Brevíssimas impressões da cena grega contemporânea

27 de agosto de 2017 Estudos

Atenas, 2017. A capital grega vive os espectros de sua Antiguidade. Nos arredores da Acrópole, nas lojas de souvenir, turistas podem encontrar cartões postais com imagens de um passado glorioso e mítico, que contrastam com o atual imaginário sobre a cidade, muitas vezes associado à ideia de crise. Atenas subsiste de sua ancestralidade. Mas para além dos rastros do grande berço da civilização ocidental, Atenas chama a atenção global como ambiente potente para uma nova produção artística. A instabilidade de uma cidade de pouca relevância no cenário econômico da União Europeia é também responsável pela projeção de sua força cosmopolita criativa. As ruínas que compõe o museu a céu aberto de arte e arquitetura clássicas dividem espaço com grafites e outras formas de intervenções urbanas contemporâneas. Passado e presente, glória e decadência, cânone e transgressão são contradições que atravessam a sua atualidade.

Ao longo dos últimos anos, a cidade vem atraindo um número considerável de artistas, turistas e imigrantes, interessados em uma rota menos óbvia e por aluguéis ainda relativamente baratos. A polêmica chegada de parte de um dos maiores eventos de arte contemporânea dos últimos anos, a mostra Documenta 2017, deu um grande destaque à cidade. Há quem diga que Atenas é um dos maiores polos culturais em ascensão da Europa, uma espécie de “nova Berlim”. Contudo, diferente da capital alemã, os meios de se conseguir financiamento para projetos artísticos são absolutamente restritos. Uma crítica frequente à mostra Documenta refere-se a ela como uma espécie de máscara para a crise, que projeta a cidade no mapa artístico mundial, mas que esconde problemas de base.

No que diz respeito às Artes Cênicas é muito difícil traçar uma cartografia da cidade. Certamente ainda restam na Grécia auxílios de fundações privadas, como por exemplo, a Fundação Onassis. O Estado também financia o Teatro Nacional de Atenas, o Teatro Nacional de Tessalônica e os Festivais da cidade de Kalamata, de Atenas e de Epidaurus. No que diz respeito à curadoria dos grandes festivais, a programação não aparece completamente desconectada das discussões e da realidade do país. Durante todo o verão, que vai de junho ao final de agosto, o público conta com uma agenda repleta de atrações musicais, exposições, teatro, dança, assim como conversas e projetos de formação.

No cenário teatral é notável o número de montagens de textos clássicos. Adaptações de As Bacantes, Medéia, Édipo Rei, Édipo em Colono, Sete contra Tebas fizeram parte da programação do festival de Atenas e Epidaurus 2017 – talvez o festival Artes Cênicas mais importante da Grécia – tendo muitas delas sido apresentadas nas ruínas dos antigos teatros. Ainda hoje, os gregos reatualizam o apreço pelas grandes narrativas mitológicas. Tais encenações atraem um público do mundo todo, interessado em reviver de alguma forma os primeiros momentos do teatro ocidental. Diferente dos antigos festivais, os festivais contemporâneos não são competitivos. Importante destacar que a boa parte das adaptações não tenta simplesmente reproduzir o que teriam sido as Tragédias de outros tempos. A cena tradicional é atravessada por recursos atuais de figurino, de trilha sonora e de atuação, ainda que a realização de gestos grandiosos, acompanhada por uma projeção vocal solene distancie tal estética de uma possível casualidade naturalista. O coro trágico atual apresenta forte influência da dança contemporânea. Aliás, a dança, o teatro-físico e o teatro de máscaras dialogam de modo intenso com a estética de diversas produções nacionais e internacionais, presentes no Festival.

Seven Against Thebes, de Cezaris Graužinis.
Seven Against Thebes, de Cezaris Graužinis.

Nesse contexto, menciono o espetáculo gestual ateniense Into the Lions Dent, no qual dois performers evocam diferentes ambientes através da utilização de máscaras e da troca de figurinos. As máscaras são responsáveis por ativar qualidades físicas que lembram imagens humanas e animais. A narrativa não-linear se apresenta através de breves quadros que se interrompem de maneira brusca por recurso de blackout. Não há texto falado. Até mesmo as músicas da trilha sonora são instrumentais. Ainda na programação de dança, vale a pena destacar uma atração internacional, cuja opção estética é completamente diferente. O Unwanted da ruandesa expatriada na França, Dorothée Muynaneza (Compangnie Kadidi) tem como base gravações de entrevistas com mulheres e crianças que sofreram com o estupro em massa por soldados durante o genocídio em Ruanda de 1994. Dorothée, acompanhada da cantora negra norte-americana Holland Andrews canta e dança o choro e o grito das mulheres violentadas. A relação de parceria entre as duas artistas no palco revela a força de mulheres que precisaram encarar a vida toda a memória de uma covardia imensa.

Unwanted, de Dorothée Muynaneza.
Unwanted, de Dorothée Muynaneza.

Outras grandes atrações internacionais fizeram parte da programação do Festival. O grupo norte-americano Forced Entertainment esteve presente com a peça Complete Works: Table Top Shakespeare e Bob Wilson, com o espetáculo Mikhail Baryshnikov. No que diz respeito às opções dramatúrgicas da curadoria, além da adaptação de textos gregos clássicos e da programação de dança, na edição de 2017, houve um espaço considerável destinado a montagens de textos clássicos de outras épocas e nacionalidades, como é o caso da peça Hymn to love, de Marta Górnik, adaptação de Mãe Coragem, de Bertolt Brecht e a peça Suddenly, Last Summer, da Happy End Theater Company, adaptação da peça de Tennessee Williams.

Suddenly, Last Summer, Happy End Theater Company.
Suddenly, Last Summer, Happy End Theater Company.

Montagens de textos gregos mais recentes são proporcionalmente menos evidentes, mas podemos citar a peça grega Nova Melancholia, que faz uma adaptação, de textos curtos do autor Elias Papadimitrakopoulos, da década de 1980 e a peça Festen, do National Theater of Northen Greece, baseada no filme homônimo de Thomas Vinterberg. No campo da produção textual contemporânea grega, a maior parte das dramaturgias busca revisitar antigos autores ou mitos, mas há espetáculos que escapam a esse padrão, como a peça When The Dogs Assailed Their Masters, de Linda Kapetanea e Jozef Frucek que propõe uma reflexão sobre os legados culturais que estaremos deixando para gerações futuras.

When The Dogs Assailed Their Masters, de Linda Kapetanea e Jozef Frucek.
When The Dogs Assailed Their Masters, de Linda Kapetanea e Jozef Frucek.

A abordagem sobre o tema da “cidade” é muito comum na produção artística contemporânea grega, sendo frequente a realização de ações em espaços públicos, como ocupações e flashmobs. No que concerne à programação do festival, destaco a performance Geopoetics, de Anna Tzakou, que aconteceu no topo do Monte Licabeto. Durante o pôr-do- sol, os espectadores observavam de cima, os telhados e os prédios da capital grega, enquanto escutavam textos com o tema da polis. Além desse trabalho, posso citar o espetáculo B.ound- Timid Setting, de Mania Papadimitriou, que fala sobre cidadania, a peça The maidens/ The new poetics of Athens, do grupo Bijoux de Kant, na qual duas performers leem poemas sobre Atenas, e a peça The Girl is falling, falling, falling, do suíço Lilo Baur, cuja trama mostra uma garota de 19 anos que contempla a cidade do alto de um arranha-céu e decide se jogar, repensando sua vida durante a queda. A questão da imigração e dos refugiados, latente em toda a Europa, e sobretudo na Grécia, também aparece como tema de algumas obras, como podemos ver na peça Intenational Institute of Political Murder, realizada com atores da Grécia, da Romênia e da Síria e da exposição fotográfica Another Life: Human Flows, Unknow Odysseys, que ficou exposta durante o período do festival em um dos teatros. Vale lembrar que a Grécia é um dos países que mais têm recebido refugiados nos últimos anos.

Intenational Institute of Political Murder de Milo Rau.
Intenational Institute of Political Murder de Milo Rau.

Embora o Festival de Atenas e Epidaurus tenha uma programação extensa e diversificada, esse recorte não dá conta da complexidade da cena e da curadoria gregas atuais. Artistas e produções que não recebem incentivos estatais e privados precisam descobrir meios alternativos de desenvolver seus projetos. Desde 2010, os recursos públicos destinados à criação artística contemporânea vêm sendo cortados. Lugares abrem, alguns se metamorfoseiam, outros fecham e desparecem. Encenadores, coreógrafos e performers estão sempre em busca de novos espaços, muitas vezes não-convencionais. Apresentações em processos e saraus em terraços dos apartamentos são atividades frequentes. Companhias e grupos de teatro alugam seus espaços para seminários, oficinas e colônias de férias para poderem continuar suas atividades. Este é o caso, por exemplo, do grupo de teatro-dança e residência artística Kinitiras, fundado em 1995, cuja sede fica próxima à Estação do metrô de Acrópoles. Eventos alternativos ocupam as ruas ou os muitos edifícios desativados e abandonados da cidade, como foi o caso do Re-movement Athens 2017, que a cada semana convidou um coreógrafo diferente para movimentar a Galeria Arsaki, uma galeria comercial ao lado da Biblioteca Nacional de Atenas, cuja maior parte das lojas está desocupada.

Sede do grupo Kinitiras.
Sede do grupo Kinitiras.

Mariela Nestora – coreógrafa do projeto 20 Pencils No 2, que fechou o Re-movement Athens 2017 – acredita que a crise que afeta e a cultura é passageira. Ela enxerga uma oportunidade nesse momento crítico e tem esperanças que em cerca de alguns anos a economia vá se reestruturar. Ela diz:

A palavra ‘crise’ é estúpida. A crise é uma urgência, uma interrupção da norma. Ela já dura oito anos e agora é um mundo novo, uma nova maneira de ser. Então ou você tenta sobreviver e ver o que você pode fazer, ou você se redefine. E se nesse momento, agora, quando outros olhos tentam se fechar em uma interpretação, restringir o espaço no qual você tenta se inventar pode ser perigoso[1] (NESTORA apud BARRÉ, JEAN-CALMETTES, 2016, p. 29).

Mariela alerta para o risco de nos estagnarmos na ideia de crise, sobretudo na Grécia, país constantemente atravessado por períodos de turbulência e instabilidade. Ela atenta também para o perigo da morosidade, da repetição e de uma depressão improdutiva, e diz que lidar com essa urgência não quer dizer aceitar a precariedade, mas lutar com ela, criar novas maneiras de sobreviver. Em julho de 2017, em Atenas, Mariela e eu conversamos pessoalmente sobre o depoimento dado à revista francesa Mouvement, Mariela ainda mantinha o seu discurso. Nessa ocasião, falamos dos pontos em comum entre a Grécia e o Brasil. Tentamos entender qual seria a diferença entre a crise e catástrofe. Não chegamos a nenhuma conclusão. Ela me perguntou sobre o Brasil, sobre como estávamos lidando com a crise. “Ou com a catástrofe?” Seguimos a noite com algumas perguntas.

20 Pencils No 2 de Mariela Nestora.
20 Pencils No 2 de Mariela Nestora.

Que maneiras alternativas de produção temos à nossa disposição? Que modos possíveis de fazer ainda não conseguimos imaginar? Como intercâmbios e trocas culturais nos fazem abrir os olhos para aquilo que é óbvio, mas que parecia obscuro? Como a falta de recursos influencia nossos métodos de ensaio? Como as sensações de desestruturação, insegurança e perda de sentido podem ser transformadas em projetos estéticos? Como o passado e a tradição de um país se refletem em suas obras? Como não se acomodar nos rótulos atribuídos às nossas cidades? Nem somente cidade do “passado”, nem somente cidade do “futuro”. Nem cidade da “crise”, nem cidade “estável”. Atenas encena seus anacronismos e suas contradições e em 2017 nos propõe questões comuns, que ultrapassam as distâncias geográficas.

 

Referências bibliográficas:

BARRÉ, Marion; JEAN-CALMETTES, Aïnhoa. Athènes à l’épreuve du fantasme. In: Mouvement. N 82. Paris: Éditions Second, 2016.

Nota:

[1] Minha tradução para “Le mot ‘crise’ est stupide. La crise c’est une urgence, une interruption de la norme. Ça dure depuis huits ans et maintenant, c’est un monde nouveau, une nouvelle façon d’être. Donc tu essayes de survivre et de voir ce que tu peux faire, ou tu redefinis. Et si dans ces moments-là, d’autres yeux essayent de t’enfermer dans une interprétation, rétrécissent l’espace dans lequel tu essaies de t’inventer, ça peut-être dangereux”.

 

Newsletter

Edições Anteriores

Questão de Crítica

A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

Edições Anteriores