde que não está no mesmo lugar que o Dealer, “em um certo lugar e a uma certa hora”. Ele está em percurso, entre um ponto e outro, andando em uma linha reta, interceptada pelo Dealer. O Ciente vem do alto, dos prédios, “quanto mais alto se mora, mais o espaço é são” (p.92), e para lá quer voltar, o que existe embaixo é “o lixo jogado pelas janelas” (p. 92), que ele compara a “uma pilha de lembranças podres” (p.92). Ele não pertence àquele lugar e faz questão de deixar isto claro: “eu quero ignorar os acidentes no meu caminho” (p. 92). Ainda, atribui ao Dealer uma força de atração que interfere no seu trajeto e que o prende ao chão: “uma imprescritível lei da força da gravidade que é própria a você, que você carrega, visível, sobre os ombros como uma mochila, e que te prende a esta hora, neste lugar” (p.92). “(…) vai ser preciso que você faça um desvio para que eu não o tenha que fazer, que você se desloque do eixo que eu seguia, que você se anule (…)”: o Cliente intima o Dealer a sair de seu trajeto, lhe negando a enunciar seu desejo.

O duelo: ambos dispostos numa linha, de frente um para o outro, em trajetos que se interceptam e se barram. Ainda que fora de seu lugar, o Cliente não quer desfazer-se de seu tipo de deslocamento, ele precisa manter-se em linha, ele não pode desviar-se. O Dealer é um entrave, e um ponto de atração suficientemente forte para fazê-lo parar, ainda que contra a sua vontade.

O Dealer responde que a linha reta em que o Cliente se deslocava ficou torta pela sua presença – a dele, Dealer – e o caminho ficou curvo para que ocorresse a aproximação entre eles, porque de outro modo, o Cliente teria se distanciado, já que estão em velocidades diferentes: “você andaria à velocidade daquele que se desloca de um ponto a outro; e eu nunca teria te alcançado porque eu me desloco lentamente, tranqüilamente, quase imovelmente” (p.93). E seguindo, conclui que “(…) nós nos movemos em dois planos distintos (…), e que, partindo de absoluta que era, a linha sobre a qual você se deslocava, ficou relativa e complexa, nem reta nem curva, mas fatal” (p.93).

O Cliente segue e acusa a interrupção de seu trajeto, e descreve-se como “em percurso, na espera, em suspenso, em deslocamento, impedido, fora da vida, provisório, praticamente ausente, por assim dizer não aqui” (p.93): ele partiu de um lugar, e já teria chegado a outro, ele está no futuro, estava já desde que iniciou sua linha reta, e por isso, agora interrompido o trajeto, não toca o chão, o presente. Em seguida, acrescenta ele a sua interpretação da situação, reordenando o espaço que o Dealer havia descrito na sua fala anterior: “Porque unicamente pelo peso desse olhar sobre mim (…) a linha reta, suposta de me levar de um ponto luminoso a um outro ponto luminoso, por sua causa ficou curva e se transforma em um labirinto escuro no escuro território onde me eu me perdi” (p.93).

O Dealer nomeia o espaço do presente, ele é o que nunca saiu dali e ali está, ele é o tempo como continuidade. O Dealer é aquele que puxa para baixo – a gravidade como a ameaça constante da horizontalidade. Ele se desloca quase imovelmente, ele não se desloca, ele está, imerso na paisagem, parte do deserto, e espera que a sua força de atração aja.

O Cliente pertence a um outro plano, o espaço do futuro: ele é o que não está ali, está em trânsito entre dois pontos, o percurso não lhe interessa, está em suspenso, não tem e não quer contato com o presente; a linha do tempo move-se para frente, em linha reta, definida, não comporta a curva. Seu movimento é preferencialmente o vertical, ascendente, longe do solo, deslocar-se horizontalmente lhe causa repulsa, transtorno, perda; esse tipo de deslocamento nivela homens e animais. Numa fala que tem relação com a o velho na estação de metrô em Roberto Zucco, ele fala da chegada do deserto: pela proximidade do Dealer, e pela falta de luz, a sua linha reta se perde, e vira um labirinto.

A distinção entre planos aqui trabalhada, onde o embate começa a se estabelecer, é mais tarde evidenciada, e descrita simbolicamente em visões diferenciadas de mundo entre Cliente e Dealer. (9)

De alguma forma, os dois, mesmo pertencendo a planos diferentes, se encontram. Pela gravidade, o Dealer puxa para baixo o Cliente, habitante do alto. Quando os dois se olham, estranhos no deserto, o embate começa.

4. O lugar do deal como o teatro

“Se você anda na rua, a esta hora e neste lugar, é que você deseja alguma coisa que você não tem, e esta coisa, eu posso fornecê-la a você (…).”; “(…) a esta hora que é inevitavelmente a mesma para você e para mim” (p.91): todos estão, atores e público, implicados nessa definição de espaço-tempo. O público é também aquele que saiu de casa, e desceu à rua, entrou num lugar onde as leis são outras – o espaço teatral como lugar de recriação – e deseja alguma coisa que os atores e a cena podem oferecer. A hora é inevitavelmente a mesma para todos, dentro e fora de cena; a hora e o lugar são os do deal entre palco e platéia, entre um ator e outro, entre o Dealer e o Cliente, e da mesma forma que na situação dramatúrgica, há desejo em jogo (o teatro pode ser também invadido pelo deserto).

Notas:

(1) O deserto é descrito pelo velho no metrô em Roberto Zucco quando, à hora de fechar, invade a estação (KOLTÈS, 2005: 28)

(2) “Já que não há uma verdadeira injustiça sobre esta terra a não ser a própria injustiça da terra (…) não há injustiça pra quem anda sobre a mesma porção de terra (…) e todo homem ou animal que pode olhar um outro homem ou animal nos olhos é seu igual pois eles andam sobre a mesma linha fina e plana da liberdade de ação (…)”. (KOLTÈS, 2005: 91)

(3) “Ao oeste de Nova York, em Manhattan, num canto do West End, onde está o velho porto, existem alguns hangares; há um em particular, abandonado, um grande hangar vazio, onde passei algumas noites escondido. É um lugar sumamente estranho, um refúgio de mendigos, bichas, camelôs, de acerto de contas, um lugar onde a polícia não entra nunca, por obscuras razões. Basta entrar e você se dá conta que está num lugar privilegiado do mundo, uma espécie de quadrado mistérios abandonado em meio a um jardim, onde as plantas poderiam ter crescido de maneira diferente: um lugar onde não existe a ordem normal, mas sim uma outra ordem curiosa, que foi se formando. Senti vontade de falar deste pequeno canto do mundo, que é excepcional e, apesar disso, não nos parece estranho; eu gostaria de contar esta estranha impressão que se sente ao atravessar este espaço imenso, aparentemente deserto, com a luz que vai mudando ao passar da noite, os ruídos dos passos e as vozes que ressoam, alguém a teu lado, uma mão que subitamente te agarra”. (Citação de depoimento de Koltès, na introdução de Fernando Peixoto (KOLTÈS, 1995: 13)

(4) “Não se pode escapar através dos muros, porque depois desses muros têm outros, tem sempre a prisão. É preciso escapar por cima, em direção ao sol. Nunca vão pôr um muro entre o sol e a terra” (KOLTÈS, 2005: 45).

(5) “Mas não há fuga daqui. É impossível. A prisão é moderna demais. Mesmo um prisioneiro bem pequenininho não poderia fugir. Mesmo um prisioneiro tão pequeno quanto um rato. Se ele passasse pelas grades maiores, depois, tem as grades mais finas, como um coador, e depois mais finas ainda, como uma peneira. Teria que ser líquido pra poder passar entre elas” (KOLTÈS, 2005:  21).

(6) KOLTÈS: 2005: 90.

(7) Todas as citações de texto serão daqui por diante numeradas por página apenas, e estão na única referência bibliográfica do autor utilizada neste trabalho.

(8) Aqui a tradução aponta, no texto, um jogo de palavras sem correspondência no português, com a palavra francesa latitude – nota de rodapé na página 91 do texto – que em francês tem significado duplo, interessante aqui por sua conotação espacial.

(9) Para o Dealer: “Acontece que, da mesma forma que eu sei – sem explicar mas com uma certeza absoluta – que a terra sobre a qual nós estamos colocados você e eu e os outros está ela mesma colocada em equilíbrio sobre o chifre de um touro e mantida nesta posição pela mão da providência, da mesma forma eu me esforço, sem realmente saber por que mas sem hesitação, em ficar no limite do que é conveniente, evitando o inconveniente como uma criança deve evitar se pendurar na beira do telhado antes mesmo de compreender a lei da queda dos corpos” (p. 98); para o Cliente: “Eu não quero uma paz vinda de qualquer lugar; eu não quero que encontremos a paz. (…) Assim você afirma que o mundo sobre o qual nós estamos, você e eu, é mantido na ponta do chifre de um touro pela mão de uma providência; acontece que eu sei, eu, que ele flutua, colocado sobre as costas de três baleias; que não há providência nem equilíbrio, mas o capricho de três monstros idiotas. Nossos mundos não são então os mesmos, e nossa estranheza está misturada às nossas naturezas como a uva no vinho” (p.100).

Referência bibliográfica:

KOLTÈS, Bernard-Marie. Teatro de Bernard-Marie Koltès. Tradução de Letícia Coura. Introdução de Fernando Peixoto. São Paulo: Hucitec, 1995.

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