O coração como alvo

Crítica da peça O silêncio dos amantes

10 de janeiro de 2009 Críticas

Através de O Silêncio dos Amantes, o diretor Moacyr Góes parece anunciar uma retomada da linha de pesquisa que vinha desenvolvendo há cerca de 20 anos no Espaço III do Teatro Villa-Lobos. Esta “proposta” desponta no próprio nome escolhido para batizar a nova companhia, Escola 2 Bufões, que remete, imediatamente, ao talvez principal espetáculo realizado pelo diretor naquela época – A Escola dos Bufões, de Michel de Guelderode.

De fato, em O Silêncio dos Amantes, que transporta para o palco quatro contos de Lya Luft (O Anão, O que a gente não disse, Um Copo de Lágrimas e A Pedra da Bruxa) extraídos de seu livro homônimo, Moacyr Góes reedita alguns recursos que evocam montagens apresentadas não necessariamente no período referido. Um bom exemplo é a utilização de objetos em miniatura, que traz à lembrança a sua versão de Peer Gynt, de Ibsen. Entretanto, muito mais do que no final da década de 80 e na primeira metade dos anos 90, o diretor demonstra agora querer falar ao coração do espectador.

Para alcançar tal objetivo, Moacyr Góes optou por uma dramaturgia direta e “acessível” – distante do programa que vinha imprimindo, composto por obras como Antígona (Sófocles), Epifanias (Strindberg) e Baal (Brecht) – que não confronta o público com eventuais desafios à compreensão. São textos que visam a suscitar uma reverberação no espectador a partir da exposição de situações centradas na dificuldade em enxergar o outro para além de uma dada condição física (caso do menino anão, rejeitado pelo pai) ou, ao contrário, de uma suposta falta de indícios (a mulher desorientada frente ao inesperado suicídio do marido). O diretor também adotou nesta montagem determinadas diretrizes com o intuito de estimular a identificação do espectador com as histórias contadas, principalmente em relação à trilha sonora de Ary Sperling, que embala a platéia e sublinha climas emocionais.

Moacyr Góes assina uma montagem que transita entre o emprego de mecanismos de distanciamento e de adesão. Esta oscilação é mais bem resolvida no primeiro dos quatro contos encenados, no qual Leon Góes interpreta o anão, mas do lugar do manipulador de um boneco – o personagem. Ao mesmo tempo em que há uma divisão colocada entre o ator e o personagem/fantoche, não é possível separar por completo um do outro. Afinal, o personagem só ganha vida por meio dos movimentos do ator. Há uma complementação, evidenciada em instantes como aquele em que o anão denomina seu corpo como “pequeno e deformado” e Leon Góes materializa esta visão através de seu olhar em relação ao boneco. No que diz respeito ao registro vocal, o ator não compõe “voz de personagem”, nem para o anão e nem para as mencionadas figuras de sua família. Esta escolha leva-o a valer-se de recursos mais sutis na projeção da fragilidade do anão. É questionável apenas o momento em que o ator emula um choro acompanhado pela música. Trata-se do primeiro sinal do que virá a seguir.

Na segunda história, O que a gente não disse, Giselle Lima interpreta a protagonista – uma mulher que, assombrada diante do suicídio do marido, procura rever a sua história conjugal a partir de uma posição menos acomodada. Há na encenação desse conto uma certa alternância entre a narração e a vivência, o distanciamento e o comprometimento, que expressa com precisão a condição de uma personagem que ora se relaciona com um boneco em miniatura (representando o marido), ora se torna marionete manipulada por um titeireiro. A atriz dosa com controle a extensão emocional que marca a encenação do conto.

Nas duas histórias seguintes a emoção é assumida como a nota dominante. O objetivo principal, ao que tudo indica, é buscar o envolvimento do público. Moacyr Góes alcança este intuito, mas os resultados obtidos são, sob o ponto de vista artístico, bem menos interessantes. Em Um Copo de Lágrimas, Augusto Garcia interpreta o menino que cresce afetado pelos sucessivos descontroles da mãe alcoólatra. Ao contrário de Leon Góes, emprega expedientes mais convencionais, como a busca por uma “voz de personagem”, e realça as palavras por meio de gestos largos, desenhados. Em A Pedra da Bruxa, Carla Rosa faz a mãe de um menino que desapareceu sem deixar vestígios e atua sob o impacto da emoção, próprio a uma personagem que ainda não alcançou algum grau de distanciamento em relação à tragédia, apesar de revelar estratégias para lidar com ela.

As várias gavetas e os alçapões que compõem a grande caixa, principal elemento da cenografia de Paulo Flaksman, realçam talvez o núcleo temático de O Silêncio dos Amantes por simbolizarem, em alguma medida, a carga de não-dito, de subterrâneo, que atravessa os personagens e determina as suas ações. A caixa é um espaço de atuação delimitado no meio do palco do Teatro Maria Clara Machado e emoldurado por focos de luz ocasionalmente manipulados pelos próprios atores. Fora dele, mas dentro da cena, está o músico (Rafael e Leonardo Sperling revezando-se nas sessões). Ao fundo, um lençol de aparência fantasmagórica sublinha a qualidade lúdica da montagem. A atmosfera teatral própria de brincadeiras infantis, de roupas tiradas de um antigo baú, também vem à tona nos figurinos de Inês Salgado e Fúlvia Costalonga e no modo como certos objetos são dispostos, como os copos de Um Copo de Lágrimas, que adquirem um sentido mais abrangente do que o de sublinhar a instabilidade emocional do personagem.

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