É preciso pedir licença

Crítica da peça Só cheira borracha, da Companhia de Teatro Kudumba, de Moçambique

30 de julho de 2010 Críticas
Foto: divulgação

Nos primeiros minutos do espetáculo Só cheira borracha, da Companhia de Teatro Kudumba, de Moçambique, em cartaz nessa 3ª edição do Festlip 2010, ouve-se uma voz feminina narrando em off, antes do desenrolar da ação, que, em sua terra natal, é habito dos moradores pedir licença para entrar em determinada tribo e outros espaços privados. Ao dar início à reflexão desta montagem, que fez duas apresentações no Teatro Nelson Rodrigues, inauguramos com esse texto uma escrita em diálogo, perseguindo a possibilidade de lidar com diferentes modos de recepção de uma obra teatral. Uma das mais provocativas questões para a crítica é a de conversar com a recepção do público, percebida durante a apresentação do espetáculo. Os estudos sobre estética da recepção se encontram mais desenvolvidos no gênero literário e, se podemos compreender contemporaneamente a recepção de uma platéia com a noção de leitura, é possível realizarmos associações com a teoria. Portanto, trata-se aqui de uma experiência de formalização da investigação do entrecruzamento de diferentes perspectivas.

O grupo moçambicano tem na figura de Cândida Bila seu pilar de sustentação. Formada em sociologia e professora da Universidade Eduardo Mondlane, situada na capital Maputo, a atriz, diretora, dramaturga e figurinista deste espetáculo é militante do fazer teatral desde os dezessete anos, quando ingressara na única companhia de teatro profissional de seu país. Pesquisando sobre o histórico do grupo pela internet, percebe-se que os atores que compõem a Kudumba (língua changana do sul de Moçambique, que significa acreditar ou confiar) (1) – Paulo Sérgio, Cândida Bila, Margarida Madina, Messias Grachane, Mário Mabjaia e Amina Abudo – mantém um ritmo de trabalho regular, expandindo o campo de atuação também no cinema e em séries de televisão. Entretanto, segundo relatos da encenadora, mesmo com o destaque que a companhia vem adquirindo ao longo de sua trajetória, iniciada no ano 2000, participando de outros festivais mundo afora (2), pode-se imaginar quantos leões por dia devem matar para manter o grupo coeso e estável, visto que apoio e incentivo à prática artística são mínimos em sua terra natal.

A experiência do grupo, que passa por diferentes linguagens, talvez possa ser considerada um fator importante para a recepção, por assim dizer, positiva da encenação de Só cheira borracha. Um dos investimentos da teledramaturgia no Brasil dos últimos tempos tem sido a imbricação de certos temas que constituem a malha social entre os aspectos mais tradicionais que o drama psicológico apresenta. Assim, o elemento do humor que constitui a encenação do espetáculo acaba funcionando como gancho para que os espectadores acompanhem a fábula e sejam conduzidos para os momentos de suspensão que a abordagem sobre um assunto como a AIDS provoca.

A estrutura dramatúrgica trata, em princípio, do condicionamento que o interior do país sofre em relação à República da África do Sul, denuncia as dificuldades de um país formado eminentemente pela agricultura e por um processo de colonização que se estendeu até o ano de 1975, e, por fim, tematiza o contágio de sujeitos, pertencentes a classes e situações sociais distintas, pelo vírus HIV. No início do espetáculo, um velho morador de uma aldeia perde seu filho que morre em decorrência da infecção, obrigando seus dois outros filhos a procurarem serviço na capital. A partir daí, acompanhamos somente a vida de um deles, que passa a trabalhar na casa de uma família burguesamente abastada, sempre mau tratado por sua condição social pelos próprios patrões: a matriarca, seu filho e a esposa deste. Em companhia de um grande amigo, esta última figura masculina citada há pouco é levada para um prostíbulo e lá contrai o HIV. Não sabendo de sua condição de soropositivo, infecta sua esposa que está grávida. Esta última, ao saber da notícia que dará a sua sogra um neto já marcado pela fatalidade, põe fogo na casa.

Um drama? Quem lê a sinopse e as matérias de divulgação da peça podem achar que a cena expõe situações e conflitos profundamente delicados, tocando numa ferida muito longe de ser cicatrizada, que é o alastramento do vírus da AIDS. Ledo engano. Mas será mesmo um engano ou aponta para os processos nos quais a recepção está referenciada? Na cena em que a revelação da infecção pelo vírus é revelada, a platéia passa nitidamente por um momento de suspensão. Nossas experiências cotidianas indicam o quanto as questões trágicas sofrem a intervenção do riso, muitas vezes nervoso, que ameniza certos limites que não conseguimos ultrapassar. O riso aparece como uma espécie de saída, um ponto de fuga, ou seja, nos converte para a implicação na questão.

O histrionismo verificado na atuação do elenco masculino reforça a atmosfera cômica contida no texto proferido pelos atores, muito em particular, o desempenho de Messias Grachane, intérprete do criado da família burguesa, portador de forte energia cênica. Seu registro de atuação traduz a picardia necessária que é peculiar do personagem, que evoca a figura clássica muito presente na dramaturgia ocidental nos séculos anteriores.

A metáfora do já referido prólogo se desdobra indicando que o vírus só entra em “sua casa” se você deixar entrar, ou seja, se não se cuidar. Essa indicação está também formalizada no título do espetáculo.

Notas:

(1) http://mito-oeiras.com/blog/?p=52.

(2) Citaremos aqui duas participações da Companhia Kudumba em festivais internacionais de teatro mais recentes: na Mostra Internacional de Teatro de Oeiras – MITO, no mês de agosto do ano de 2009 (http://www.mito-oeiras.com/) e no Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica – FITEI, no mês de junho de 2010 (http://www.fitei.com/)

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