Que a terra lhe seja leve

Crítica da peça Capitu, parte da programação do FESTLIP

20 de junho de 2008 Críticas

A montagem paranaense Capitu – Memória Editada, com direção de Edson Bueno, é mais do que uma adaptação da obra Dom Casmurro, de Machado de Assis. Trata-se aqui de uma transcriação do romance para a cena. Vale recorrer a Linei Hirsch, que sugere o termo transcriação e cita procedimentos que observa serem usualmente aplicados a uma obra narrativa literária para sua utilização no teatro: a eliminação de certos elementos estruturais; a condensação da estrutura narrativa; a ampliação de aspectos específicos dentro do universo dramático; a fragmentação e re-associação de episódios e trechos da obra. “Procuramos uma dinâmica de interatividade, com os atores convidando a platéia a discutir cenas do livro ao mesmo tempo em que a história original é contada”, afirma Edson Bueno, diretor do espetáculo. “Quem conhece a obra vai conversar, aproveitar mais o espetáculo”, acrescenta o diretor.

A peça começa com a entrada do público. Os atores observam seus “leitores” se acomodarem nas poltronas.  De imediato, podemos ler Capitu vestida com uma camisola branca debruçada sobre papéis. Ela olha para os leitores, escreve, fuma um cigarro, sorri e observa todo o espaço físico atentamente e já ali nos convida a enxergar espaços outros, os da imaginação. Os demais atores se distribuem na cena harmoniosamente: um lê Machado de Assis, outro tira medidas de um manequim de costura, outro conserta um quadro, até que o espaço se completa com a chegada do último “leitor amigo”.

Cadeiras e livros espalhados compõem o cenário. Os quadros ao fundo ajudam a identificar o universo do romance de Machado. Os atores estão todos muito bem em cena. Edson Bueno como Casmurro e Janja como Capitu imprimem sutilezas nas contradições de seus personagens, com inteligência e forte presença cênica.

O sino toca e a suposta Capitu, já não mais suposta, se apresenta e nos alerta para uma questão fundamental: “Minha história é contada por outro.”

Neste momento o diretor nos revela com essa simples frase de abertura o eixo que costura a complexidade do romance, e mais, sua transcriação para a página-cena nos acrescenta a explosão da estrutura narrativa dentro da própria forma narrativa. Na impossibilidade de Capitu ser sujeito, uma vez que ela não tem fala, é falada pelo discurso do outro, Edson Bueno nos convida a enxergar a cena com os nossos “olhos de ressaca”. Devemos buscar captar o desdobramento do discurso do narrador, Bentinho-Casmurro, que está com a palavra, ainda que a Capitu seja dada a palavra. Isso fica bastante claro com o “Isso não aconteceu!” e o “Isso sim aconteceu!” que o Bentinho Velho declara enquanto suas memórias são encenadas.

É preciso olhar para “o velho” – o livro – como se enxerga uma armadilha: todas as indicações foram minuciosamente (des)construídas pelo próprio narrador, Bentinho. Dom Casmurro conclui com uma pergunta a respeito de Capitu: a namorada adorada dos quinze anos já não esconderia dentro dela a mulher infiel, que adiante o enganaria com o melhor amigo? Assim, podemos inverter o logicismo da desconfiança e nos perguntar: Será que o Casmurro já estava no Bentinho?

“O velho” solicita três leituras sucessivas, diz Schwarz: “uma romanesca, onde acompanhamos a formação e decomposição de um amor; outra, de ânimo patriarcal e policial, à cata de prenúncios e evidências do adultério, dado como indubitável; e a terceira, efetuada a contracorrente, cujo suspeito e logo réu é o próprio Bento Santiago, na sua ânsia de convencer a si e ao leitor da culpa da mulher.”

O espetáculo Capitu – Memória Editada é uma construção discursiva da multiplicidade de vozes que circulam pelos espaços da realidade e da imaginação. A tensão entre consentimento e resistência somente se estabelece na presença dos espectadores, “leitores amigos”: onde conter é resistir e resistir é conter. Embora a mocinha de Matacavalos esteja presa às impossibilidades de seu tempo histórico, Capitu satisfaz os quesitos da individuação. Isso fica muito claro na página-cena em que ela se insurge contra Dona Glória a chamando de “- Beata! Carola! Papa-missas!” Ela sabe a diferença entre compensações imaginárias e realidade, e não tem apreço pelas primeiras. Em país tão sentimental, ainda mais em se tratando de mocinhas, deve-se assinalar o incomum dessa iniciativa machadiana de estudar a beleza, a aventura e a tensão próprias ao uso da razão.

É clara a escolha de Edson Bueno que começa com “Minha história é contada por outro” e termina com “Que a terra lhe seja leve”. No entanto, sem abstrair o corte de classe, Edson Bueno concentra as personagens machadianas numa mulher sem memória que vai se descobrindo junto com os “leitores amigos” a própria Capitu do romance. Ao mesmo tempo em que nos surpreendemos com o “vestir Capitu”, fazemos força contrária. Enquanto a mulher desmemoriada re-constrói sua memória, nós re-construímos sua persona e ampliamos a dissonância de vozes que circulam pelos espaços da realidade e da imaginação. “Vestir Capitu” é tensionar a página-cena com a máscara de “cigana oblíqua e dissimulada” que nos é imposta ao mesmo tempo que desejamos ser sujeito da nossa própria história. Não constitui tarefa fácil para nós, leitores amigos, vestir essa máscara que nos aprisiona as aspirações. Desejamos, assim como Capitu, ser sujeito. No seu momento histórico, modernização econômica convivia com uma anomalia social, a escravidão. Assim, seus quesitos de individuação, suas condições subjetivas de intervir no mundo se chocavam com a impossibilidade de condições objetivas postas na realidade, uma vez que fazemos, sim, a nossa história, mas em condições dadas. 

Por isso existe uma tensão muito sutil entre consentimento e resistência. Embora o gesto e a palavra estejam com Capitu e com seus leitores que passam a vesti-la, o espetáculo ainda assim é contado por outro. Assim, suspiramos junto com Janja no final de sua (nossa) história: “que a terra lhe seja leve”! Ao menos “a terra lhe seja leve”!

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