Narrativa e cena
Crítica do espetáculo Guy de Maupassant, solo de Joana Ferry em cartaz no Solar de Botafogo
Guy de Maupassant, monólogo em cartaz no pequeno espaço do Teatro Solar de Botafogo, traduz para a linguagem cênica quatro histórias curtas do autor francês que viveu e influenciou a sociedade parisiense com uma intensa criação literária na segunda metade do século XIX. A atriz Joana Ferry divide-se entre as funções de narradora e personagem, apresentando para a plateia os contos No campo, Senhorita Perle, A morta e O horla.
Com o pretexto de homenagear o aniversário de 160 anos de nascimento do escritor, comemorados neste mês de agosto, me parece crer que a encenação de Evandro Meirelles Santos foi estruturada a partir do eixo combinatório que privilegiou a produção do autor francês em sequência cronológica por ano de publicação e conteúdo temático, elegendo para as duas primeiras narrativas apresentadas, escrituras com características predominantemente realistas tanto nas descrições de tipos quanto nas situações identificáveis vividas pelos mesmos, e nas duas últimas, opta por selecionar passagens onde o autor instaura o rompimento lógico e causal das coisas vivenciadas pelos protagonistas, evocando atmosferas que lembram relatos de pesadelo e loucura.
A atriz se posiciona no centro do palco e dá início à primeira história da noite. Enquanto narra, a gestualidade trabalhada em cena vai sendo elaborada, de maneira discreta e sutil para a platéia, procurando indicar em quais zonas do espaço físico podemos visualizar mentalmente os acontecimentos provocados pelas figuras que povoam aquele ambiente ficcional: crianças brincando pelo chão, descrição de casas de aspecto miserável, familiares mal alimentados e outras imagens. Com isso, ela firma um pacto com o espectador ali presente, forçando-o a reconstruir, via imaginação, suas próprias impressões, traços, cores e sensações a partir do texto que está sendo vocalizado, como é de praxe numa contação de histórias. Esse início chama muito a atenção também porque obriga a platéia, confrontada o tempo todo com o único signo vivo que fala e que se movimenta, a aceitar a convenção do faz de conta, criando e recriando espaços ficcionais imaginários evidenciados pela linguagem oral, visto que no contíguo espaço onde a ação é representada, há somente dois elementos materiais existentes em cena: uma cadeira e uma rosa pendurada por um fio de náilon, elaborados por Bianca Borsói.
Com esta situação de presença que se estabelece entre atriz e público nos primeiros momentos da cena, aliada à rigidez com que a linguagem estética é estruturada, sem nenhum elemento sonoro para ilustrar determinada passagem sentimental dos indivíduos fictícios, fica claro que o verdadeiro objetivo desta montagem é trazer para o espaço cênico, de maneira radical, a letra de Guy de Maupassant performatizada por Joana Ferry, que procura ser fiel às entonações da linguagem convencional utilizando-se de seu corpo e sua voz para dar a ouvir, através dos atos da fala, o espírito que está preso no suporte textual e que implora por sua libertação, sem artifícios de som e sem muitos objetos materiais que sirvam como possíveis bengalas.
Entretanto, a opção por essa radicalidade, pelo respeito excessivo à forma de transmissão da prosa do autor parisiense, a preocupação em narrar para o espectador toda riqueza contida no seu discurso poético, transformando o público em potencial ouvinte, limitou a criação de uma dramaturgia cênica que poderia alçar vôos mais ousados se os índices de partituras gestual e vocal fossem melhor explorados pela intérprete, dinamizando a ação em momentos pontuais, especialmente nos relatos em terceira pessoa. A imbricação entre narradora e personagem era delimitada por índices de construção mimética das figuras que tinham nome e identidade na fábula, enfraquecendo um jogo que poderia ser mais rico se a atriz optasse pela sugestão de brincar com a artificialidade dos indivíduos, ao invés de imitá-los na reprodução de convenções pré estabelecidas a partir da linguagem. Da mesma maneira, nos contos narrados em primeira pessoa, a encenação poderia ter experimentado o risco de construir no palco imagens visuais e formas através do corpo da atriz que correspondessem à energia contida no interior ou nos subterrâneos da narrativa metafísica, captado nas linhas do contista europeu.
Talvez seja esse o grande desafio, e daí o fascínio, que a transposição de textos literários suscita no enfrentamento com a cena: a extrema liberdade com que a criação de dramaturgias é elaborada e processada, além de um fator considerável de riscos e ousadias que decorrem dessa empreitada. Sinto que faltou um pouco mais desse segundo elemento na estruturação do espetáculo.
Informações sobre a temporada no site do Solar de Botafogo: http://www.solardebotafogo.com.br/index.htm