Onirismo e vicissitudes em comédia
Crítica da peça 5 Garrafas de cana e 1 caju maduro, de Leon Góes
5 Garrafas de cana e 1 caju maduro, escrito e dirigido por Leon Góes, estreou no teatro do Parque das Ruínas, onde está em cartaz até este final de semana. O espetáculo é uma comédia musical popular que surpreende por uma dramaturgia que tem a forma dos sonhos e, ao mesmo tempo, expõe um lugar limite adequado ao tempo da realidade – o das conversas de bar regadas a cachaça. O efeito resultante é que o tema não é tratado como uma cópia pronta, mas sim de um jeito como pode ser percebido. A visada é crítica, mas trabalhada com graça pelos modos, figuras alegóricas e vocabulário da vida boêmia do Rio Grande do Norte. Os personagens são construídos por tipificações, o que possibilita que vejamos uma espécie de espelho da sociedade, onde seria a manifestação de uma pequena cidade do interior.
O sentido mais particular aqui pode ser visto como o valor da “função” com significado de espetáculo que tem o poder de provocar nossa reflexão por meio das escolhas de uma encenação lúdica, que privilegia o contraste de cores, de corporalidades grotescas, máscaras do tenebroso e da mistura de falas melódicas com música. A encenação não se orienta por uma dramaturgia em função de unidades de ação que levam a uma direção determinada, mas se traduz pelo desfile dos personagens em lugar de um conflito configurado.
O texto é um trabalho inspirado em memórias pessoais dos tipos que circulam nos locais populares e nas casas nordestinas, mas que ultrapassa seu âmbito ou cunho biográfico. A trama é permeada por uma ironia que move certas conexões com o público. O componente irônico no espetáculo nunca é destituído de humor, o que deixa a cena livre para tratar questões que afetam a moral e os ditos bons costumes de uma maneira bastante próxima da experiência que se tem na vida. A conjugação do humor com ironia aumenta o alcance das referências contextuais empregadas, tornando acessível à crítica e ao prazer mesmo quem não se sente diretamente implicado com tal universo.
O texto também tem a característica de se fazer ressoar em imagens suscitadas pelos termos populares, enriquecendo ainda mais a livre expressão da cena e criando uma teatralidade de fantasia que entra em relação com a corporalidade dos atores investidos de seus personagens. Nesta atmosfera é que se dá a ver a figura do diabo ou de outras que pontuam a encenação como, por exemplo, uma alegoria de cachorro que habita a parte embaixo do balcão de bar como um mal-estar bem instalado.
A cenografia criada por José Dias permite a mobilidade dos atores no pequeno palco do teatro e funciona como espacialização do bar fictício – um misto com elementos de folguedos. Os figurinos de Carol Lobato distinguem as figuras, tanto por meio das sensações que as cores provocam, quanto por concepções heterogêneas como a da Rumbeira, do “cigano-pirata” Johnny Depp, do corcunda Baixo Meretrício e do marinheiro Chico Doido, para citar algumas.
O elenco composto por Adriana Torres, Daniel Carneiro, Daniel Villas, Jade Petruccelli, Ricardo Damasceno, Sergio Kauffmann, Tauã de Lorena e o próprio Leon Góes, está afinado com a proposta do espetáculo – mesmo com um humor encarnado, constroem certa fantasmagoria. A meu ver, além de um conjunto harmonioso, é possível destacar a figura e a voz clara de Sergio Kauffmann como acerto nos personagens do médico e do diabo, o ar de fragilidade de Daniel Carneiro como o marido sifilítico que alia elementos tênues de sublime e de grotesco (homem/boneco/ser/objeto), e Jade Petruccelli, que confere ao longo da encenação uma porção de humanismo ao seu personagem. Leon Góes é um ótimo mestre de cerimônias do senso comum que, não por acaso, detém uma das chaves da porta do inferno.
Dinah Cesare é teórica do teatro, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na Linha de Pesquisa Poéticas Interdisciplinares e mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.