O aventureiro das mil e uma noites

Crítica da peça Simbá, o marujo, programação do Festival Palco Giratório

23 de junho de 2013 Críticas
Foto: Divulgação.

O livro das mil e uma noites é uma coleção de histórias e contos populares originárias do Médio Oriente e do sul da Ásia, compiladas em língua árabe. Sua origem não é exata, mas os primeiros registros de sua existência datam da segunda metade do século IX. A obra passou a ser mundialmente conhecida a partir de sua tradução para o francês pelo orientalista Antoine Galland em 1704. O livro das mil e uma noites transformou-se em um clássico da literatura mundial. Dentre os diversos contos e histórias que compõe o livro podemos destacar as aventuras de Aladim, de Sherazade e de Simbá, o marujo.

Simbá, o marujo é um ciclo de histórias composta por sete livros que narram as aventuras fantásticas do herói, um marinheiro fictício originário de Bagdá. Suas sete viagens pelos mares a leste da África e a sul da Ásia o fazem passar por inúmeras peripécias que incluem encontros com povos estranhos, seres monstruosos e fenômenos sobrenaturais.

Inúmeras adaptações das narrativas de Simbá já foram feitas, tanto para a TV, como para Teatro e o Cinema. No cinema, as adaptações mais famosas são a série de três filmes do herói: Simbá e a princesa (1958), A nova viagem de Simbá (1973) e Simbá e o olho do tigre (1977).

Dentro deste contexto se encaixa a montagem teatral de Simbá, o marujo da companhia mineira Trupe de Truões. A peça foi apresentada no palco do Espaço Cultural Escola SESC, no mês de maio, e integrou a programação do Festival Palco Giratório, que na cidade do Rio de Janeiro, chegou à sua quinta edição.

O grupo mineiro, oriundo da cidade de Uberlândia, surgiu em 2002 e é formado por ex-alunos do Curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia. O Simbá da Trupe de Truões, ao contrário do que se possa imaginar, não recorre aos mecanismos comuns que uma montagem teatral de uma história das mil e uma noites possa sugerir. Ao contrário, o que vemos em cena em nenhum momento traz referências visuais que normalmente poderíamos esperar de uma peça com essa temática. Essa característica já pode ser percebida desde o primeiro contato da plateia com o palco. O cenário de Paulo Merísio, que também assina a direção, opta por afastar qualquer possibilidade de identificação com o mundo do oriente ou com barcos, que seriam as apostas mais fáceis para se contar as aventuras de Simbá. A cenografia aposta em um espaço que nos traz à memória uma lavanderia ou uma banheira. Outro elemento que nos afasta de uma narrativa estereotipada são os figurinos. Getúlio Gois, figurinista desta montagem, optou em vestir seus atores com toucas de banhos e maiôs que lembram roupas de banho típicas dos anos 20. A maquiagem também nos remete aos frequentadores das praias com rostos queimados de sol. A luz de Marcos Prado também é outro elemento que agrega valores nesta montagem, pois mesmo em momentos nos quais os atores descrevem cenas ocorridas no mar, a cor azul é deixada de lado. Ao contrário, a luz, com suas diversas nuances de cores, ajuda a recriar um recinto de maior intimidade com a cenografia e que torna o espaço cênico aconchegante e propício para as brincadeiras propostas pela Trupe de Truões.

Acredito que a encenação ganharia ainda mais força em um contato mais próximo entre o público e os atores. Na apresentação feita no Teatro da Escola SESC, essa relação ficou um pouco prejudicada devido às dimensões físicas do palco.

Em cena, os atores Amanda Barbosa, Laís Batista, Maria de Maria, Ricardo Augusto, Ronan Vaz e Thiago Xavier contam a história de Simbá, um marujo que tem fascínio por aventuras. Com sua inteligência e habilidade, o marinheiro se envolve em muitas situações adversas. Seja explorando reinos fantásticos ou enfrentando monstros, a vida de Simbá está no mar e na possibilidade de descobrir novas fronteiras e horizontes. Para dar vida a este universo, a narrativa se escora em diversas técnicas teatrais, dentre as quais podemos identificar a contação de histórias e a improvisação. Os atores mostram em cena uma bela desenvoltura corporal que é o resultado da linha de pesquisa cênica trabalhada pela Trupe. A narrativa se dá por meio da ressignificação do corpo do ator em cena e a sua relação com os objetos cênicos que ficam bastante evidentes nesta montagem. Podemos perceber também a utilização das técnicas de palhaçaria, do teatro de sombras e acrobacias na encenação, que provocam o interesse da plateia de forma leve, divertida e lúdica.

Outro ponto que gostaria de destacar é justamente em relação à plateia. Simbá, o marujo é, notoriamente, uma montagem dirigida para o público infanto-juvenil e essa era a grande maioria do público presente no teatro da Escola SESC. Acredito que para muitos dos jovens espectadores ali presentes, essa tenha sido sua primeira experiência frente a uma obra teatral. Ao nos acomodarmos para assistir o espetáculo a plateia estava um pouco hostil e demonstrava pouco interesse no que estava para acontecer no palco. Entretanto, com poucos minutos após o início da apresentação, o que seria a princípio um problema para os atores tornou-se um de seus grandes méritos, pois os pequenos espectadores foram arrebatados pela força da narrativa e pelo desempenho dos atores em cena. O público barulhento e inquieto rapidamente transformou-se em uma audiência interessada, atenta e tomada pela história de Simbá.

Simbá, o marujo prova ser uma experiência bastante interessante. Uma fusão bem equilibrada entre um história clássica da literatura mundial, desvinculada de seus estereótipos, inserida em um cenário contemporâneo e sob uma nova forma de se contar uma velha história. Ao olharmos para este espetáculo podemos vincular aquilo que se conta em cena à atuação, à fisicalidade dos atores em cena, à relação imaginativa com os objetos e o espaço, bem como a afinidade com o público que se encarrega de preencher com boas doses de lirismo as lacunas que porventura aparecem na cena.

Raphael Cassou é ator, iluminador e graduando em Teoria do Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO.

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