Narrativa e cena

Crítica do espetáculo Guy de Maupassant, solo de Joana Ferry em cartaz no Solar de Botafogo

8 de agosto de 2010 Críticas

Guy de Maupassant, monólogo em cartaz no pequeno espaço do Teatro Solar de Botafogo, traduz para a linguagem cênica quatro histórias curtas do autor francês que viveu e influenciou a sociedade parisiense com uma intensa criação literária na segunda metade do século XIX. A atriz Joana Ferry divide-se entre as funções de narradora e personagem, apresentando para a plateia os contos No campo, Senhorita Perle, A morta e O horla.

Com o pretexto de homenagear o aniversário de 160 anos de nascimento do escritor, comemorados neste mês de agosto, me parece crer que a encenação de Evandro Meirelles Santos foi estruturada a partir do eixo combinatório que privilegiou a produção do autor francês em sequência cronológica por ano de publicação e conteúdo temático, elegendo para as duas primeiras narrativas apresentadas, escrituras com características predominantemente realistas tanto nas descrições de tipos quanto nas situações identificáveis vividas pelos mesmos, e nas duas últimas, opta por selecionar passagens onde o autor instaura o rompimento lógico e causal das coisas vivenciadas pelos protagonistas, evocando atmosferas que lembram relatos de pesadelo e loucura.

A atriz se posiciona no centro do palco e dá início à primeira história da noite. Enquanto narra, a gestualidade trabalhada em cena vai sendo elaborada, de maneira discreta e sutil para a platéia, procurando indicar em quais zonas do espaço físico podemos visualizar mentalmente os acontecimentos provocados pelas figuras que povoam aquele ambiente ficcional: crianças brincando pelo chão, descrição de casas de aspecto miserável, familiares mal alimentados e outras imagens. Com isso, ela firma um pacto com o espectador ali presente, forçando-o a reconstruir, via imaginação, suas próprias impressões, traços, cores e sensações a partir do texto que está sendo vocalizado, como é de praxe numa contação de histórias. Esse início chama muito a atenção também porque obriga a platéia, confrontada o tempo todo com o único signo vivo que fala e que se movimenta, a aceitar a convenção do faz de conta, criando e recriando espaços ficcionais imaginários evidenciados pela linguagem oral, visto que no contíguo espaço onde a ação é representada, há somente dois elementos materiais existentes em cena: uma cadeira e uma rosa pendurada por um fio de náilon, elaborados por Bianca Borsói.

Com esta situação de presença que se estabelece entre atriz e público nos primeiros momentos da cena, aliada à rigidez com que a linguagem estética é estruturada, sem nenhum elemento sonoro para ilustrar determinada passagem sentimental dos indivíduos fictícios, fica claro que o verdadeiro objetivo desta montagem é trazer para o espaço cênico, de maneira radical, a letra de Guy de Maupassant performatizada por Joana Ferry, que procura ser fiel às entonações da linguagem convencional utilizando-se de seu corpo e sua voz para dar a ouvir, através dos atos da fala, o espírito que está preso no suporte textual e que implora por sua libertação, sem artifícios de som e sem muitos objetos materiais que sirvam como possíveis bengalas.

Entretanto, a opção por essa radicalidade, pelo respeito excessivo à forma de transmissão da prosa do autor parisiense, a preocupação em narrar para o espectador toda riqueza contida no seu discurso poético, transformando o público em potencial ouvinte, limitou a criação de uma dramaturgia cênica que poderia alçar vôos mais ousados se os índices de partituras gestual e vocal fossem melhor explorados pela intérprete, dinamizando a ação em momentos pontuais, especialmente nos relatos em terceira pessoa. A imbricação entre narradora e personagem era delimitada por índices de construção mimética das figuras que tinham nome e identidade na fábula, enfraquecendo um jogo que poderia ser mais rico se a atriz optasse pela sugestão de brincar com a artificialidade dos indivíduos, ao invés de imitá-los na reprodução de convenções pré estabelecidas a partir da linguagem. Da mesma maneira, nos contos narrados em primeira pessoa, a encenação poderia ter experimentado o risco de construir no palco imagens visuais e formas através do corpo da atriz que correspondessem à energia contida no interior ou nos subterrâneos da narrativa metafísica, captado nas linhas do contista europeu.

Talvez seja esse o grande desafio, e daí o fascínio, que a transposição de textos literários suscita no enfrentamento com a cena: a extrema liberdade com que a criação de dramaturgias é elaborada e processada, além de um fator considerável de riscos e ousadias que decorrem dessa empreitada. Sinto que faltou um pouco mais desse segundo elemento na estruturação do espetáculo.

Informações sobre a temporada no site do Solar de Botafogo: http://www.solardebotafogo.com.br/index.htm

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