Um modo de estar no tempo

Crítica da peça -Nu de mim mesmo

10 de junho de 2008 Críticas
Atores: Otto Jr e Julia Lund. Foto: Guga Melgar

O espetáculo Nu de mim mesmo parece nos propor uma experiência no tempo. E assim como o sujeito falante de Primeiro amor de Samuel Beckett, estar no tempo requer que nos balizemos por eventos afetivos de nossa história. Para resgatá-los e enfrentá-los é preciso rememorar, entrar em contato com as ruínas que sobraram do nosso esquecimento. Em Beckett foi preciso voltar ao túmulo do pai e anotar a data de sua morte, para mais tarde voltar e anotar a data do seu nascimento. Começa-se pelo fim para depois voltar ao início. Essa relação problemática com o tempo sinaliza que uma de suas virtudes é se oferecer mais como lógico do que como cronológico. De modo semelhante, no início do Nu somos avisados do tempo de duração da ficção, ou seja, somos imediatamente projetados ao final. E no final do espetáculo o personagem do pai diz para o filho que eles ainda têm tempo, somos então remetidos a um novo começo.

Acredito que seja preciso dizer que, como nos diz Josette Féral, todo discurso crítico a respeito de uma obra é precário, ou seja, não existe um direito concedido nem um lugar estabelecido de onde se fala. E mais ainda, a idéia comum de que a obra, que é da esfera do fazer, possa ser traduzida em palavras, é constituída por indeléveis riscos. Uma possibilidade talvez seja configurar uma reflexão em conversa com as regiões que em nós são afetadas pela obra e, como nos diz Kant, jogar com a faculdade imaginativa. No caso do espetáculo Nu de mim mesmo um dos elementos deste jogo é o que comumente podemos considerar o impróprio ou, o “estrangeiro”.

Este elemento impróprio parece ser, em uma boa medida, o tempo de exposição da cena como um tempo de experiência com a qual não estamos familiarizados. Assim sugere o personagem do pai que, não coincidentemente, é físico, e propõe o jogo de encontrar, nos eventos cotidianos regidos pelo tempo acelerado da modernidade, suspensões que evoquem experiências, de algum modo, singulares. A estrutura do espetáculo encena temporalidades distintas em simultaneidade: a história que permeia toda a narrativa acontece, por assim dizer, no presente e é atravessada por outras que aconteceram no passado. Esta junção de temporalidades vai, aos poucos, criando um estado de presença para as narrativas e para os atores que só pode ser percebido por uma apreensão que possibilita a realização de sentidos tênues, mais diáfanos do que definitivos. A cena se estrutura pelo seu conteúdo e o espectador, assim como os reincidentes personagens em fuga, com experiências de perdas e buscas incertas, precisa se dispor a pegar e a abandonar sentidos e sensações, por exemplo, a respeito das relações entre o que é o real e o ficcional, entre o que é memória do indivíduo e o que faz parte da memória coletiva.

O formato de acontecimentos e histórias divididos em pedaços, fragmentos, pode ser conhecido dos espectadores contemporâneos já afeitos à idéia de que o sujeito não é uma unidade, mas o que aqui parece impróprio é, por um lado, o tempo extenso; e, por outro, a configuração de uma espécie de unidade ao final. Contudo, essa unidade nunca deixa de ser problemática e provocadora e o tempo do espetáculo parece tornar                                                                                                               possível a apreensão de uma unicidade de si mesmo pela relação com as diversas alteridades. Voltando à inspiração do dramaturg Flávio Graff em Walt Whitman, a celebração a si mesmo é assumida pelo outro porque “cada átomo que pertence a mim pertença a você”, assim como as folhas da relva, que são individuações que se multiplicam do mesmo caule rasteiro. A obra de Whitman também foi considerada imprópria por subverter a métrica da poesia de seu tempo e, de certo modo, por ter se constituído em um único livro que foi reelaborado diversas vezes em um movimento de multiplicidade semelhante ao da forma das histórias do espetáculo.

No texto que Daniele Avila escreveu sobre o espetáculo Nu de mim mesmo ela se refere a uma possibilidade de apreensão aurática do que é visto em cena, que por sua vez também se oferece em formas fantasmáticas que se dão a ver e que se escondem. Se voltarmos a Walter Benjamin, um dos filósofos citados no referido texto, encontramos uma definição de aura que parece poder enfrentar a questão da extensão temporal do espetáculo: “É uma estranha teia de espaço e tempo: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja.” E ainda dá um exemplo: “Acompanhar com o olhar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre o observador, até que o instante ou a hora participem de sua aparição, significa respirar a aura dessa montanha, desse galho.”

Evocar espaço e tempo como elementos de uma experiência sensível, e não simplesmente como coisas “em si”, causa certo ruído, mas ao mesmo tempo é estratégico, pois quando queremos falar de um evento singular costumamos dizer “aqui e agora”. A extensão temporal do espetáculo parece propor um observador modulado por uma recepção que apreende os eventos em sua singularidade no espaço.

A meu ver, um bom exemplo dessa singularidade é a surpresa que surge pelo recorte avessado da música de Flávio Graff, que parece tornar indissociáveis linguagens antagônicas. A aparição da melodia (e do cantor) no meio do diálogo desestrutura a forma dramática e parece materializar o lugar de onde parte a angústia que pontua o gesto dos atores. Da forma como vejo, essa aparição é insidiosamente subversiva da prosa em curso por operar analogamente (ao mesmo tempo sem ser análoga) às formas arcaicas das narrativas melódicas dos rapsodos gregos. As narrativas gregas eram interrompidas por explicações, que não eram cantadas, eram o contra canto, ou o que chamamos de prosa, e aqui a música é o que suspende o que está sendo dito, para dizer de outro modo. O espaço simbólico que se abre com a entrada da música faz parte das configurações “estrangeiras” da encenação, ou seja, não pertencem ao nosso manancial comum de referências, colaborando para a desestruturação de sentidos determinados.

O espaço cênico do espetáculo Nu de mim mesmo parece instaurar uma espécie de contorno poético possível para a recepção de uma fábula contemporânea: abriga e ao mesmo tempo faz transbordar as histórias. O lugar da ação é dado pela disposição retangular das 40 cadeiras dos espectadores. O tom pastel do chão de madeira combina com o das almofadas e ainda com o tom de algumas peças de roupa que os atores estão usando antes do início do espetáculo. A idéia de superposição, ou de tom sobre tom, transborda, de certo modo, para o posicionamento das telas que recebem as projeções. Elas têm tamanhos diferentes, são maquinadas distintamente mas, ao mesmo tempo, muito suavemente. As imagens que passam nas telas também se estruturam por uma idéia temporal e ainda configuram uma dialética espacial quando se abrem em horizontes e campos, ou nos envolvem de interiores, da fixidez das frutas sobre a mesa, de equações e gráficos ou de escritas verbo-visuais que se relacionam com a cena. Se em alguns momentos elas mostram frases que dizem respeito a estatísticas ou a fatos, como os mortos da ditadura militar da história recente do Brasil, parecem menos com qualquer tipo de registro do que com um certo ar que inalamos na experiência espaço-temporal. A sensação que possibilitam parece ser a de que afetos e imaginação são matérias que se inscrevem politicamente nos viventes, ou seja, nos fazem agir. Em Nu de mim mesmo, estar no tempo e contemplar são elementos dialéticos do fazer.

Referências bibliográficas:

BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” in Obras escolhidas. Vol 1. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996.

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