Crítica do espetáculo Fragments

Tradução de Marcio Freitas da crítica de Jacqueline Fletcher sobre o espetáculo Fragments

15 de julho de 2008 Traduções

Este artigo foi publicado originalmente em inglês, na revista eletrônica The British Theatre Guide

O Théâtre des Bouffes du Nord de Peter Brook está localizado numa vizinhança parisiense geralmente chamada de ‘o gueto’ ou ‘local para não-ir’. Os trens do metrô chocalham ao longo dos trilhos suspensos, passando acima de clamorosos engarrafamentos e ruas transbordando de aglomerações multiculturais. Os gentis aromas dos restaurantes indianos e das mercearias africanas podem ser sentidos na brisa. Dentro do edifício, o auditório não-reformado da companhia, com paredes marcadas e uma cúpula esplêndida e despida de ornamentos, se parece mais com uma catedral devastada pela guerra do que com o teatro burguês coberto de ouro e veludo que foi no século XIX. Há algo de majestoso nos restos desfarelados do procênio feito de pedra e nas paredes descobertas. O espaço tem o ar de uma Hécuba envelhecida após o saqueio de Tróia, a cabeça ainda erguida, e o que se perdeu em ouro e veludo foi ganho em calma, em dignidade sem adornos. Minimalista, embora atmosférico, ele muda de forma com facilidade, anulando-se para voltar à vida em sintonia com a imaginação dramática. E é um ambiente bem adequado para os personagens de Fragments. O dramaturgo irlandês, ele mesmo um imigrante em Paris, encontrou um primeiro abrigo para seus desolados mas cativantes vagabundos nos ‘pocket-theatres’ de vanguarda na margem esquerda do pós-guerra. A fama os arrastou para o mainstream, mas o Bouffes, cheirando a abandono, parece um refúgio apropriado para os obscuros e deslocados personagens de Samuel Beckett.

O próprio Brook está com 83 anos de idade, um grande velho homem do teatro, algo como um monumento por méritos próprios. Lúcido, sempre entusiasmado, ele pode ser visto nas noites de estréia no foyer e na cafeteria, trocando apertos de mãos com um sorriso acolhedor. O Théâtre des Bouffes du Nord tem sido sua casa teatral por trinta anos, o ‘espaço vazio’ onde ele encenou obras tão épicas quanto o Mahabharata, tão renomadas quanto Hamlet e Carmem, e tão modestas quanto The costume e a pequenaFragments de Beckett. Ao longo de uma carreira no teatro, cinema e ópera que totaliza sessenta anos, ele trabalhou em locais bastante variados, de Stratford a vilarejos na África do Sul, passando pelo deserto africano, pelas ruínas de Persépolis, por uma mina desativada e por um velho depósito de trens em Glasgow; sempre experimentando, sempre buscando aquele ‘espaço’ teatral especial, onde público e atores interagem para criar o evento: uma relação que apareceu naturalmente nos teatros de Londres da era Elisabetana e nos de Atenas do século V a.C.

Brook sempre abordou os clássicos de forma pouco convencional. Nos anos 60, quando já tinha atingido o auge de sua carreira, ele deixou tudo de lado para experimentar com o trabalho de Antonin Artaud e Jerzy Grotowski. Foi essa combinação que o levou à sua famosa atualização do Sonho de uma noite de verão shakespeariano, uma peça que havia desaparecido com o florescimento do espetáculo do século XIX. Depois do sucesso fenomenal, mas não inteiramente sem controvérsias, do Sonho, Brook se estabeleceu em Paris e continuou a experimentação com sua companhia multicultural no International Centre for Theatre Research, reerguendo seu teatro dos escombros. Sua força como diretor de cinema, ópera e teatro está na sua recusa de simplesmente aceitar as coisas como elas já se apresentam.

E é assim com Fragments. Brook se recusa a aderir às visões tradicionais sobre o trabalho de Beckett e a tomar Fragments por seu simples valor aparente. Beckett, mais famoso por escrever uma peça de impressionante sucesso na qual, como foi dito por um crítico, ‘nada acontece duas vezes’, é geralmente tratado ou com extrema reverência ou com satírico desdém. As peças são muito freqüentemente consideradas sentenças profundas e sombrias sobre o absurdo dessas pequenas criaturas que compõem a raça humana. Beckett é considerado fundamental e desoladamente pessimista, apesar do humor negro e às vezes absurdo que passa por sua obra.

Segundo Brook, os adjetivos comumente associados a Beckett, tais como desesperado, pessimista e negativo, estão todos errados. Beckett teve a coragem de lançar um olhar minucioso e sem hesitações sobre o abismo, sem recorrer a dogmas reconfortantes ou aos consolos habitualmente oferecidos por uma sociedade materialista. Ele foi um incansável perseguidor das mais terríveis verdades, e, armado com seu econômico senso de humor, ele partilhou com seus personagens a terrível incerteza, a dor, enquanto os observava patinar na escuridão e no desconhecido.

Inflexível é um termo muitas vezes usado de forma pejorativa para referir-se a Beckett, mas Brook pode transformar isto em uma virtude. Se Beckett foi um perfeccionista, o foi em sua busca por essas verdades esquivas, e em sua busca por uma forma minimalista que expressasse adequadamente a essência de suas criaturas, suas respirações, seus ritmos, seus movimentos, seus sons.

Como os elisabetanos e os gregos antigos, Beckett gerou criaturas que ousaram ter esperança, pensar o impensável, e enfrentar seu destino final: a inevitabilidade da incompreensão. Beckett adota personagens que normalmente apenas cruzariam o palco em papéis secundários. Brook foi bem sucedido na tarefa de lhes dar dignidade numa proporção humana. A apresentação é inclusiva na melhor sentido da palavra; somos envolvidos pela modéstia e pelo entendimento compartilhado do que significa ser humano.

Kathyne Hunter, Jos Hoeben e Marcello Magni [no Rio de Janeiro se apresentaram a atriz Hayley Carmichael e os atores Khalifa Natour e Marcelo Magni] estudaram na École Jacques Lecoq, em Paris, antes de fundar o Theatre du Complicite com Simon McBurney. Eles são o crème-de-la-crème. Hunter é absolutamente fascinante como a mulher solitária que vive um constante adiamento, esperando para substituir sua mãe na cadeira de balanço, reconhecendo mas mal ousando questionar a inevitabilidade do curso da vida. Valeria a pena ver esta montagem ainda que apenas por ela. Era possível ouvir o público prendendo a respiração em conjunto enquanto ela, vestida de preto com simplicidade e até elegância, expressava em voz alta sua incompreensão, balançava-se para frente e para trás, ou andava de um lado para o outro. Sua voz tem uma qualidade pouco comum: rica e vibrante, ela aflige e tranqüiliza o ouvinte e nos atrai para dentro de suas visões escuras e áridas. Interioridade ou paisagens cotidianas transformadas em imagens surreais? Com Beckett o real e a metáfora se fundem.

Jos Hoeben e Marcello Magni estão deliciosamente engraçados numa peça bastante breve sobre duas atitudes opostas para a rotina da existência em um universo inescrutável: vivendo em sacos brancos, com um único conjunto de roupas para os dois, e ignorando a vida um do outro, um é o eterno pessimista e o outro o entusiasmado otimista despertado pela cutucada de um bastão vindo do alto. O bastão, que é somente um bastão pendurado numa corda, consegue por um mistério saber exatamente onde eles estão. A dupla é igualmente encantadora na primeira peça curta, como um músico cego e um homem de uma perna só que perdeu seu filho. Para o finale, os três atores, como três senhoras, apresentam uma pequena peça cômica que oculta uma poderosa aguilhoada.

Esta é uma leitura madura de Beckett, que evidencia suas qualidades mais humanas e suaves sem limitar sua força. É uma montagem um tanto elegíaca e ainda assim concreta e cômica. Ela consegue expressar em poucas palavras as contradições do dramaturgo. Se tenho algo a criticar, é que a noite é muito curta e vamos embora querendo mais.

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