Conversa com Sidnei Cruz

Conversa sobre a peça “Onde você estava quando eu acordei?”

8 de abril de 2008 Conversas

Cumprindo sua primeira temporada na Rua do Mercado, Rio de Janeiro, o espetáculo “Onde você estava quando eu acordei?”, de Sidnei Cruz, foi inicialmente inspirado pelo clássico feminista, SCUM Manifesto, de Valerie Solanas. Em cena somente duas atrizes: Cristina Flores e Márcia do Valle. Na conversa transcrita a seguir, Cruz traça o seu processo como autor e diretor do espetáculo. Como assistente de direção do mesmo espetáculo, eu faço uso do acompanhamento do processo para questioná-lo sobre: a simultaneidade da configuração textual e cênica, a relação do diretor com o seu texto, a espacialidade, a recepção, entre outras coisas.

VIVIANE SOLEDADE – Primeiramente eu queria que você falasse sobre o seu processo enquanto dramaturgo. O que te motivou a escrever sobre duas mulheres?

SIDNEI CRUZ – O processo da escrita desse texto inicialmente foi uma demanda de uma atriz amiga minha de Aracaju, Diane Veloso. Ela estava querendo montar um texto e eu indiquei vários para ela. Ela leu, ela buscou outros, mas não ficou satisfeita com nenhum deles. Eu, numa atitude de desespero, falei que a única coisa a fazer era eu mesmo escrever um texto pra ela. E aí ela foi me falando que queria encenar um texto sobre duas atrizes que discutissem questões do lugar da mulher hoje, no mundo contemporâneo. Que falasse sobre aborto, machismo, fidelidade… Um texto que pudesse falar da vontade de chutar o pau da barraca e buscar outras soluções. Ela foi me dando os desejos dela e eu resolvi brincar com isso. No mesmo dia comecei a escrever frases que vinham na minha cabeça sobre as coisas que ela tinha me falado, do feminismo. Me lembrei do livro da Valerie Solanas, SCUM Manifesto, fui me lembrando de uma série de outras coisas e fui consultando. Primeiro fui formando os diálogos. Usei o mesmo esquema do automatismo psíquico dos surrealistas, fui botando uma coisa atrás da outra, sem buscar uma lógica.

VIVIANE SOLEDADE – Você falou uma vez, no processo dos ensaios, que essas falas poderiam ser todas de um personagem só. Você acha que isso tem relação com o acaso da constituição desse texto?

SIDNEI CRUZ – Eu optei logo de cara por uma experiência dramatúrgica que não fosse tradicional. Eu não quis entrar nessa de escrever uma historinha com início, meio e fim. Nem uma história que tivesse conflitos, enredo e um grande desenvolvimento psicológico. A primeira coisa é que elas não são personagens, e sim figuras. Na verdade, se elas fossem pessoas seriam uma só. Ou então uma multiplicidade em um, ou que elas tivessem duplos. Ou que Vera e Sara fossem a mesma coisa, mas que se metamorfoseassem uma na outra. Me lembrei do Qorpo Santo: “Hoje sou um, amanhã sou outro”. Fui pegando essas idéias de trabalhar as descontinuidades da fala. Dividir as falas em dois personagens era uma mera questão de tradição, de se ter duas atrizes em cena, e cada uma com um know-how de falas, situações e ritos a serem cumpridos.

VIVIANE SOLEDADE – É por isso que você acha que o espetáculo tem essa estrutura dramatúrgica e cênica atemporal e descontínua?

SIDNEI CRUZ – Claro! Eu busquei uma estrutura em que eu pudesse ao mesmo tempo botar duas figuras/pessoas em cena dialogando e discutindo, mas que, com poucos recursos, elas mudassem de um tempo para outro, para passar a impressão de que elas eram muitas. Eu parti da idéia de um filósofo, que é o Henri Bergson, em que ele diz que o passado, presente e futuro são simultâneos. Então eu juntei à idéia do cinema de flashbacks, de close e recortes. Peguei também a idéia do cut-up de Burroughs, que é você fazer superposições de falas e tempos e fazer passagens aleatórias. Ou seja, a pessoa está falando de uma coisa e de repente muda para outra, como no universo dos sonhos. Fui pegando esses procedimentos que vêm dos surrealistas, do cinema contemporâneo, da dramaturgia becketiana, do absurdo de Ionesco… Até de Nelson Rodrigues, de se ter vários planos, um tempo real e um tempo psicológico. Peguei dos pós-dramáticos o rompimento com o tempo contínuo, com a idéia de um tempo após o outro como algo que anda em linha reta para frente. O futuro pode muito bem caminhar aos saltos e andar para trás. O personagem poderia estar discutindo alguma coisa e em seguida voltar para sua infância sem precisar indicar que houve uma volta para a infância. A experimentação foi um pouco por esse lado de tentar fazer fluir no jogo da cena uma série de tempos e que os espectadores pudessem montar de acordo com os seus desejos. Então, se eu estou falando de uma discussão que vai resultar em uma briga, eu cortava essa briga e colocava no começo e fazia uma montagem. Depois de um certo momento eu comecei a cortar pelo meio, botar pra frente, botar pra trás, tirar de uma figura e passar pra outra. Fui fazendo esse quebra-cabeça pra ter texto como uma matéria cênica que você pode colocar aonde quiser. Tanto é que durante os ensaios eu praticamente reduzi a participação das palavras pela metade.

VIVIANE SOLEDADE – Como foi a experiência de encenar o seu próprio texto? O que você percebe de diferente no processo, na medida em que você já montou autores como Nelson Rodrigues, Jorge Andrade e Dias Gomes?

SIDNEI CRUZ – Você pode fazer o que quiser, pois não tem que pedir nada pra autor nenhum. Você não tem que ter nenhum tipo de constrangimento, de escrúpulo de mexer, de tirar de um lugar e botar em outro, de cortar, de reescrever o que quer que seja. Num dado momento eu abordei o texto como se fosse de outra pessoa, porque eu mesmo não tinha me debruçado ainda sobre as soluções cênicas. Eu até tive dificuldades. Em vários momentos eu achei que o texto não era bom. Porque, quando eu escrevi, eu caí na armadilha que todo dramaturgo cai, de botar palavras, de seguir um raciocínio e de tentar justificar. E a única forma que você tem de se expressar é a palavra. Quando você vai para a cena, a palavra é mais um elemento, e talvez nem o mais importante. No meu caso, eu acabei tomando o texto como uma referência básica porque fui vendo possibilidades de mudança a partir da leitura das atrizes. Na medida em que fui construindo a linguagem do espetáculo, encontrei o espaço. A Rua do Mercado é um espaço, não um teatro. Eu fui encontrando elementos da poética que foram ficando mais fortes do que muitas palavras do texto. Para os cortes no texto, eu era influenciado por diversas fontes, desde coisas que fui colocando no espaço que eram mais fortes que as palavras – as ações das atrizes eram mais fortes que as palavras – e automaticamente as palavras iam ficando demais. Então, meu trabalho desde o início foi de encenador mesmo. Foi de dramaturgo-encenador, sem a vaidade de ser o autor.

VIVIANE SOLEDADE – Então o texto foi se processando com a construção da cena?

SIDNEI CRUZ – Claro. Na verdade, eu poderia dizer que esse texto aconteceu de fato como demanda da linguagem cênica. A vantagem é que eu já tinha esse material bruto na mão. Eu tinha feito esse trabalho anterior. O que não quer dizer que eu vá fazer isso de novo, mas eu já fiz isso muito, em outras montagens minhas. Sempre escrevi meus textos.

VIVIANE SOLEDADE – Como é essa demanda que um diretor tem de montar textos próprios?

SIDNEI CRUZ – Mas eu sempre escrevi muitos textos que eu montei.  Fiz adaptações de romances… Mas o que há de diferente é que eu sou uma pessoa diferente hoje. Eu tenho muito mais experiência, eu acredito muito mais num outro tipo de linguagem teatral. Com certeza não escreveria hoje um texto apenas pra começar um processo cênico, mas também não sei se eu começaria um processo cênico sem texto. Até porque é difícil você encontrar atores hoje que estejam dispostos a fazer isso. Eu não tenho um grupo de teatro com o qual eu possa fazer experimentações corporais, de dança, e depois ir botando o texto. Não é o meu métier. Neste caso, pra mim, o texto se tornou um pretexto pra eu falar um monte de coisas que eu estava a fim de falar. Muito mais do que cuspir uma série de coisas que não são nem novidades: não é o que se fala, mas como se pode tratar disso, foi aí que entrou a dramaturgia. A idéia de contar essa história dentro de uma engenhoca – que é um caleidoscópio que, girando, você tem vários fragmentos  – é que foi o grande lance da dramaturgia. A dramaturgia já tinha uma encenação.

VIVIANE SOLEDADE – Por falar em caleidoscópio, queria que você falasse um pouco dessa disposição espacial adotada na peça, de pontos de vista diversos para espectadores diversos. Como é que você acha que isso se conjuga com a encenação e com o texto?       

SIDNEI CRUZ – Quando eu comecei a ensaiar no espaço essa forma não existia. Nem um projeto de se chegar a essa forma. Ela foi chegando junto com uma série de outras coisas que foram sendo experimentadas. Se a dramaturgia propõe vários pontos de vista em que você não tem uma continuidade no tempo, então eu precisava, também, encontrar como essa descontinuidade se daria no espaço. O conceito de descontinuidade na dramaturgia, no tempo narrativo, precisava se associar, se completar com a descontinuidade no espaço. Eu sabia que não podia fazer teatro de arena, em que o público ficasse em volta e visse o fato cênico que acontecia no centro. Não era palco italiano, já de cara, nem semi-arena, ou seja, não poderia existir apenas um ponto de vista, onde a cena se dava e, em torno dela, o espectador convergisse para esse foco central. Eu tive que destruir essa idéia de um foco central. Isso também não é nenhuma novidade, não estou reinventando a roda. Então chegamos à idéia dos bancos. O José Dias veio com a concepção de bancos de dois lugares, com um material que ele descobriu… Se encaixou muito bem com a minha proposta. A disposição criava uma estrutura de labirinto e ao mesmo tempo uma estrutura de mente desordenada, ou de pontos de vista desordenados, de maneira que os espectadores não ficassem de frente uns para os outros, mas de lado, causando certo desconforto em alguns momentos, obrigando-os a se virar pra ver partes que acontecem atrás. O espectador tem que buscar o foco da cena e compor o recorte que ele quiser. Portanto, a distribuição veio em função, também, da pesquisa que a dramaturgia já apontava, da descontinuidade no tempo e no espaço.

VIVIANE SOLEDADE – Acompanhando o processo da encenação, eu percebo que há momentos em que você não tem o menor comprometimento com o realismo e, no entanto, em outros você provoca uma ação extremamente realista, pois não é representada. Isso foi inconsciente ou você realmente tem esse propósito de criar uma tensão entre o que é representável e o que não é?

SIDNEI CRUZ – Inconsciente vai ser sempre, porque pra mim o processo de criação é muito mais inconsciência do que consciência, embora você possa ser racional e criativo. Eu teria dificuldade de afirmar que tal coisa é realista. Pra mim, à medida que você começa a criar o jogo teatral já não está em nenhum realismo. Pra mim são figuras inventadas. Alguns teóricos vão dizer que isso é realista porque se parece com o real. Porque é verificável com certo tipo de lógica. Eu procuro escapulir no espetáculo de uma sensação de representação. De representar algo que em si – se você deixar acontecer naturalmente – já é poesia, já é estranheza. Como o ato de tomar café. Não se representa alguém tomando café, se toma café. É só isso. Não tem nada por trás. Não há nenhuma informação subjacente. Tem horas que você tem que fugir de qualquer discurso, até do discurso poético. Você deixa a coisa acontecer. Você não precisa fazer nenhum esforço para que aquilo signifique algo a mais. Isso, porém, também pertence a um certo tipo de criação artística que não acrescenta nada porque deixa pouco para o espectador inventar. Então, claro que deve ter uma ação direta do projeto artístico pra criar uma descontinuidade, isso é uma coisa que tem a ver com a filosofia de aplicação da vida. As pessoas são muito senso comum. As pessoas são muito lógicas e precisam de justificativa para tudo. Elas só agem dentro de um certo ritual, certo rigor e certa norma, e por isso elas nunca conseguem romper com preconceitos. Você usa a descontinuidade do tempo e das ações para fazer uma reflexão sobre o engessamento da vida em sociedade e sobre as suas convenções. O tempo linear é uma convenção de aprisionamento. Então, você chama a atenção, no processo artístico, para o fato de que a sua memória está com você, e, se ela está perdida, ela pode ser resgatada num insight.

VIVIANE SOLEDADE – Proust, né?

SIDNEI CRUZ – É! Tem isso! A coisa do tempo perdido, mas é coisa do insight mesmo, do sonho. Você sonha a todo o momento. Sonhar dormindo é o momento mais consagrado por Freud e pelos pesquisadores, por Jung, como um momento importante, mas o sonho acordado, que é o do cotidiano da vigília, a gente perde o tempo todo. 

VIVIANE SOLEDADE – Tem um momento da peça em que a atriz lê um fragmento do livro Tinha uma coisa aqui da Ieda Magri: “Eu teria bebês se fossem de brinquedo. Um capricho de mulher na tentativa de vencer o tédio da vida para não ficar sozinha na velhice (…). Minhas bonecas cortei em tiras, arranquei cabeças, perdi pés, arranquei os cabelos e era a minha forma de amá-las. Se as odiava, ganhavam uma caixa de papelão e iam pra cima do armário. (…) Se tivesse um bebê e depois guardava na caixa, eu teria um. Se tivesse um bebê e desligava na hora de sair com o rapaz bonito vizinho da frente, juro que teria um pra me entreter nas tardes de domingo igualzinho ao que faço com o amor que tenho”. A questão da exigência da maternidade já está explícita na citação, mas a percebo também como analogia à condição destas mulheres, como se estivessem brincando com essa boneca. Mas ao “colocarem a boneca de volta na caixa” irão acordar para “namorar” e dar conta das coisas da vida. Mas é claro que isso é um desdobramento da minha recepção.

SIDNEI CRUZ – É uma percepção sua enquanto espectadora. É pertinente? Se a cena provoca esse tipo de coisa em você…

Nesse momento surge um senhor, em frente ao bar em que nós estamos conversando, pedindo um real para tomar uma cachaça, alegando que tinha problemas nos olhos. Devido à insistência, Sidnei acaba lhe dando o dinheiro. A partir disso Sidnei diz:

SIDNEI CRUZ – É isso que eu estou dizendo… O que se faz numa situação dessas? Você se comove? Você se sensibiliza com a situação? Você atribui a quê? Afinal, a gente procurou, né? A gente veio pra cá, sentou aqui, mas isso poderia ter acontecido em qualquer outro lugar. Porque acontece, né? Eu vou ficar preocupado em saber se é verdade? Se ele é deficiente mesmo? Parece que é, pois ele tirou alguma coisa do olho. Ou é uma máscara? Ele é um mágico? E o que isso importa, se é verdade ou não? Ele quer que a gente se foda! Foda-se o que a gente está fazendo aqui!!! Ele quer alcançar o objetivo! Mas a gente estava falando do quê? (risos)

VIVIANE SOLEDADE – É como se eu pudesse dizer que a Sara e a Vera estão “brincando de boneca” durante todo o espetáculo. 

SIDNEI CRUZ – Se você abstrair o brincar de boneca pra coisa em si da boneca… O que é a boneca? A boneca é a vida? Na verdade, quando se brinca de boneca, se brinca de ser mãe, você está se educando e se preparando para seguir um modelo que está dentro da família, que é a sua própria mãe. O brincar de boneca já é um ritual de preparação daquela menina para ocupar o seu lugar na instituição que mantém o sistema, a sociedade. A narradora daquela história percebeu que ela não ia fazer parte desse jogo. Ela preferia fazer outras coisas, e faria aborto quantas vezes fossem necessárias. E talvez viveria a vida toda sem ter filhos. No jogo, aquilo entrou porque a gente vislumbrou essa possibilidade de ressonância. É claro que são imagens. Eu não procuro garantir que o espectador leia dessa maneira.

VIVIANE SOLEDADE – E nem é possível.

SIDNEI CRUZ – Eu só estou falando aqui porque estamos conversando. Eu nem pretendia fazer esse discurso, mas eu fico feliz em saber que você viu isso. Assim como cada um que assistir ao espetáculo vai ver outras coisas. Se o espetáculo garantir a possibilidade de que vários espectadores leiam coisas diferentes a partir daquelas insinuações, então eu acredito que a gente cumpre uma das funções primordiais do ato de fazer teatro, que é levar as pessoas para um lugar, reunir as pessoas numa assembléia, em que você possa dialogar a partir das coisas que os que foram ali ver vão encontrar naqueles que estão ali para mostrar.

Agora edita, tira os palavrões e a parte que o cara interrompeu a gente aqui!

VIVIANE SOLEDADE – Não! Esse é o acaso!

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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