Representatividade trans

28 de fevereiro de 2018 Conversas e
Roda de conversa sobre representatividade trans, realizada no Rio de Janeiro por Dandara Vital (à frente). Foto: Rodrigo Menezes.
Roda de conversa sobre representatividade trans, realizada no Rio de Janeiro por Dandara Vital (à frente). Foto: Rodrigo Menezes.

Nota: esse texto utiliza a linguagem neutra, trocando marcações de gênero das palavras pelo “e”; o “x” não é usado por ser ilegível, nesse contexto de marcação de gênero, pelos computadores programados para pessoas com deficiência visual.

 

Janeiro foi o mês da Visibilidade Travesti e Trans, no qual relembramos e comemoramos o histórico dia 29 de janeiro de 2004, quando pessoas Trans estiveram pela primeira vez no Congresso Nacional brasileiro falando sobre suas vivências e demandas políticas. Nós do MONART (Movimento Nacional de Artistas Trans) tentamos, desde o início de janeiro, dialogar com a equipe da peça Gisberta, atuada e concebida pelo ator cisgênero Luis Lobianco, sobre a história de uma mulher Trans que viveu entre Brasil, França e Portugal e que foi assassinada em 2006. Por um lado, nossas tentativas de diálogo com a equipe da peça foram tratadas como um tipo de afronta a ser condenada e censurada como se fosse uma “ameaça”. Em consequência, fomos difamades e ofendides por parte da grande mídia jornalística. Por outro lado, recebemos apoio de diversos grupos, coletivos, canais midiáticos e indivíduos que reconheceram a importância do debate que tentamos levantar.

Vivemos um momento de ebulição das questões de gênero no Brasil. Certos setores da sociedade estão tentando calar as vozes que emergem e expressam visões de mundo que muitos não conhecem ou não querem conhecer. Já outros setores, como o artístico, estão usando as questões de gênero como tema favorito para a construção dos seus trabalhos. O problema que nós, artistas Trans, temos levantado é: por que atores e profissionais da arte cisgêneros detêm o controle da produção de trabalhos sobre a população e a temática Trans? Essa questão não é individual, mas estrutural. Por que, histórica e sistematicamente, pessoas Trans não têm acesso a empregos (sejam eles artísticos ou não) que não sejam marginalizados ou subalternizados? Por que não podemos ter destinos ou sortes distintas da morte por assassinato ou suicídio precoce? Por que não temos acesso a sistemas de saúde, educação, empregabilidade ou a redes de afeto familiar ou romântico?

Quando levamos a público a tentativa de debater sobre representatividade Trans nas artes, estamos criando um diálogo sobre estruturas sociais e econômicas de exclusão e de silenciamento de certos corpos, de certos grupos. O ato/protesto realizado na estreia da peça Gisberta, em frente ao CCBB em Belo Horizonte – MG, de modo algum procurou ser uma afronta ou uma ameaça pessoal à integridade ou à moral da equipe do espetáculo. Nossas reivindicações são históricas, estruturais, e não personalistas. Se a equipe de Gisberta e outros indivíduos personalizam nosso protesto, é possível suspeitar que eles estejam querendo esconder e perpetuar as estruturas históricas de silenciamento, apagamento e exclusão de pessoas Trans de espaços não-marginalizados na sociedade. No limite, podemos suspeitar que tais indivíduos estão tentando manter seus poderes e privilégios sobre certos lugares sociais e econômicos dentro da nossa sociedade, por isso não estão se abrindo às nossas propostas de debate.

Protestamos pelo reconhecimento dos nossos talentos, pela visibilização dos nossos trabalhos e por redistribuição financeira. Queremos empregos, queremos ser pagas e pagos por nossos trabalhos, não mais sendo chamades para trabalhar de graça (visibilidade sem redistribuição não transforma!). Estamos lutando contra o monopólio histórico que a cisgeneridade (branca e normativa) detém sobre os espaços artísticos e sobre os outros espaços da sociedade. Quando levantamos a bandeira “Chega de trans fake!”, não temos a intenção de censurar expressões artísticas, até porque não temos, enquanto grupo marginalizado e excluído, o capital simbólico e financeiro para legislar as normas. Quando dizemos “Chega de trans fake!”, estamos manifestando nosso descontentamento diante de práticas artísticas segregadoras e silenciadoras. O termo trans fake é utilizado pelo MONART em semelhança ao uso do termo black face, que o Movimento Negro tem colocado como marcador de uma prática artística histórica e estruturalmente racista, utilizada por artistas brancos ao se pintarem de preto para representar pessoas negras nas artes. O problema da representação, aqui, se cruza com o problema do “lugar de fala”, termo que vem sendo esvaziado e confundido com um tipo de “lugar de poder” de um ou mais indivíduos. Originalmente, lugar de fala marca e aponta os apagamentos e os silenciamentos históricos produzidos sobre certos grupos sociais marginalizados, ou seja, é um conceito que fala sobre processos de destituição de validade, de realidade, de possibilidade, de falas e expressões; é sobre ausência de poder.

Temos ouvido constantemente que “atores podem interpretar qualquer personagem”. Pois bem, em primeiro lugar, nossa luta não é apenas para que pessoas Trans interpretem papéis Trans, mas para que pessoas Trans entrem no mercado de trabalho artístico (atuando, performando, filmando, dirigindo, fazendo figurino, iluminação, som, cenografia, produção, entre outras ocupações) e, também, no mercado de trabalho formal e informal na sociedade. Em segundo lugar, o ator que pode interpretar qualquer papel é o ator que representa o sujeito universal. Com isso, estamos tentando dizer que, historicamente, o sujeito que constrói a cosmovisão e as leis da sociedade colonizadora é o sujeito homem, branco, cisgênero, (pseudo)heterossexual, que se produz como fala transparente (aquela que cria um ponto de vista que legisla legitimando ou deslegitimando outros pontos de vista). O sujeito opera por não marcar-se a si mesmo (como homem, branco, cisgênero, heterossexual, etc), mas dizendo-se “humano”, ou seja, um conjunto que representa uma totalidade, uma universalidade, enquanto, em contrapartida, ele hiper-marca outros corpos (racializades, feminines, trans, travestis, deficientes, gordes, etc)  impedindo-os de fazer parte da tal “humanidade”. Aos corpos hiper-marcados, restam as marginalidades e a exclusão. Aquelas e aqueles que nunca puderam ser sujeitos não puderam interpretar qualquer papel, não puderam ser atrizes e atores, pois jamais foram reconhecides como “humanos”, a priori.[i]

Nossa intenção é marcar as práticas de destituição de lugares de fala de pessoas Trans que vemos acontecendo, aqui e agora, nas artes e em outros setores da sociedade. O Transfeminismo[ii], pensamento do qual fazemos parte, só surgiu por conta da abertura interseccional que feministas negras criaram ao questionar o universalismo do feminismo branco. Nessa esteira, estamos contestando o universalismo cisgênero. Nosso movimento também se alia a movimentos de pessoas Trans (e de aliados cis) artistas em outros países[iii]. Não estamos sozinhes. Estamos aqui para cobrar uma dívida histórica, não pessoal. Buscamos empatia e parcerias com pessoas, coletivos artísticos e instituições, pois sem aliados não conseguimos mudar nada. Se estamos pedindo por diálogo, estamos tentando agir em conjunto. Como disse Kil Abreu, crítico teatral e atual curador do CCSP (Centro Cultural São Paulo), em sua página do Facebook sobre a representatividade Trans:

O teatro é maior e nele devem caber as histórias de todos e todas. E também há de ter espaço para que es seres humanos de toda natureza possam presentar/representar a si mesmes. É um debate difícil, e tem que ser feito. O que não se pode é começar decretando que a discussão é ilegítima.

Precisamos e estamos procurando alianças, só assim nossas vozes começam a ser ouvidas, e nossas expressões, reconhecidas e legitimadas.

 

Representatividade trans, já!

Digamos sim ao talento trans

Chega de trans fake

 

Notas:

[i] Para entender melhor sobre o “sujeito” e a ficção do universal, ouçam a ensaísta e performer Jota Mombaça: https://soundcloud.com/r-dio-afrolis/audio-167-lugar-de-fala-e-relacoes-de-poder-com-jota-mombaca-parte-ii.

[ii] Para mais sobre o Transfeminismo, leiam o livro: “Transfeminismo – Teorias & Práticas”, livro fundamental organizado pela Doutora e mulher Trans, Jaqueline Gomes de Jesus.

[iii] Vide o Manifesto REPRESENTATIVIDADE TRANS, JÁ! na página do Facebook Representatividade Trans para saber mais sobre nós

 

Caio Jade é performer, escritor, artista visual e homem trans, integrante do Coletivo T e do MONART (Movimento Nacional de Artistas Trans).

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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