Perguntas a Nelson

Crítica da peça “Cuidado com o cão”

10 de maio de 2008 Críticas

Cuidado com o cão, da Cia de Teatro Íntimo, é o terceiro dos quatro espetáculos encenados pela companhia desde a sua formação. Estreado em 2007, o espetáculo foi imediatamente precedido pelo esquete Pouco não é amor, apresentado no festival Mercadão Cultural no segundo semestre de 2006. Ainda que este último não conste no folheto com a listagem dos espetáculos da companhia, minha expectativa e minha recepção para Cuidado com o cão foram absolutamente determinadas pela apresentação do esquete, especialmente pois o tamanho reduzido de seu formato suscitava o desejo por uma continuidade, que, de certa forma, pude observar no espetáculo que acaba de cumprir temporada no espaço da Cia dos Atores.

O esquete Pouco não é amor foi montado a partir de um conto de Nelson Rodrigues, adaptado por Tarcísio Lara Puiati. Em uma progressão de cenas breves, três personagens típicos do universo rodrigueano – o marido, a mulher e o amante – envolvem-se em embates, dois a dois, em direção ao desfecho trágico. Num palco escuro, iluminado apenas por refletores manipulados em cena pelos próprios atores, criavam-se recortes visuais belos e incompletos para os fragmentos de cenas. A interpretação dos atores investia fortemente em uma vertente psicológica para os personagens, contribuindo, com seus tempos mortos, para uma ambientação soturna sobre a conhecida estrutura dos contos de Nelson.

O material de divulgação do novo espetáculo, Cuidado com o cão, escolheu não explicitar a referência a Nelson Rodrigues, talvez por se tratar apenas de uma entre outras inspirações para a construção desta peça, inédita, com texto de autoria de Tarcísio Lara Puiati e direção de Renato Farias. Contudo, pensando este trabalho como uma continuidade em relação ao anterior, percebe-se o universo rodrigueano aqui esgarçado, questionado, citado porém escrito por cima; em momento nenhum ele é abandonado – a rede de referências que ele suscita parece permanecer impregnada no imaginário do espectador, do autor e mesmo dos atores. Não abandonar implica propor uma questão para a cena: que graça ainda tem Nelson? O problema que eu desejo levantar ao longo desta crítica é se a sedução de ir ao encontro do “universo” do dramaturgo não ofusca o quanto de liberdade se poderia ter diante dele.

Se esse questionamento parece similar àquele que eu mesmo propus perante o espetáculo Cachorro!, trata-se de uma semelhança que não merece ser escondida. A crítica está sem dúvida inserida no percurso reflexivo daquele que se propõe a criticar. Dois espetáculos, assistidos com tão pouco tempo entre eles, sem dúvida iluminam e obscurecem um ao outro, e algo que gosto especialmente em Cuidado com o cão é a maneira que ele propõe uma resposta para minha indagação central a respeito deCachorro!. A Cia de Teatro Íntimo efetivamente destroça a estrutura rodrigueana, e parece dispor os pedaços ao público sem estabelecer de antemão o que deve ser feito com eles.

Está presente a instituição do casamento como ponto de partida para o espetáculo. Estão aqui novamente o marido, a mulher e o amante. Há o amor de marido contraposto à excitação do amor adúltero; o questionamento da esfera moral; a irrupção do ciúme; o desfecho em morte. Há até mesmo a figuração de uma espécie de narrador, que perversa e ironicamente permeia a ação. Essa ação, contudo, não progride silenciosamente em direção a um desfecho, e essa é uma primeira característica do desmonte que a peça opera. Os atores alternam diálogos entre personagens com monólogos dirigidos ao público; suas falas são em grande parte digressões, que em geral dizem respeito a seus próprios personagens, mas nem sempre remetem a um sentido claro, a uma organização apreensível de idéias. A alternância de falas privilegia uma ambientação de vozes, em detrimento de uma ordenação puramente narrativa.

Porém, não se pode afirmar que há uma dispersão total do texto em um coro desordenado de vozes: a progressão central da trama permanece subjacente e nunca é esquecida. Há ainda dois outros personagens no espetáculo: um médico legista, que relata o prazer que sente exercendo sua profissão; e a filha de um mágico de circo, que tenta compreender os truques de seu pai. Mesmo esses relatos, que inicialmente parecem estranhos à trama, caminham no sentido de encontrar pontos de contato com ela, e progridem ruidosamente em direção a certas revelações. A história fecha ao final, embora repleta de sobras, e a dispersão de vozes encaminha-se para uma unidade. Em certo momento, a citação de um vestido de noiva suspenso, como o de Sônia na Valsa nº 6, sugere um paralelo: se naquela peça a multiplicidade coral concentra todas as vozes em uma só personagem, Sônia, que tenta entender sua própria morte, em Cuidado com o cão tudo poderia tratar-se da projeção da consciência em dissolução da mulher/protagonista – ao invés de concentrada em uma figura, essa memória estaria dispersa no relato de figuras/projeções distintas.

Essa não é a única chave de interpretação, nem se faz necessária uma chave para a fruição do espetáculo. Partindo do pressuposto que é ela uma percepção possível, posso afirmar que a encenação opera uma complexa re-construção narrativa do universo de Nelson Rodrigues. A nova costura não almeja ser uma re-escritura de Nelson; ela remete a seus textos fugindo das estruturas usadas pelo dramaturgo. É como se ela tentasse desmontar, testar e re-montar seus elementos, sem com isso apelar para seus truques.

E um dos truques – e méritos – de Nelson é certamente a forma da escrita. O texto de Tarcísio Lara Puiati toma de empréstimo as obsessões temáticas aplicando nelas um filtro particular, ressaltando a partir delas sua própria forma de escrever. O texto tem muitos pontos de contato com um dos trabalhos anteriores da companhia assinados por Tarcísio – Veridiana e eu -, uma vez que ambas as suas dramaturgias têm uma qualidade poético-literária bem marcante. Em Cuidado com cão, essa escrita busca misturar-se com lugares comuns do universo rodrigueano, com um vocabulário de frases prontas, passeando por certo imaginário da moralidade carioca. Contudo, ao mesmo tempo em que a dramaturgia escreve por cima, apresentando características formais que marcam a distinção, ela não está liberta o suficiente para encontrar novas soluções para as tensões propostas por Nelson. A sexualidade que termina em perversão e morte não encontra outros caminhos que marquem um pensamento diferente acerca do molde originário.

Tomemos como exemplo os dois personagens mais estranhos à trama, o médico legista e a filha do mágico. A repetição de obsessão do médico pelos corpos mortos acaba em um caso de necrofilia; a história do mágico que separava os corpos das mulheres se conclui com a revelação de uma espécie de trauma de abuso infantil. Embora distanciados do eixo principal, eles não apresentam problemas para aquela organização, pois estão regidos pela mesma lógica: exploração do corpo e da sexualidade levando ao trauma e à morte. Assim, ainda que a estrutura do espetáculo tenha moldes de desconstrução mais contemporâneos e uma autoria diferenciada, ela propõe o mesmo olhar sobre o casamento ou sobre as relações humanas.

Isso não constitui um problema para o espetáculo, mas também não traz um vigor novo para as temáticas. Percebo, ainda, uma espécie de ranço ao discurso antigo apontado na interpretação dos atores. Para o imaginário de Nelson é necessário que se possa seduzir discretamente com o corpo, que se coma flores, que se reaja de forma abusivamente violenta aos sentimentos – essa solicitação os atores parecem cumprir sem apelar para excessos, como se fosse um pré-requisito de ator que eles dominassem e pudessem apresentar sob demanda. O ranço aparece sutilmente quando permanecem no palco fora de cena, ele está em seu perambular vazio, no olhar sem foco, na atitude sem vigor de quem espera sua vez ao olho do público, num vagar lento pelo espaço. É uma incorporação incompleta, quase um “nada a fazer”, um pouco tímido, que não chega a ser comentário crítico mas contribui para o caráter indefinido do espetáculo.

Indefinição que para mim está exemplificada na cena de abertura, com a entrada do público no espaço, momento em que é encenada uma festa de casamento com os atores dançando e oferecendo bebida aos espectadores, enquanto são tocadas na íntegra as duas músicas mais clichê de festa de casamento (New york new york e Can’t take my eyes off you). Será esse um comentário sobre como a instituição do casamento continua a mesma, daquele mesmo conservadorismo dramatizado por Nelson, ou será essa apenas uma indicação de que esta é uma encenação contemporânea com as músicas que se usa agora? Será que nossa discussão não teria argumentos muito mais vivos para serem postos em jogo? Talvez isso que chamo de “universo” de Nelson Rodrigues tenha progressivamente menos interesse com a repetição incessante de encenações de seus textos. Como ele pode ter graça ainda? Estaria a graça, talvez, no que está faltando aqui, no texto em si, na construção verbal e rítmica que o dramaturgo propõe? Concreto é que a Cia de Teatro Íntimo, ao invés de se render às suas fórmulas, de produzir uma repetição de um modelo – que certamente gera uma maior demanda de público, interessado para olhar o que já conhece -, fez um espetáculo estranho e interessantemente problemático, para que possamos dirigir a ele essas e outras perguntas.

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