A transição para a modernidade

Resesenha do livro A mulher e o teatro brasileiro do século XX

10 de março de 2009 Estudos

A mulher e o teatro brasileiro do século XX, livro organizado por Ana Lúcia Vieira de Andrade e Ana Maria de B. Carvalho Edelweiss, não se limita a uma reunião de artigos sobre algumas das mais importantes atrizes, diretoras, dramaturgas e críticas que vêm marcando com assinatura forte a história do teatro no Brasil.

Nos textos referentes às atrizes houve a preocupação em destacar como cada uma direcionou a sua carreira a partir da transformação do teatro no país, que, pouco a pouco, deixou de priorizar espetáculos conduzidos pela personalidade carismática de um intérprete para valorizar um processo mais refinado de construção de personagens, propostas de direção mais autorais e uma dramaturgia mais consistente.

A transição do teatro calcado numa divisão hierárquica do palco, no qual os atores cumpriam papéis pré-determinados, para outro, moderno, que exigia um comprometimento contundente na criação da personagem, ocorreu nos anos 30, através de iniciativas como o Teatro do Estudante do Brasil, de Paschoal Carlos Magno, mesmo que não se possa esquecer a relevância de Renato Vianna e do Teatro de Brinquedo, de Eugenia e Álvaro Moreyra, já na década de 20, e caiba mencionar, antes ainda, o Teatro da Natureza, de Itália Fausta, como explica a professora e pesquisadora Tânia Brandão.

Empreitadas que culminaram na transformação definitiva do teatro brasileiro, durante os anos 40, com a célebre versão de Ziembinski para Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, a cargo do grupo Os Comediantes, e o surgimento do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), companhia fundada por Franco Zampari, e do Teatro Popular de Arte, de Sandro Polônio e Maria Della Costa.

Diante das mudanças houve quem permanecesse fiel a um estilo de representar que passou a ser visto como antiquado – casos de Dercy Gonçalves e Eva Todor, abordadas, respectivamente, por Virginia M.S. Maisano Namur e Angela Reis. As duas atrizes migraram da revista para a comédia e deram continuidade às suas carreiras passando ao largo da modernidade. Dercy manteve a espontaneidade e o deboche inconfundíveis numa relação absolutamente dessacralizada com os textos que encenou. Eva fundou um gênero – o chamado “gênero Eva”, marcado pela brejeirice, jovialidade, simpatia e por um preciso tempo de comédia. Mas, apesar do sucesso, Eva Todor revela, ocasionalmente, uma ponta de insatisfação pelo fato de ter obedecido às escolhas calculadas demais sob o ponto de vista comercial de seu marido e empresário, Luiz Iglezias, que a afastaram de eventuais ousadias. Uma delas, porém, deve ser citada: O efeito dos raios gama nas margaridas do campo, de Paul Zindel.

Determinadas atrizes procuraram acompanhar as transformações da cena. Dulcina de Morais, retratada em artigo de Sergio Fonta, que reúne ampla gama de informações sobre a atriz e diretora, encenou no Brasil textos de autores do porte de Federico García Lorca e Bernard Shaw, instituiu a folga das segundas-feiras para a classe artística e extinguiu a profissão do ponto. Lançou a companhia Dulcina-Odilon e a Fundação Brasileira de Teatro, cumprindo seu papel de educadora, no Rio de Janeiro e depois em Brasília, para onde se mudou.

Deolinda Vilhena destaca, no caso de Bibi Ferreira, uma conciliação interessante: por um lado, permaneceu ligada ao teatro do passado, herdando do pai, Procópio, a tradição empresarial e enveredando pelo repertório dos grandes musicais; por outro, ajudou a implantar um registro moderno de interpretação, rompendo com a declamação imperante em décadas passadas.

O naturalismo e a contenção foram qualidades louvadas nos trabalhos de outras atrizes, como Tônia Carrero, elogiada pelo esforço em valer-se da interioridade como matéria-prima, e Cacilda Becker, estrela do TBC, que não hesitava em doar “seus sentimentos mais íntimos” às personagens, duas profissionais de ponta retratadas por Maria Thereza Vargas. Cacilda, inclusive, procurava dialogar com o teatro moderno internacional. “Vi duas coisas graves em teatro, em Nova York: o Living Theatre e Dionysos in 1969, dirigido por Richard Schechner, Quanto ao Living, capítulo para três horas de conversa. Quanto a Dionysos… é estarrecedor. Não sei onde é que o teatro vai parar. Não sei…”, escreveu a atriz, aos amigos, em 1968.

O livro abarca trajetórias de atrizes que desenvolveram carreiras quando a modernidade já estava (praticamente) implantada na cena, como Fernanda Montenegro, que acumulou experiência na companhia de Maria Della Costa e no Teatro dos Sete, dirigida em ambos por Gianni Ratto, e Marília Pêra, que incorporou a influência de Dulcina e imprimiu sólida identidade interpretativa. No livro, Fernanda e Marília têm trajetórias sublinhadas por amigos – respectivamente, Sergio Britto e André Valli – por meio de uma escrita bastante pessoal.

A inquietação continuou norteando o teatro brasileiro nas décadas seguintes, cabendo evocar o Teatro de Arena, o Teatro Oficina em suas variadas fases, a destemida dramaturgia brasileira da passagem dos anos 60 e 70, o surgimento de luminosos grupos jovens no final da ditadura e a criatividade de encenadores que dominaram a cena na década de 80. Bia Lessa é um genuíno exemplo, como atesta Flora Süssekind em entrevista reveladora das múltiplas facetas da diretora – o desejo de explorar a contaminação entre o teatro e outras manifestações artísticas, a postura nada subserviente em relação às obras nas quais se deteve, o alargamento da noção de texto para além do plano verbal e o destaque à conexão entre o ator, o espectador e configurações espaciais diversas, a exemplo do fragmento de floresta transportado para o palco do Centro Cultural Banco do Brasil em Cartas portuguesas, dos escombros de um teatro em ruínas, conforme visto em sua versão para Medéia e da inclusão do público na cena de O homem sem qualidades.

Ao abordar a presença do ator no espaço, Flora Süssekind traça, inclusive, uma interessante comparação entre as propostas lançadas por Bia Lessa nas montagens de Medéia e de Casa de bonecas, na qual abordou a conexão entre as gramáticas do teatro e do cinema. “O espaço em ruínas, arrebentado, o palco, o piso e as cadeiras arrancadas, tudo cheio de poeira, e por isso mesmo parecendo haver uma presença intensificada do lugar, do edifício teatral, na sua encenação de Medéia no Teatro Dulcina em 2004. Já na de Casa de bonecas, de 2002, ao contrário, o palco inteiro estava lá, as pessoas bem sentadas, num dos teatros do CCBB, mas com um filme no lugar dos atores, do cenário, com a peça filmada tomando o tempo quase inteiro da apresentação, em contraste propositado com a redução da presença ao vivo da atriz Betty Gofman a pouquíssimos minutos. E aí, só que por outra via, por meio de uma redução, de uma quase miniaturização, a presença física da atriz parecia se impor de modo particularmente enfático. Ela parecia quase constrangida por estar lá, mínima, solta no palco, diminuta em relação ao tamanho da tela. Parecia não haver lugar lá para ela, e, no entanto, a visão daquela figura pequena, sozinha, provocava um impacto muito grande”.

As organizadoras também reuniram depoimentos e entrevistas com autoras que participaram do já citado boom da dramaturgia brasileira a partir do final dos anos 60, enfrentado as dificuldades do auge do regime militar, casos de Consuelo de Castro, Leilah Assunção e, mais adiante, Maria Adelaide Amaral, que se colocaram de maneira mais ou menos direta em seus textos. “Não uso a boca de um personagem para dizer o que eu própria quero dizer. Se tenho alguma coisa a dizer em meu nome, algo que, por qualquer motivo, acredito que deva ser tornado público, faço-o como Consuelo”, garantiu a autora a Ana Lúcia Vieira de Andrade, sem negar, porém, que “uma essência minha vai para o palco”.

A postura combativa transparece nos artigos referentes a mulheres lembradas pela voz ativa em relação a contextos opressivos, como a ditadura brasileira (contra a qual protestaram Barbara Heliodora – conforme relatado por Claudia Braga, responsável pela organização do livro Escritos sobre teatro, no qual reúne a produção jornalística da crítica, tradutora e professora – e a autora, diretora e pesquisadora Maria Helena Kühner, abordada por Ana Lúcia Vieira de Andrade). A insubordinação e o destemor aparecem como traços determinantes desde a infância para Kühner. “Contam, como fato pitoresco de minha infância em Juiz de Fora, que tiveram que pôr tranca no portão de minha casa, porque eu gostava de sair para a rua, para ver gente e conversar com quem encontrasse. Mas, um dia, nem cadeado e nem o muro me detiveram”, relembra Maria Helena Kühner.

A diretora Lúcia Coelho, por sua vez, deu vazão a uma criatividade sem fronteiras, rompendo com a relação professor-aluno em suas aulas no colégio Bennet, espaço libertador de onde saiu seu grupo de teatro infanto-juvenil, o Navegando. “Esse teatro do Bennet foi um espaço de salvação da minha vida inteira. Foi onde me encontrei. O único lugar na minha vida em que um dia me perdi de mim”, constatou Lúcia em entrevista a Inês Cardoso, que também se deteve na figura saudosa de Maria Clara Machado. Fundadora do grupo O Tablado em 1951, Maria Clara transportou muito de si para os textos que escrevia. “O vento representava a liberdade, a desrepressão e, ao mesmo tempo, o encontro com um mundo desejado, mas temido e perigoso. A menina, jogando para o alto a educação mineira, era mesmo a Maria Clara, saindo da casca para ver de perto a vida”, afirmou a própria Maria Clara, a respeito de A menina e o vento.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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