A imagem permanece transitória

Estudo sobre o estatuto da imagem na performance Site Specific for Love e outras obras

13 de junho de 2010 Estudos

O que torna possível uma imagem conjugar simultaneamente em sua natureza transitoriedade e permanência? O que faz esta imagem desejar este paradoxo? Para a geografia, cada paisagem é singular, e dar conta da imensa gama de detalhes que ela comporta estabelece experiências imagéticas igualmente singulares. Em busca destas qualidades de estado a arte contemporânea incorpora a cada nova experiência estética propostas da ordem da especificidade, da experiência, do acontecimento, do processual, do variável, da flutuação, da impermanência, da efemeridade e da desmaterialização da matéria e corpos, ao mesmo tempo em que investe na particular qualidade de presença capaz de re-configurar o corpo em sua dimensão de sujeito. Mas o que torna uma imagem presente? Quanto mais a obra de arte contemporânea potencializa sua singularização através da sensorialidade experimentada no tempo e no espaço, com maior intensidade consegue estabelecer relações também singulares, múltiplas, entre sua estrutura e os receptores. Nesta elaboração a dimensão de acontecimento torna-se fundamental, colocando em foco as evidentes estratégias de brevidade do ato onde a finitude de sua construção, ou seja, a sua morte, coloca os espectadores diante do paradoxo. A imagem quer permanecer, mas já anuncia a sua partida. O acontecimento em sua maior força de permanência absorve os sujeitos que interagem com ele e, mesmo após a sua morte, continua ecoando indelével na experiência vivida.

A escultura que permanece transitória

De início a obra Cavalariças (Imagem 1), de Nelson Félix, inspira a reflexão a cerca do tema. O título já nos fornece pistas do que ela pretende. Batizada com o mesmo nome do espaço onde foi apresentada, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, o trabalho ocupa duas grandes salas em relação única e específica entre a forma escultural e a arquitetura, transformando-se em uma só coisa. O que se figura na relação estabelecida, no diálogo das formas que se projeta, é a permanência, como se a obra pertencesse ao espaço de maneira absoluta, como se ela sempre estivesse estado ali e/ou fosse sempre estar. No interior da sala o artista retira regularmente pedaços quadrangulares do chão de madeira onde finca 60 vigas em ‘I’ de ferro oxidadas. Faz sapatas para fixar estas vigas ao solo abaixo do piso de madeira das cavalariças. A terra que há muito estava encoberta pelo assoalho volta agora a ser exposta em interação com a obra. Estas vigas que alcançam a altura de seis metros fazem o olhar do espectador percorrer do subterrâneo revelado às tesouras de sustentação do telhado, em total integração das formas. Em quatro destas vigas, Félix insere um anel com 2,33 metros de diâmetro e cerca de dois metros de altura, esculpido em mármore de Carrara, pesando nove toneladas, criando um amálgama.

Imagem 1: A instalação escultórica Cavalariças, de Nelson Félix, no espaço homônimo na Escola de Artes Visuais do Parque Lage

A escultura em mármore foi cortada na Itália em uma máquina especial sob orientações de um desenho que Félix mandou por e-mail. A peça foi feita a partir de um bloco único para que ela não tivesse emenda alguma e pudesse reafirmar de maneira contundente seu caráter circular. No entanto, apesar de todo este trabalho realizado anteriormente, esta escultura só efetivamente acontece na instalação da obra no espaço, no fazer com que ela ganhe o status de transitoriedade permanente que transcende o seu lugar de mero objeto. Félix promove assim o acontecimento, deixando que o diálogo entre as partes forme com certa autonomia o resultado que se concretiza apenas no momento performático de instalação. O que se verifica aqui não é um simples processo de montagem que ocupa o espaço, mas um diálogo processual de forças que vai estabelecer o paradoxo. A ação que Félix promove indica não só uma utilização específica da sala de exposição, no caso como site specific, ou um ritmo e uma poética entre as vigas, o anel e a sala, sendo que as duas primeiras não estão simplesmente pousadas sobre o espaço, mas criam uma operação intrínseca que nos leva a crer que escultura e espaço são indissociáveis, ou pelo menos deveriam permanecer. Para inserir a escultura em mármore em volta das quatro vigas centrais fora necessário a retirada do telhado da sala, para que ela pudesse ser içada de fora para dentro, visto que as vigas quase tocam o teto. Ao mesmo tempo, a distância entre as vigas, que é maior do que o diâmetro da peça, fez com que, ao ser inserido no topo, o pesado anel tenha envolvido as vigas, deformando-as para o centro e, à medida que a escultura descia, as vigas iam projetando-se, convergindo em direções opostas (Imagem 2). Nesse diálogo que aconteceu no fazer, lidando com a imprevisibilidade, as formas se moldaram para que assim pudessem conviver. Havia um projeto anterior que direcionava e determinava o processo, mas o que resulta é dado pelo acontecimento onde a escultura se apropria e se insere no espaço, tornando-o uma só coisa.

Imagem 2: O anel de mármore força o empeno das vigas

O empeno criado pela ação do anel nas vigas cria uma imagem que pergunta de que forma aqueles materiais se entrelaçaram, visto que o anel parece estar preso àquela estrutura de tal maneira que não se sabe como foi possível ele ali entrar. No entanto, os elementos convivem harmonicamente conjugando o visível peso da escultura que continua exercendo sua força sobre as vigas e a sustentação feita pelas mesmas que permitem a flutuação do anel e imprime leveza ao objeto. A escultura, em sua forma inteiriça, lisa e pura se amalgama às barras retorcidas, enferrujadas, que quase tocam o telhado e des-indicam onde tudo se originou. Conquistam assim uma natureza indissociável que se estende à arquitetura da sala. A limpidez do mármore polido contrasta com a aspereza do ferro oxidado, com o chão bruto da sala e seu subterrâneo aparente, marcado pelo concreto das sapatas, e com o asséptico das paredes brancas, assim como o peso do anel contrasta com a leveza de sua flutuação, dada pela sustentação das vigas, que terminam por estabilizarem-se harmonicamente na poética que se figura. Diante de tantas imbricações o silêncio se instaura no espaço.

A imagem que se cria neste processo de junção das partes promove uma suspensão. O olhar se inquieta diante dos antagonismos que emergem e do acontecimento que ecoa. Ele não está mais ali, se retira, mas estranhamente permanece. A escultura surgiu de um acontecimento efêmero e único – a sua instalação – em um fazer onde o que está a priori projetado não importa mais, nem o passado nem o futuro, pois tudo será dito agora pelo momento em que ela se entrelaça ao espaço e este instante insiste em não se dissipar. O que irá afirmar a obra será dado pelo acontecimento específico, pelas tensões que atuam no espaço e pelas ações das peças umas sobre as outras, suspensas, retendo o movimento em uma temporalização da imagem. O acontecimento que agora se ausenta e permanece inquieto nas constantes formulações que a obra devolve ao espectador, se torna tão fundamental para a obra que passa também a existir enquanto registro em vídeo, remontando essa construção. Este vídeo é exibido paralelamente em outra sala no Parque Lage.

Outro dado que aponta a efemeridade desta obra de Nelson Félix é o próprio fato de que apesar de toda esta singularização e afirmação de permanência (a própria concretagem das vigas ao solo pontua isso), ela se diz transitória, visto que sua estada no espaço será dissolvida ao término da temporada da exposição. Sendo assim, não tornará jamais a ser como é agora e o que restará da obra serão os registros em foto, vídeo e, sobretudo, naqueles que vivenciaram a experiência da obra. Essa permanência não se dissolverá. A obra deixa assim a pergunta sobre a efemeridade das coisas indicando que, por mais permanentes que elas possam parecer, a morte virá um dia desvanecer.

Necessariamente, um experimento de escultura tem a ver com dois fatores básicos do mundo da vida: o transitório e o permanente. Assim como toma posse das cavalariças, procura torná-las intrínsecas à sua forma, a escultura passa também a impressão de que acaba de chegar. E, no devido tempo, vai partir. Está exposto o paradoxo: escultura plena, coisa única, ela se sabe, contudo uma ocorrência, um acontecimento que não sobrevive à sua apresentação. Íntegra, ela só vem a sê-la porque absorve o tempo heterogêneo, as instâncias díspares de seu processo de produção. E porque resiste à falsa segurança do futuro, a seus apelos enganosos. Ao futuro, reserva só uma resposta: uma versão diferente de si mesma. Tudo é a escultura pronta e, no entanto, ela é indissociável de um percurso físico e mental, uma série de manobras poéticas. (1)

O espaço específico

Os sites specifics ou sítios específicos surgem da necessidade do confronto de forças que ao dialogarem criam um novo estado da arte. Surgido em meados dos anos de 1970 em obras de artistas como Robert Irwin, Lloyd Hamrol e Athena Tacha, estes procedimentos trazem um novo status para a obra, em que a presença se qualifica de maneiras múltiplas, pelo caráter indissociável, pelo singular, pelo variável, pelo específico com o espaço onde se realiza e que se preocupa fundamentalmente com a experiência que a obra pode promover em quem a frui. “A minha arte nunca foi sobre ideias. Meu interesse nunca foi a abstração; tem sido sempre sobre a experiência. Minhas peças nunca foram pensadas para serem articuladas intelectualmente, mas para serem consideradas experiencialmente” define Robert Irwin em Reshaping the Shape of Things.

Nesse processo de experiências que a obra torna capaz de produzir, o espectador aparece muitas vezes sob a perspectiva de agente criador, estando inserido no interior da imagem fazendo com que efetivamente possa experimentá-la, interferindo no acontecimento como sujeito ativo da obra. Desde o surgimento dos panoramas no final do século XVIII, os espectadores começaram a ser levados para o interior da imagem, como é o caso do Panorama de Edimburgo, de Robert Barker, realizado em 1793. O Panorama de Mesdag (Imagem 3), de Hendrik Willem, 1880, coloca o espectador no centro da imagem sobre a plataforma que se prolonga em uma grande duna que cobre o piso e se estende até a pintura que circunda todo o espaço, onde se cria a ilusão de estar diante da praia Scheveningen. A ideia de retirar a imagem da moldura gerava um dispositivo, uma grande imagem pictórica que envolvia o espaço e se pretendia criar uma experiência de se ter uma paisagem em torno dos espectadores. Nesta perspectiva era possível o fruir da experiência que está além da contemplação. A maneira pela qual as sensações são afetadas a partir desta qualidade específica de presença, que se estabelece entre a imagem e o espectador, promove o início do abandono da relação apartada de observação.

Imagem 3: Espectadores no Panorama de Mesdag que cria a experiência de se estar diante da praia Scheveningen

Em um caminho mais adiante para esta proposta de uso instalativo do espaço, as experiências criadas por Hélio Oiticica nos seus penetráveis como em Tropicália, de 1967, fazem interagir espectadores e elementos em uma relação transubjetiva com a imagem que, apesar de circunstancial, não se pode apagar. A experiência vivida na interioridade da obra permanece. Na videoinstalação Cosmococas (Imagem 4), Oiticica traz o espectador para o interior da sala onde as projeções espacializadas tomam todo o espaço, retirando o cinema da tela fixa. Nesta operação o artista faz agora com que o espectador tenha que percorrer as imagens situando-se entre elas e não mais a parte delas como no dispositivo tradicional do cinema. Essa configuração que projeta nas paredes e teto tiram o cinema da ideia de dispositivo fixo, da relação frontal, implicando outra relação experiencial do espectador com a obra. Além de a narrativa estar agora confrontada com os novos parâmetros da arte neoconcreta, que buscou nas formas uma poética não-figurativa, abre-se agora à incompletude, fazendo com que esteja sempre em desenvolvimento. A pintura neoconcreta já havia retirado a moldura da tela, fazendo com que se diluísse no espaço, se incorporasse a ele, até que as instalações, os penetráveis idealizados por Oiticica propuseram o conceito de Suprasensorial. Focam na necessidade de uma experiência dos sentidos onde a obra reafirma a importância da presença, ou melhor, ela só existe nesta relação.

Suprasensorial é uma proposição aberta ao participador da obra para elaborar as próprias sensações fora de todo o condicionamento. O deslocamento do campo da experiência conhecido para o desconhecido provoca uma transformação interna nas sensações do participador, afetando em profundidade sua estrutura comportamental. Mais do que um novo conceito de arte o Suprasensorial surge como um novo conceito de vida. Em carta escrita a Guy Brett, Helio afirma: “O Suprasensorial tornou-se um ponto claro para mim, sinto que a vida em si mesma é o seguimento de toda a experiência estética”. (2)

Imagem 4: Espectadores experimentam o estar entre as imagens na vídeoinstalação Cosmococas, de Hélio Oiticica

Neste procedimento, a necessidade da presença e integração do corpo com o objeto se afirma. A obra se presentifica nas relações específicas com o espaço e no acontecimento que não independe do receptor, mas seus sentidos estão em jogo na experiência que emerge. Estas singularidades tornam a obra variável por não se repetirem da mesma maneira, por não serem pensadas como um circuito fechado, estando em diálogo constante com as partes e por sua duração estar sempre sujeita à fruição e à continuidade nos espaços de realização. Findada a temporada de exibição da obra, ela se encerra por ali, muitas vezes restando apenas o registro fotográfico ou em vídeo. Por esta perspectiva, a imagem se singulariza e se torna efêmera ao criar não só relações espaciais intrínsecas e específicas, mas por suas narrativas se conjugarem essencialmente pela sensorialidade. A sensação colocada como questão pela arte contemporânea faz refletir em como que essa imagem inclui e, sobretudo, promove a experiência de fazer parte, de estar incluído, inaugurando relações sutis e que irão instituir a forma para além dela mesma. A introdução do vídeo nas artes plásticas trouxe a questão da temporalidade, potencializando também outras experiências cinemáticas e espaciais em torno dos espectadores, em que a participação se tornou estratégia de criação da obra e fundamentalmente do acontecimento.

A imagem específica

Os trabalhos de Antonhy McCall conhecidos por Solid Light Films (imagem 5) como, por exemplo, Line Describing a Cone Breath, Between You and I, e You and I, Horizontal projetam tridimensionalmente no espaço negro imagens de formas geométricas e que se corporificam por uma bruma que torna o ar denso. Os vídeos projetores são colocados na sala de maneira a fazer com que o espectador ao entrar atravesse a imagem, criando novas formas a partir do seu movimento. O corpo assume aqui uma relação escultórica com as imagens que preenchem o espaço e vão se configurar das diversas maneiras com as quais os espectadores interagirem com elas. A escultura de luz se corporifica, se torna tátil ao mesmo tempo em que paradoxalmente é pura imaterialidade para o sentido da percepção tátil (na física a luz é também um tipo de matéria). A efemeridade destas esculturas está dada pelo seu princípio enquanto projeções de luz em vídeo que se tornam visíveis pela fumaça. Sem a luz da projeção e/ou a fumaça, nada mais existe nessa escultura que trabalha com dois elementos que se dissipam, se desmaterializam, mas que ao se materializarem permitem uma imagem que forma espaços e sofre interferência do espectador.

A série de esculturas Bichos, feitas em chapas de alumínio e dobradiças como espécies de origamis, ou projetos como a maquete Construa você mesmo seu espaço para viver, que idealiza uma casa onde as áreas são definidas por paredes móveis, ambos criados por Lygia Clark, colocam o espectador diante do mesmo desafio de interferir no objeto escultórico dando-lhe a sua forma e experienciando o fazer. Nesta relação que se estabelece, semelhante à experimentação das videoesculturas de McCall, a forma é criada através da experiência do corpo em contato com a obra. Entretanto, apesar destes trabalhos de Lygia incluírem a manipulação, criando uma relação sensorial do espectador com a escultura de modo que a experiência lhe seja singular, não possuem o dado de transitoriedade que a obra de McCall possui. Mesmo os objetos de Lygia, promovendo uma experiência que é circunstancial e, portanto, transitória, a obra enquanto matéria física (chapa de alumínio e dobradiças) existe e permanece. Hoje ela é muitas vezes, para sua preservação, exposta apenas como objeto para contemplação, o que contraria a natureza da obra. Enquanto as videoesculturas de McCall se materializam e desmaterializam na bruma que preenche a sala, colocando em evidencia a permanência e a transitoriedade. Apesar da imagem se corporificar no espaço e se submeter às interferências ativas do corpo, ela muitas vezes se torna de difícil apreensão, o que reafirma a sua impermanência, sua flutuação, o estado permanente de movimento das coisas.

Imagem 5: As videoesculturas de Antonhy McCall - Solid Light Films

“A questão de onde está o trabalho. O trabalho está na parede? O trabalho está no espaço? Estou no trabalho? Como você não pode obter um sentido completo da coisa de nenhum desses lugares – e, claro, o trabalho está em estado de movimento –, é difícil fixá-lo, ou agarrá-lo na mente como inteiramente compreendido. […] A questão – “o que, ou onde, está o objeto?” – é muito difícil de responder. Ao ser absorvido em uma das formas projetadas, você também está cercado. Deve haver algum elemento tanto de prazer como de ansiedade nesse tipo de compromisso.” (3)

No caso de McCall, a obra deixa de existir e só permanece enquanto registro se não estão sob as condições de exibição: a sala negra, a bruma, os projetores e os espectadores. A complexidade de fatores que envolvem as condições para a obra acontecer torna-a efêmera e circunstancial, afirmando sua permanência na experiência que promove, colocando o acontecimento, que é dado na relação com a obra, como ponto fundamental. Surge assim na obra de McCall um desdobramento performático onde o espectador é seu principal agente. A obra só existirá nessa relação onde o ver é instaurado não só com os olhos, mas é preciso girar em torno para ver com o corpo inteiro. Segundo Mark Hansen em Nova filosofia para as novas mídias, na era do digital o recorte da imagem não é mais dado pela moldura (frame), mas pelo corpo. O corpo é que faz o enquadramento da imagem dado, suas possibilidades de manipulação e flexibilidade. Para McCall a obra é feita para sofrer a interrupção – para mexer, tocar, passar na frente, criando uma presença relacional que altera as formas ali conjugadas. A geometria torna-se assim orgânica numa projeção que faz com que o invisível seja visível, o imaterial material, o transitório permanente nos estados que ela registra sensorialmente nos espectadores. Ao atravessarem a experiência, permanecem com as suas percepções irremediavelmente alteradas. Todo o acontecimento está no entre formar a imagem e ser formado por ela. E essa forma que se eteriza no espaço é como um filme que se assemelha a uma performance, que acontece naquele momento tendo o corpo como elemento que articula as partes, sendo estes um dos objetivos iniciais do artista.

Na videoinstalação Experiência de cinema (Imagem 6), Rosângela Rennó propõe uma obra que nos coloca diante da perspectiva da ausência que se presentifica na aparição da imagem no espaço. A artista projeta constantemente fotografias antigas de pessoas sobre a fumaça que é lançada verticalmente em intervalos regulares na área da projeção, fazendo com que a imagem que ali está se torne visível. Após oito segundos esta fumaça se dissipa, desmanchando também as pessoas que ali fantasmagoricamente se presentificavam. Esta imagem memória que se materializa faz ressurgir tridimensionalmente um ser que já não existe mais, trazendo de volta um corpo imaterial. Nesse ir e vir da imagem que se forma e se des-forma a experiência do acontecimento se dá no fazer e refazer que dura apenas oito segundos e em seguida deixa de existir de novo para voltar a existir em seguida. Esse jogo da presença ausente da imagem fotográfica que traz de volta um ser, se reafirma no próprio circuito da obra que cria uma presença que se ausenta, mas que se presentifica de novo em tempos regulares. Esta proposição “lembra tanto as impressões fugidias das lanternas mágicas quanto os primeiros usos da fotografia”(4). E estas imagens, que assim como surgem desaparecem, nos devolvem o olhar em sua desaparição. Na sua impermanência a obra se ausenta. Na imagem flutuante vemos os olhos que nos olham e, depois que elas se dissipam, ficamos apenas diante dos nossos olhos que nos olham. A própria experiência na interioridade da obra também implica nesse rebatimento de olhares onde estar diante da obra é estar diante de si.

Imagem 6: Fotografias são projetadas na fumaça que preenche o espaço em tempos regulares em Experiência de Cinema

Percebe-se uma diferenciação nas qualidades de imagens geradas pelo trabalho de McCall e de Rennó. O primeiro articula os elementos fazendo com que surja uma imagem-relação, pois ela só existe de fato quando o espectador passa e interrompe a imagem, interagindo e modificando a obra. Neste caso, passa a não haver mais diferença entre uma coisa e outra. A interrupção faz parte, ela é desejável, pois não estamos mais fora do filme, mas como seu personagem. A segunda cria uma imagem como presença ao corporificar as imagens fotográficas das pessoas na fumaça, construindo a percepção de uma presença. Outra qualidade de presença poderia ser apontada em trabalhos como Tall Ships (Imagem 7b), de Gary Hill, onde o espectador, ao se aproximar de uma série de telas que formam um corredor, aciona um sensor de presença, fazendo com que pessoas surjam na imagem e também se aproximem dele. Em Onochord, de Yoko Ono, (Imagem 7a) a artista segue o deslocamento no espaço feito pelo espectador com uma lanterna que o acompanha ao mesmo tempo em que ensina como dizer ‘eu amo você’ com o piscar da lanterna. Esta qualidade de imagem tem presença na relação que ela cria com o espectador, com seu corpo.

Imagem 7a: Em Onochord, na fachada do CCBB DF, um painel de LED reforça o texto da artista
Imagem 7b

A efêmera imagem achada

O trabalho de Isadora Bonder busca recriar imagens a partir de objetos cotidianos em desuso encontrados nos acervos das instituições que abrigam a realização da exposição da obra. O projeto não segue esquemas prévios, mas articula-se tão somente no fazer, no acontecimento que força interagir espaço e elementos, criando uma linha escultórica que redimensiona e re-funcionaliza os objetos. Esta perspectiva de realização pretende fazer do espaço, seus elementos e sua memória a própria essência da obra. Ela assim especifica-se plenamente, pois sua realização lida apenas com as condições e com o material que o espaço pode lhe oferecer. Nada alem é adicionado, nem um objeto externo, apenas a operação da artista em remontar aquele espaço, deslocando seus elementos de suas funções e posições habituais. Assim como a obra constrói-se no acontecimento, dadas as circunstâncias, a sua permanência será efêmera. Ao término da exibição o trabalho é desmontado e resta apenas o registro fotográfico da instalação. As peças retornam aos locais de onde foram retiradas nas instituições que, apesar de muitas vezes estarem em desuso ou serem consideradas lixo, como são patrimoniadas não podem sair destes acervos e ficam acumuladas em depósitos. Há nesse processo de instalação da obra um dado performático que envolve a feitura no acontecimento. Este ato coloca em diálogo o corpo do artista com as peças e a concretização da obra, que não acontecerá independente destes, mas exclusivamente no instante, no fazer, que assim como circunstancialmente determina a obra, também ela se diluirá ao término da temporada de exibição, adquirindo seu status de permanente imagem efêmera. Seus elementos constituintes permanecem no espaço, mas desagregados de sua forma escultórica. Além da experiência que ela promove criar um diferencial naquele que a vivência.

Imagem 8: Instalação escultórica Engrenagem – 2º afeto, de Isadora Bonder ocupou o vão central da escada do Castelinho do Flamengo

Na obra Engrenagem – 2º afeto (Imagem 8), Bonder ocupou o vão central da escada do Castelinho do Flamengo entrelaçando televisores, refrigeradores, cadeiras, armários, lâmpadas, fios, monitores e diversos objetos que foram encontrados pela própria artista em salas e depósitos do espaço. Todos estavam em desuso, danificados, mas como eram patrimoniados não podiam ser descartados, acumulando-se como lixo na instituição. Dessa forma, a obra ao se formar já é fadada a sua finitude, não só pelas relações tão específicas que a montagem faz com que ela ganhe no espaço, como nas obras de Nelson Félix e de Antonhy McCall, mas porque na impossibilidade de retirada dos objetos, ela é obrigada a se dissolver e esconder no próprio espaço onde foi criada. Essa transitoriedade plena do trabalho afirma as presenças que se ausentam. Os objetos que ganharam sua invisibilidade enquanto matéria em desuso, mas que não é descartada, quer dizer, permanece presente estando ausente no espaço utilitário, assumem agora outra visibilidade, re-significados na instalação escultórica que torna presente a ausência de um tempo que a memória impressa nos elementos nos remete. No entanto, estes objetos brevemente se ausentarão novamente, retornando ao status de invisibilidade presente após seu desmonte. A memória que guarda estes objetos é, sobretudo, o artifício que mais impregna essa imagem quando experimentamos este espaço que precisa ser percorrido, adentrado para que se configure a relação. No Castelinho, o espectador tinha que percorrer toda a escada em espiral onde a obra acontecia no vão central, o que fazia com que ele tivesse que circundar a obra de maneira ascensional, para então fruir por diferentes perspectivas e perceber pequenos detalhes vistos apenas de determinados ângulos. Em Caiximiti (Imagem 9), criada para o 7º Salão do Mar, realizada no Porto de Vitória, a artista içou do mar um barco em deterioração que estava semi-afundado e guardava memórias inscritas em sua superfície. Colocou no seu interior uma lâmpada que iluminava uma vegetação que crescia e em cima podia ser lido “… após o retorno mais tarde quisera narrar minha aventura”. O interior da embarcação era visto através das fissuras no casco.

Imagem 9: Caiximiti, de Isadora Bonder

O uso dos objetos comuns, do dia a dia, que estão em desuso, deslocados de suas funções habituais, redimensionados no próprio espaço de onde pertencem, conforma uma situação de surpresa e estranhamento que leva a um percurso de fruição. Em confronto direto estão presença e ausência que se revelam no acontecimento de feitura da instalação, nas escolhas que a artista faz com as possibilidades específicas de realização que o local lhe oferece. Lida com os achados, com o instante, com o efêmero e, sobretudo, com a memória como uma arqueologia do próprio espaço. No entanto, esse processo de escavação pelo qual a obra surge passará como um flash, que assim como foi montada, agrupando elementos, alguns estranhos entre si, voltará a se desintegrar sem deixar qualquer vestígio. E, na sua ausência, estará presente na experiência daqueles que vivenciaram o encontro com a obra, permanecendo em sua memória afetiva.

Acontecimento específico

A performance Site Specific for Love, que investigo artística e laboratorialmente no Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, se utiliza de dois pontos fundamentais que fazem com que ela assuma um caráter de permanente imagem efêmera. O ato performático faz com que esta imagem seja singular, pois se mobiliza pelo acontecimento que é gerado por uma conjuntura particular. Os elementos de construção de uma performance lidam com as subjetividades do performer que se coloca em jogo com algumas determinações feitas a priori, que servem para gerar o acontecimento com os espectadores. A performance acontece nessa medida em que observadores passam também a ser criadores, interferindo diretamente na situação que transcorre. Dessa maneira, passa a ser irreproduzível em outro espaço, pois singularizou-se com a interferência de quem ali não estará de novo. Esta performance configura-se no espaço de maneira que o espectador está no entre das imagens que vão surgindo (Imagem 10). Com isso, o simples fato da sua presença física no meio do espaço onde transcorrem os diversos níveis de ação performática, já cria um diálogo presente desta imagem com o espectador. Ou ainda, quando são realizadas entrevistas com espectadores e estes fornecem material dramatúrgico/narrativo que é utilizado durante o acontecimento.

Já a questão espacial que igualmente nomeia o trabalho, site specific, faz com que a cada nova apresentação o trabalho se configure de maneira particular de acordo com as especificidades do local onde é apresentado, as circunstâncias e condições físicas e econômicas de realização do mesmo, as reflexões que vão sendo incorporadas, que são retiradas das experiências de apresentações anteriores, além do próprio tempo que age sobre as subjetividades dos artistas performers que veiculam e expressam, através do corpo inserido no espaço poético, os conceitos da obra. Nesse sentido é possível incorporar as questões levantadas num processo investigativo e laboratorial do trabalho. A cada nova apresentação é possível aferir os resultados e os objetivos.

Imagem 10: Espectadores entre imagens projetadas e performáticas em Site Specific for Love, no evento Performance, Presente e Futuro/Oi Futuro

Outro caráter de especificidade do trabalho está nas imagens em vídeo que são projetadas durante a performance e dialogam diretamente com o acontecimento. A casa que serviu como locação para a gravação do vídeo fora utilizada da mesma maneira que fora encontrada, sem interferência (Imagem 11). A performance se incorpora a este espaço, é desenhada a partir dele, lidando com sua estrutura, sua natureza. Este espaço inspira e estimula a feitura das sequências sem obedecer a um roteiro feito anteriormente. Assim como a performance que acontece no momento, o vídeo será realizado de tal maneira, sendo que o espaço irá determinar as relações específicas que vão surgir. A casa utilizada, encontrada em estado de abandono tinha, por exemplo, um chão repleto de fissuras e em muitos pontos ameaçava desabar. Isso gerou um cuidado em caminhar e indicava algumas trajetórias que não poderiam ser feitas e outras que poderiam. Uma situação de espelhamento dada pelas portas e cômodos que se acumulavam permitiu um trânsito coreográfico dos performers no espaço. Em outro momento as fissuras que existiam nos rodapés das paredes permitiram que a câmera fizesse toda uma sequência de imagens por uma perspectiva que enquadrava apenas os pés que passavam anônimos (Imagem 12). A imagem criada como um site specific se revela através de ausências e presenças, transitoriedade e permanência. A começar pela própria memória inscrita na arquitetura da casa que se atualiza na performance.

Imagem 11: A mesa, cadeira, folhas e galhos espalhados pelo chão foram utilizados no vídeo da mesma maneira que foram encontrados na casa
Imagem 12: Fendas nas paredes e assoalho permitiram que a câmera fizesse planos dos pés que passavam pelos ambientes da casa abandonada

A ausência presente que se figura nas paredes, no piso, nas escadas, nos portais, janelas, móveis, todos em deterioração, que expõe as suas marcas e revelam até mesmo a ausência de materiais que já desapareceram, como os rodapés que permitiram a câmera enquadrar os pés que percorriam os muitos ambientes, entra em choque, em contraste com os corpos, com a performance que se desenrola na interioridade da imagem projetada e traz vida ao espaço morto. As presenças dos performers naquele espaço e seus estados emocionais reafirmam as várias ausências. As figuras que transitam na imagem em dado momento também vão ganhando transparência e viram fantasmas que vão desaparecendo, se ausentando (Imagem 13). Assumem igualmente seus lugares de transitoriedade. Estão ali e suas presenças vivas contrastam com a matéria que se deteriora e aponta para um tempo que passou, que já não existe mais. No entanto, assim como as presenças que outrora ocuparam aquele espaço, as que estão agora, em breve, deixarão de existir. E após algumas sequências no espaço labiríntico da casa, estas presenças vão se desintegrando, assumindo seu status de fantasma, de memória que passa a flutuar pela imagem. Estas relações trazem o que estava invisível para o visível. O que estava abandonado para uma re-atualização de sua memória, onde fantasmas se corporificam habitando outros tempos, conferindo outras dimensões à casa, se incorporando a uma narrativa.

Imagem 13: Performers circulam pelo espaço em ruinas e vão assumindo transparência fantasmagórica

O corpo presente reconfigura e redimensiona a especificidade do espaço casa utilizado como locação para a feitura do vídeo. Confere novos contornos e promove uma experiência da ordem do processual. Não só no momento da realização do vídeo, mas também do diálogo que o ato performático irá estabelecer com este vídeo, produzindo o acontecimento nas apresentações do trabalho. Esse, por sua vez, torna-se da ordem do variável, visto que lida com as especificidades de cada espaço e das relações performáticas que se efetivam entre os sujeitos – artistas e espectadores. Nesse caso, o que acontece no fazer não se fixa a um projeto anterior, mas, sobretudo, no acontecimento, pois envolve as circunstâncias, o espaço, as pessoas, as condições, permitindo que estes interfiram diretamente na realização que só se dá no momento em que as peças entram em contato umas com as outras. A ação de um material sobre o outro que faz parecer que sempre estiveram ali, mas ao contrário são uma construção que não funciona de maneira autônoma, sendo assim partes indissociáveis. Assim como as ações de um sujeito sobre o outro que abrem campo para perceber como as coisas se afetam e criam o paradoxo a partir de experiências simples, de imbricações cotidianas, que estão no dia a dia e se revelam singulares, como as paisagens que a geografia analisa e que comportam uma infinidade de possibilidades. Estas imagens, singulares em sua natureza, se tornam efêmeras, pois jamais se conjugarão repetidamente. Cada acontecimento é único. E no caso da imagem em vídeo ela torna permanente em seu registro esta relação entre os corpos e a matéria que transitoriamente permanecem e desaparecem.

Notas:

(1)BRITO, Ronaldo. Cavalariças, de Nelson Félix: Texto do catálogo da exposição, jan. 2010. Disponível em : http://www.eavparquelage.rj.gov.br/eavText.asp?sMenu=EXPO&sSume=PEXPO&sText=227.

(2) MACIEL, Kátia (org.). O cinema tem que virar instrumento. As experiências quase-cinema de Hélio Oiticica e Neville de Almeida: in Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009. P. 284

(3) COBURN, Tyler. Filmes sólidos – Tyler Coburn entrevista Anthony McCall in Cinema Sim – Narrativas e Projeções. São Paulo: Itaú Cultural, 2008. P. 66.

(4) BIASS-FABIANI, Sophie. Rosangela Rennó: memórias refletidas: in Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009. P. 325.

Referências bibliográficas:

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Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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