É preciso pedir licença
Crítica da peça Só cheira borracha, da Companhia de Teatro Kudumba, de Moçambique

Nos primeiros minutos do espetáculo Só cheira borracha, da Companhia de Teatro Kudumba, de Moçambique, em cartaz nessa 3ª edição do Festlip 2010, ouve-se uma voz feminina narrando em off, antes do desenrolar da ação, que, em sua terra natal, é habito dos moradores pedir licença para entrar em determinada tribo e outros espaços privados. Ao dar início à reflexão desta montagem, que fez duas apresentações no Teatro Nelson Rodrigues, inauguramos com esse texto uma escrita em diálogo, perseguindo a possibilidade de lidar com diferentes modos de recepção de uma obra teatral. Uma das mais provocativas questões para a crítica é a de conversar com a recepção do público, percebida durante a apresentação do espetáculo. Os estudos sobre estética da recepção se encontram mais desenvolvidos no gênero literário e, se podemos compreender contemporaneamente a recepção de uma platéia com a noção de leitura, é possível realizarmos associações com a teoria. Portanto, trata-se aqui de uma experiência de formalização da investigação do entrecruzamento de diferentes perspectivas.
O grupo moçambicano tem na figura de Cândida Bila seu pilar de sustentação. Formada em sociologia e professora da Universidade Eduardo Mondlane, situada na capital Maputo, a atriz, diretora, dramaturga e figurinista deste espetáculo é militante do fazer teatral desde os dezessete anos, quando ingressara na única companhia de teatro profissional de seu país. Pesquisando sobre o histórico do grupo pela internet, percebe-se que os atores que compõem a Kudumba (língua changana do sul de Moçambique, que significa acreditar ou confiar) (1) – Paulo Sérgio, Cândida Bila, Margarida Madina, Messias Grachane, Mário Mabjaia e Amina Abudo – mantém um ritmo de trabalho regular, expandindo o campo de atuação também no cinema e em séries de televisão. Entretanto, segundo relatos da encenadora, mesmo com o destaque que a companhia vem adquirindo ao longo de sua trajetória, iniciada no ano 2000, participando de outros festivais mundo afora (2), pode-se imaginar quantos leões por dia devem matar para manter o grupo coeso e estável, visto que apoio e incentivo à prática artística são mínimos em sua terra natal.
A experiência do grupo, que passa por diferentes linguagens, talvez possa ser considerada um fator importante para a recepção, por assim dizer, positiva da encenação de Só cheira borracha. Um dos investimentos da teledramaturgia no Brasil dos últimos tempos tem sido a imbricação de certos temas que constituem a malha social entre os aspectos mais tradicionais que o drama psicológico apresenta. Assim, o elemento do humor que constitui a encenação do espetáculo acaba funcionando como gancho para que os espectadores acompanhem a fábula e sejam conduzidos para os momentos de suspensão que a abordagem sobre um assunto como a AIDS provoca.
A estrutura dramatúrgica trata, em princípio, do condicionamento que o interior do país sofre em relação à República da África do Sul, denuncia as dificuldades de um país formado eminentemente pela agricultura e por um processo de colonização que se estendeu até o ano de 1975, e, por fim, tematiza o contágio de sujeitos, pertencentes a classes e situações sociais distintas, pelo vírus HIV. No início do espetáculo, um velho morador de uma aldeia perde seu filho que morre em decorrência da infecção, obrigando seus dois outros filhos a procurarem serviço na capital. A partir daí, acompanhamos somente a vida de um deles, que passa a trabalhar na casa de uma família burguesamente abastada, sempre mau tratado por sua condição social pelos próprios patrões: a matriarca, seu filho e a esposa deste. Em companhia de um grande amigo, esta última figura masculina citada há pouco é levada para um prostíbulo e lá contrai o HIV. Não sabendo de sua condição de soropositivo, infecta sua esposa que está grávida. Esta última, ao saber da notícia que dará a sua sogra um neto já marcado pela fatalidade, põe fogo na casa.
Um drama? Quem lê a sinopse e as matérias de divulgação da peça podem achar que a cena expõe situações e conflitos profundamente delicados, tocando numa ferida muito longe de ser cicatrizada, que é o alastramento do vírus da AIDS. Ledo engano. Mas será mesmo um engano ou aponta para os processos nos quais a recepção está referenciada? Na cena em que a revelação da infecção pelo vírus é revelada, a platéia passa nitidamente por um momento de suspensão. Nossas experiências cotidianas indicam o quanto as questões trágicas sofrem a intervenção do riso, muitas vezes nervoso, que ameniza certos limites que não conseguimos ultrapassar. O riso aparece como uma espécie de saída, um ponto de fuga, ou seja, nos converte para a implicação na questão.
O histrionismo verificado na atuação do elenco masculino reforça a atmosfera cômica contida no texto proferido pelos atores, muito em particular, o desempenho de Messias Grachane, intérprete do criado da família burguesa, portador de forte energia cênica. Seu registro de atuação traduz a picardia necessária que é peculiar do personagem, que evoca a figura clássica muito presente na dramaturgia ocidental nos séculos anteriores.
A metáfora do já referido prólogo se desdobra indicando que o vírus só entra em “sua casa” se você deixar entrar, ou seja, se não se cuidar. Essa indicação está também formalizada no título do espetáculo.
Notas:
(1) http://mito-oeiras.com/blog/?p=52.
(2) Citaremos aqui duas participações da Companhia Kudumba em festivais internacionais de teatro mais recentes: na Mostra Internacional de Teatro de Oeiras – MITO, no mês de agosto do ano de 2009 (http://www.mito-oeiras.com/) e no Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica – FITEI, no mês de junho de 2010 (http://www.fitei.com/)