Clássicos, Nova York: música, memória, lugar, cinema*

Estudo sobre obras recentes de Peggy Shaw, Peter Brook, Richard Foreman e Judith Malina

28 de março de 2013 Estudos

Seria desnecessário esclarecer – visto se tratar de um pressuposto básico – que a noção de “clássico” utilizada não pretende dar conta de artistas que se inspiram em modelos da antiguidade para a produção de suas obras. Tampouco se deseja afirmar que os trabalhos de Peggy Shaw, Peter Brook, Richard Foreman e Judith Malina aqui tematizados são apolíneos, guardando entre si similaridades formais e estruturais. De fato, tais personalidades e suas trajetórias artísticas são clássicos do teatro, na medida em que se transformaram em importantes referências para a prática e a reflexão a respeito da história recente das artes cênicas, em um ambiente global. Problemática, a última afirmação deve levar em conta o contexto de surgimento e atuação de tais autores, todos de nacionalidade norte-americana, com exceção do britânico Brook. Tendo em mente a importância da cidade que nunca dorme no circuito e no mercado de arte contemporânea, talvez seja adequado dizer que o título conserva, em si, uma tautologia, pois Nova York, como tal, é o centro de produção de clássicos contemporâneos, sendo assim, uma cidade-clássico, cidade-modelo.

O modelo, no entanto, nada tem a ver com as propostas urbanísticas recentes de instauração de cidades-empresa promotoras de grandes eventos culturais e esportivos. Se a cidade de Nova York é um clássico, ela o é por ser uma city of quotations, um espaço urbano composto por citações que passam pela diversidade de idiomas, pelos revivals arquitetônicos (em especial das igrejas em estilo românico e gótico como a Cathedral Church Saint John The Divine), pelas comunidades (Chinatown seria o mais direto exemplo) etc. As citações passam, sobretudo, pelas grandes questões socioeconômicas de qualquer metrópole, tais como a população de sem-teto, as desconfianças decorrentes do terrorismo, as intempéries naturais, bem como apartheids socioculturais. Trata-se, portanto, de um modelo não idealizado e, como tal, a cidade se torna perfeito local de produção de obras como Ruff (Shaw), The Suit (Brook), Once Every Day (Foreman) e Here We Are (Malina). Nos parágrafos a seguir, tais obras serão comentadas, tendo em vista a trajetória de seus criadores e também o impacto de suas recentes produções (cujas estreias em 2013 são paralelas ao início do segundo mandato de Obama) na atualidade.

The Suit: a música de Peter Brook

Em janeiro de 2013, Peter Brook, no auge dos seus oitenta e sete anos de idade, estreou em Nova York The Suit (O terno), adaptação teatral do romance do escritor africano Canodoise Daniel “Can” Themba. O espetáculo, na verdade, é o segundo mergulho de Brook no texto de Themba, tendo sido realizada a primeira montagem (Le Costume, em língua francesa) em 1999. Ambientada em pleno apartheid sul-africano, The Suit narra a história de Philemon (William Nadylan) e sua esposa, Matilda (Nonhlanhla Kheswa). O ponto de partida para o encadeamento dos fatos é o adultério, constatado por intermédio de um flagrante de Philemon, de Matilda.

Algo surpreendente no texto de Themba, e que representa adequadamente a sua genialidade, é a reação de Philemon. O marido traído não solicita a separação, nem mesmo repete a trajetória de Otelo. O personagem constata o adultério, não pela observação direta do relacionamento entre Matilda e seu amante (isto fica a cargo da plateia), mas pelo rastro indicial deixado pelo seu concorrente por meio do terno pousado sobre a cadeira. O amante, com isso, fugiu nu, deixando para trás a esposa do outro e também a roupa do corpo. Diante da prova incontestável – afinal, de quem seria aquele terno senão do mancebo? – Philemon promulga um curioso veredicto. O terno deverá ser tratado como uma pessoa: deve ser cuidado, alimentado, posto para dormir etc. A relação de Matilda e Philemon ganha um terceiro elemento: o índice indelével do adultério torna-se presente e inesquecível a cada tarefa do dia. Esta é a condenação de Matilda, em uma criativa vingança arquitetada por Philemon.

Se a opção por um texto escrito por um dissidente morto em 1968 após uma vida fortemente marcada pelo antagonismo ao apartheid sul-africano reforça o já reconhecido interculturalismo brookiano, os elementos cênicos encontrados em The suit, por sua vez, atuam como signos de sua modéstia teatral. O bom e velho tapete ressurge com alguns pares de cadeiras espalhadas pelo palco, uma ou duas araras de roupas, uma mesa quadrada e outros móveis funcionais que servem de apoio, no lado direito do palco, para a performance dos músicos. Neste espaço vazio do Brooklyn Academy of Music (BAM), os elementos cênicos e figurinos criados por Oria Puppo apresentam cores quentes, pontuadas também pela iluminação de Philippe Vialatte. Orquestrados por Brook, tais recursos se transformam em signos de seu essencialismo cênico, a moldura na qual ganha destaque a performance dos atores William Nadylan, Nonhlanhla Kheswa, Jared McNeill, Rikki Henry e dos músicos Arthur Astier, Raphael Chambouvet e David Dupuis.

Assinada por Barney Simon e Mothobi Mutloatse, a adaptação dramatúrgica mantém o caráter narrativo do texto. Há um narrador (McNeill), que não detém, porém, a exclusividade da tarefa. De fato, se a voz narrativa oscila entre McNeill e Nadylan, pode-se afirmar que a encenação traz um olhar masculino – talvez resida aí um dos pontos problemáticos do espetáculo. Pois, rodeada por homens, submetida à enunciação narrativa masculina e, ainda, obrigada a obedecer à vingança criativa do marido, Matilda não se impõe como uma figura feminina que possui as rédeas de seus afetos, suas relações e vontades. Inserida em um mundo falocêntrico – evidente tanto temática quanto formalmente –, Matilda não vê saída a não ser a morte. Antes disso, no entanto, a personagem de Kheswa tenta recuperar a confiança do marido, ao se integrar à vida da comunidade (em, uma vez mais, um recurso típico de feminilização: a integração se dá por meio de reuniões entre esposas e encontros familiares). Isto, contudo, mais sublinha o beco sem saída de Matilda do que lhe apresenta uma alternativa.

Há, no entanto, que se contra-argumentar contra o falocentrismo anunciado. Se não cabe a Matilda a função narrativa, concentra-se nela, mais do que em outros personagens, a tarefa do canto. É pela voz desta personagem que podemos ouvir, por exemplo, músicas como Feeling Good, imortalizada por Nina Simone, e Malaika, canção tradicional da Tanzânia, dedicada, na peça, a todos aqueles que não conseguem realizar seus sonhos. Entre a impossibilidade de realização amorosa (tema da canção africana) e o regozijo neo-romântico da música inglesa, a voz de Kheswa paira sobre os acontecimentos, representando a impossibilidade do aprisionamento. Em outras palavras, aquela africana, submetida ao olhar narrativo masculino, tem na música o meio pelo qual impõe a sua re-existência, jamais absoluta, evanescente. Esta é a saída deste personagem e também do espetáculo.

A atenção dedicada por Brook à música, tanto em The Suit (cuja direção musical é de Franck Krawczyk), como em outros espetáculos recentes, como 11 and 12 (de Amadou Hampâté Bâ, Londres, 2010) e Warum, Warum (que os cariocas puderam ver em 2008), nos permite observar, sob nova luz, a modéstia brookiana. Não à toa, o diretor parece não diferenciar o trabalho de atores e instrumentistas: na aparente simplicidade de um músico tocando o seu instrumento reside toda complexidade encantadora do ser humano, que preenche o espaço vazio de modo invisível e passageiro. De fato, a carpintaria teatral que se observa na peça merece destaque: músicos e atores, William Nadylan, Nonhlanhla Kheswa, Jared McNeill, Rikki Henry, Arthur Astier, Raphael Chambouvet e David Dupuis apresentam, todos, excelentes desempenhos resultantes de um domínio técnico e espiritual invejável. Pode-se dizer, com isso, que assistir a um espetáculo de Brook é estar diante de um concerto musical, seu teatro é música. Sob esta perspectiva, surge a possibilidade de se relevar, inclusive, seu tratamento da questão africana. Fica sem resposta, por exemplo, a pergunta a respeito da escolha do diretor em alternar a história principal com pequenos monólogos que relatam casos do apartheid. A universalidade da música, no entanto, sublinha seu otimismo intercultural – o que não deixa de ser extremamente válido hoje e sempre.

Here We Are: o lugar de Judith Malina

Logo após o término de Here We Are, engatei em uma conversa com o ator Fabian Zarta, que havia sido o meu guia no espetáculo (a plateia é dividida em pequenos grupos e todos possuem uma orientação de um ator do Living Theatre). Neste breve encontro, em meio a um ou dois shots de vodka infusion, notei que, enquanto relatava as minhas impressões da peça, por meio do estabelecimento de relações com outras poéticas teatrais históricas e recentes (em especial aquelas com as quais havia acabado de tomar contato, por ocasião do Under The Radar), meu interlocutor pouco ou nada sabia a respeito da história do teatro. Tampouco era ele um ator experiente, sendo aquela peça um dos seus primeiros trabalhos na área.

Um certo mal estar pairou então. Estaria eu exercitando uma certa arrogância intelectual ao desfilar diante do ator um certo conjunto de nomes e fatos ou, por outro lado, estaria ele revelando toda a sua ignorância ao desconhecer a história de seu ofício? Como, afinal, lidar com o conhecimento? Ou melhor, qual o lugar do saber?

Fundado em 1947, o Living Theatre (algo como teatro vivo, ou vivente) é um dos grupos mais tradicionais de Nova York. Reconhecidos mundialmente pelo seu engajamento político e pela vontade manifestada na maioria dos seus espetáculos em conduzir a sociedade a um sistema de mútua cooperação e igualdade, Julian Beck (falecido na década de 80) e a hoje octagenária Judith Malina estiveram à frente de cerca de cem produções teatrais, exibidas não só em Nova York, mas em diversos locais do mundo. Já compõe a história do teatro brasileiro a passagem de Beck e Malina por aqui, quando, em 1973, foram presos durante o Festival de Inverno de Ouro Preto em decorrência da repercussão de suas apresentações. Se narrativas como esta sublinham a importância do grupo para a história do teatro, este mesmo movimento, de “historicização”, ou ainda, em uma analogia à mise en scéne, de mise en histoire, levanta questões quanto à compreensão e à pertinência da atividade política do grupo, hoje, em 2013.

A história é, de fato, o objeto temático de Here We Are. Zarta e seus quatorze companheiros, todos vestidos de preto, ficam, cada um, responsável por pequenos grupos (3 – 4 pessoas). Os grupos rodeiam o espaço teatral, criando a arena na qual os fatos históricos irão se dar. Desmembrada de sua forma homogeneizante, a plateia entra em contato direto com um integrante do corpo de atores, que, ao longo de todo o espetáculo, irá atuar como uma espécie de mentor, orientando seu bando em cada atividade teatral proposta na peça. Nos primeiros momentos, além de se apresentar diretamente, o mentor solicita que nós pousemos nossos pés sobre folhas de couro, delineando seus contornos com uma caneta. As folhas são então guardadas e o espetáculo, como tal, tem início.

É neste momento que os atores, alternando-se em atenção, enunciam palavras e frases de ordem, tendo uma delas permanecido ecoando em minha cabeça: somos prisioneiros do sistema. Após enjaular o público nesta prisão verbal, os homens de preto passam a revisitar movimentos políticos históricos, tais como os coletivos anarquistas franceses, espanhóis e ucranianos dos séculos XIX e XX, vendo neles modelos de inspiração para a luta contemporânea. Estas histórias são apresentadas por meio de atividades que convocam a plateia à participação, em exercícios teatrais que remetem diretamente àqueles organizados por Maria Clara Machado e Viola Spolin. Somos convidados, por exemplo, a ocupar o centro do palco para dançar flamenco, realizar ações que evocam o trabalho e a meditação, ou ainda compartilhar frases criadas a partir de cinco palavras escritas em um pequeno papel entregue a cada espectador.

A integração entre arte e realidade por meio da participação do público em diferentes níveis já é reconhecida, de forma abrangente, como um instrumento político. Poéticas teatrais divergentes em sua convergência política, tais como aquelas desenvolvidas por Zé Celso (Teatro Oficina), Amir Haddad (Tá na Rua), Augusto Boal (Teatro do Oprimido), dentre outros, apostam neste instrumento como poderosa forma de transformação social. A menção temática de histórias anarquistas parece, por sua vez, nos convidar a elaborar uma “história dos vencidos”, conforme escreve Walter Benjamin. Algo, no entanto, me faz perguntar a respeito da real eficácia política destes clássicos recursos do teatro. Melhor dizendo, em que medida o Living Theatre não seria prisioneiro de sua própria ideologia, de seu próprio sistema? Ou ainda: reconhecido pelas encenações não convencionais, ao apostar na convenção de suas não-convenções, não estaria este grupo se neutralizando? (De fato, caso quiséssemos prosseguir em uma comparação entre o teatro de Malina e aqueles de Zé Celso e Haddad, teríamos que levar em conta a utilização radical dos recursos realizada pelos últimos, que parece não haver lugar, ao menos em Here We Are, no fazer da primeira).

A remissão aos jogos teatrais mais elementares parece nos conduzir a uma definição de Here We Are como um espetáculo igualmente elementar. Outro fato que reforça esta hipótese seria o par de sandálias que cada membro da plateia é convidado a produzir manualmente, a partir das pegadas registradas pelo ator-orientador no início da peça. Este recurso franciscano é justificado verbalmente como uma maneira que o grupo encontrou para desviar-se dos encantos tecnológicos e apelos estéticos. A fabricação de sandálias, os exercícios básicos do teatro, o figurino neutro: sem dúvida, temos que levar em conta a potência transgressora destes instrumentos elementares (seria um grande erro, e até contraditório, descartá-la logo após uma abordagem da modéstia brookiana). No entanto, algo, mesmo que simples, possui sua complexidade. Qual seria esta no espetáculo de Malina?

Para alguém que pouco costuma frequentar eventos artísticos, o espetáculo atua como uma aula introdutória de teatro. Este alguém não se restringe à plateia; o próprio elenco se insere aqui; tal seria o caso, por exemplo, de Zarta. Por esta via teatral, o espetáculo convida a todos a se desinibirem, a se soltarem, de um modo terapêutico. Por outro lado, se o indivíduo possui um quadro de referências [todo e qualquer indivíduo possui, mesmo sem querer ou saber, o seu quadro de referências – claro – refiro-me aqui ao tratamento da política realizado pelas artes, tratamento este que exige argúcia crescente dada as armadilhas propostas pelo capitalismo para neutralizar as tarefas profanatórias], o espetáculo parece anacrônico. Tal anacronia (que é um das características do contemporâneo, se estamos com Agamben) é confirmada pelos comentários, de jornalistas e frequentadores do espetáculo, todos unânimes em reconhecer a importância histórica do Living Theatre. Mas, assistir a um espetáculo para ver nele as cenas históricas de outros tempos, nos conduz a seguinte indagação: o quanto aquele acontecimento teatral, diante dos nossos olhos, vale por si? Neste sentido, o reconhecimento histórico não representaria o fracasso do Living Theatre, no sentido de uma intervenção política no presente? Em outras palavras, onde está o aqui de Here We Are? Deixo a tarefa para o leitor localizar, tendo em mente a afirmação de Ronaldo Brito: “não pode haver tradição da vanguarda, a não ser como contrafação”. (1)

Ruff: a memória de Peggy Shaw

That’s the way I’ve learned theater —
by being told to trust my stories,
that they’re valuable, but also to trust my body,
that when it moves and I make a sound,
whatever comes out is the truth

Peggy Shaw

Encenar, de modo cômico, o seu derrame: eis a árdua tarefa que Peggy Shaw definiu para si no espetáculo Ruff, cuja estreia se deu dentro da programação oficial do COIL 2013, Festival de Inverno do Performance Space 122. Pode-se dizer que a dificuldade da proposta é dupla, sintetizada em duas perguntas: como abordar comicamente uma perda (já que a fórmula dos enlatados obriga às lágrimas)? E mais: como falar de algo que se perdeu (se está perdido, não poderá mais ser convocado, caso se deseje manter a coerência lógica)?

Uma das herdeiras do Teatro do Ridículo nova-iorquino (conhecido entre nós pelas montagens de O mistério de Irma Vap e O médico e o monstro) e diretamente influenciada por Charles Ludlam, Shaw, um dos ícones da queer performance, é cria das drag queens. As fronteiras de genêro, bem como as dimensões do travestismo, são dois aspectos que entrelaçam a trajetória da performer ao ridículo movimento norte-americano. Fã de Marlon Brando, e parecida com Sean Penn, a co-fundadora do Split Britches é protagonista de uma trajetória artística marcada pela questão da identidade. Como Andy Warhol, sua figura é inconfundível: com seu inseparável terno, Shaw tem em si um exemplo marcante de hibridismo, que jamais se resolve em alguma espécie de redução sexual. Nascida mulher e com comportamentos masculinos, Shaw oscila, a cada gesto, entre estes dois extremos – sendo esta oscilação uma acentuada característica de suas aventuras teatrais. Exemplificam o que se está querendo dizer aqui espetáculos como You’re Just Like My Father (Você é como meu pai) e Menopausal Gentleman (O cavalheiro menopausa), este último, já trazendo em seu título o enfoque híbrido.

As limitações da lógica dos gêneros não se manifesta apenas no plano temático. Os limites entre o teatro e a performance também surgem no fazer de Shaw que, se, por um lado, tem sempre em suas idiossincráticas histórias e personalidade o foco do acontecimento cênico, por outro, não prescinde de ensaios, repetições, personagens, textos e outras convenções teatrais tradicionais. Aqui reside também uma das heranças do Teatro do Ridículo na performer, pois, em seus experimentos, Ludlam e companhia levam os recursos do teatro às suas últimas consequências.

Decorar um texto, no entanto, deixa de ser uma tarefa fácil para alguém que sofreu um derrame. Além da capacidade de memorização, o próprio conteúdo da memória se esvai, deixando no cérebro grandes zonas em branco. O desaparecimento, no entanto, não conduziu Shaw ao desespero – sob outra perspectiva, a performer optou por ver nele uma oportunidade, um espaço vazio, um palco que precisava ser preenchido. Eis que surge Ruff.

Shaw está sozinha em cena. Acompanham-na três monitores televisivos, que servem de ponto para a performer, e uma tela ao fundo (onde são projetados alguns vídeos e também um avatar da artista). Sem possuir uma estrutura narrativa linear, o espetáculo é composto por um conjunto de histórias e reflexões de Shaw a respeito de sua condição atual. O aspecto cômico, essencial em seus espetáculos e em qualquer show de drag, domina a cena, sem haver, todavia, uma diminuição do tema em troca do riso fácil. Pelo contrário. Ao rir de si mesma e suas histórias, Shaw ocupa um lugar especial, que não se impõe como absoluto e estável, mas oscilante, tal como sua figura inconfundível. É nesta oscilação que reside todo o encanto do espetáculo. No entanto, a discussão não para aí. Pois Ruff fala de uma memória perdida, mas também em constituição; ao focalizar uma performer lésbica após o derrame, o espetáculo apresenta um questionamento a respeito da identidade – não apenas pela via sexual, como era de se esperar nos trabalhos de Shaw – mas principalmente pela memória (e sua perda).

Por meio desta necessidade de revisão – de si mesma, de sua identidade – que se tem os melhores momentos do espetáculo: seja brincando com a sua semelhança a Penn (“As pessoas dizem que eu pareço com Sean Penn. Eu digo: ele é que se parece comigo”); seja zombando de seu próprio nome (“Eu pareço Peggy para vocês?”, sendo Peggy a porca movie star, personagem de Muppets babies); seja por meio de promessas de emergência (“Eu juro nunca mais usar ternos”, prometia ela, ajoelhada, no meio de sua crise de derrame); seja por meio da ironia (“Eu entrei no hospital como uma mulher que acha que é homem; saí de lá como um homem branco e heterossexual, já que metade do meu cérebro estava faltando”); seja confrontando-se com os recursos tecnológicos que criam um avatar de si; seja cantando músicas, como a infantil The name game (conhecida entre nós por Jogo da Rima, da Xuxa), a performer oferece ao público a sua criativa verdade (creative truth, como uma vez disse em uma entrevista). A constante reavaliação (e reinvenção) de si, somados aos recursos cômicos, muito poderiam ensinar Malina e sua trupe. Afinal de contas, há muitas formas de se fazer política.

Once Every Day: o cinema de Richard Foreman

O mais recente trabalho de Richard Foreman não é um espetáculo, mas um filme. Exibido pela primeira vez no Anthology Film Archive, criado por Jonas Mekas, Once Every Day expõe, já em seu título, o eixo estrutural da nova produção do fundador do Teatro Ontológico-Histérico. Nele, a expressão “once upon a time” (era uma vez) surge apropriada e deslocada, apontando, ao invés da fábula, para o dia-a-dia do trabalho. Uma evidente tensão serve como perspectiva para a obra, visto que a frequência diária se choca com a unicidade da experiência. Ao trazer, assim, para o coração da expressão fabular, a rotina, Foreman deflagra o real no ficcional.

Esta não é a primeira incursão do diretor no cinema. Outras cinco produções compõem a sua obra cinematográfica, sendo frutífero trazer uma delas, Strong Medicine (1981), para a presente análise. Neste filme, acompanhamos a aventura onírica de Rhoda. Esta mulher de meia-idade evoca diretamente o adjetivo “histérico” do teatro de Foreman: aparentando uma tradicional representante da burguesia (em especial, pelo seu figurino), Rhoda se desloca por contextos diversos, trazendo constantemente em seu olhar, em sua expressão e em seu comportamento uma desconfiança capaz de tornar qualquer situação estranha. A genealogia desta heroína deve ser traçada por meio de filmes como os de Maya Deren, em especial Meshes of The Afternoon (1943), onde uma figura feminina (a própria cineasta) encontra-se em situações que, ao longo das sequências, se repetem, porém, sempre com modificações de objetos e perspectivas. Tanto no caso de Deren quanto no caso de Foreman, temos a impressão de que os espaços externos de atuação da protagonista (os salões, o consultório, o trem etc., no caso de Foreman; a casa, no caso de Deren) constituem espaços internos. Mergulhamos, com isso, no espaço mental de figuras femininas e, nesta dimensão, necessariamente, a estrutura linear narrativa entra em colapso. Pois é impossível discernir o plano real daquele ficcional. Se Meshes of The Afternoon prescinde de verbalizações, no caso de Strong Medicine, Foreman lança mão de recursos narrativos, tais como cartelas (que lembram tanto as pranchas de Brecht quanto as legendas de filme mudo), além da própria Rhoda expondo em voz alta seus pensamentos (o que reforça a dimensão onírica do filme). Tais recursos (em frases como “uma semana depois”, “um tempo antes” etc.) não conseguem localizar o espectador, atuando como peças de um quebra-cabeça impossível de se montar. De fato, o filme de Foreman tensiona ao máximo não apenas a causalidade narrativa, mas também o encadeamento espacial. A contiguidade espacial, por meio do sequenciamento de cenas, que confere verossimilhança à trajetória do protagonista (sair do quarto e entrar na cozinha, por exemplo) é, a todo momento de Strong Medicine, explodida.

Mas Strong Medicine se insere, de modo bem explícito, ainda nas convenções teatrais. Personagens fechados, gestos dirigidos à câmera, falas decoradas, tipos definidos, figurinos e cenários: todo o aparato cênico está presente para ser atomizado por Foreman. Em Once Every Day, o mecanismo é outro. É esclarecedor observar a manipulação do som nestes dois trabalhos: no primeiro, a voz narrativa se faz presente, pontuada por passagens instrumentais que conferem às cenas uma atmosfera de suspense. Em seu mais recente trabalho, mal se ouve os sons. O foco está na imagem, no enquadramento. E, para reforçar este objetivo, Foreman lança mão daquilo que é para muitos um recurso característico do cinema: o close.

Na história do cinema, o close é um instrumento que sublinha a importância de determinado objeto ou evento. Algo que tenha uma relevância significativa, do ponto de vista narrativo, será sempre um grande candidato ao close. E se este recurso for utilizado para coisas insignificantes? E se ele, ao invés de revelar os gestos virtuosos e significativos, mostrar aqueles involuntários e despreocupados? Se o close, ao invés de focalizar o cerne da cena, desviar-se para o que nela há de mais arbitrário? É precisamente esta a abordagem de Richard Foreman em Once Every Day.

O filme em questão não apresenta narrativa. Ao longo de 66 minutos, assistimos a um conjunto de imagens captadas a partir de poucos dias de ensaio realizados por um grupo de atores sob a orientação de Foreman. Não se trata, no entanto, de um making of. Tampouco algo próximo de documentários como Moscou, de Eduardo Coutinho, ou Looking for Richard III, de Al Pacino. Neste caso, o olho da câmera é de uma absoluta dispersão. O enquadramento revela a espera de um ator para o início da cena, seu corpo relaxado (porém coberto de tensão, a tensão do ensaio), detalhes do canto da sala e outros aspectos que passariam facilmente despercebidos. Tal como Strong Medicine, Foreman também lança mão de legendas verbais, no entanto, as palavras surgem totalmente desvinculadas de narratividade. Elas devem, sobretudo, serem vistas, assim como as imagens supérfluas que compõem todo o filme.

Em O efeito do real (2), Barthes se pergunta a respeito da significância, no contexto narrativo, dos pormenores insignificantes. Um barômetro na descrição de Flaubert, a pequena porta de Michelet e outros detalhes: a que servem, do ponto de vista da narrativa? O autor francês, após memorável reflexão, conclui que tais “pormenores inúteis”, inevitáveis, constituem a categoria do real. Em Once Every Day, os detalhes estão órfãos – abandonadas à sua própria sorte, as imagens, dispersas na proximidade cirúrgica do close, configuram, nada além e nada aquém do que o próprio real. Por vias tortas, encontramos enfim o realismo de Richard Foreman: nada mais inútil do que isso.

Notas:

(1) BRITO, Ronaldo. O moderno e o contemporâneo (o novo e o outro novo). In: BASBAUM, Ricardo. Arte contemporânea: texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.

(2) BARTHES, Roland. O efeito de Real. In: BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

Referências bibliográficas:

BASBAUM, Ricardo. Arte contemporânea: texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.

BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

(*Dedico a Juliana Pamplona e Alessandra Colassanti, companheiras do teatro que discutiram algumas ideias desenvolvidas neste texto)

Manoel Silvestre Friques é editor de conteúdo do TEMPO_FESTIVAL das Artes (TEMPO_CONTÍNUO | Site), Mestre em Teatro pela UNIRIO e professor dos cursos de graduação Design de Moda e Artes – Figurino & Indumentária no SENAI Cetiqt. Engenheiro de Produção (UFRJ) e Teórico do Teatro (UNIRIO), atualmente é doutorando em História Social da Cultura pela PUC-Rio.

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