O Evangelho segundo Pippo Delbono

Crítica da peça Vangelo, com direção de Pippo Delbono

8 de fevereiro de 2017 Críticas

De antemão, tomo a liberdade de dizer que é difícil sair indiferente a um espetáculo como Vangelo, de Pippo Delbono. Corro o risco dessa generalização devido à reação de alguns companheiros espectadores, e também às minhas próprias percepções, certamente remexidas. A montagem a que assisti se deu no Theatre Olympics, grande festival de teatro ocorrido na cidade de Wroclaw, Polônia[1], contando com um público heterogêneo advindo de várias partes da Europa. Dentre as pessoas com quem pude conversar, a sensação de desconcerto era quase a mesma. Para plateias europeias, não é novidade o caráter ousado do trabalho de Pippo Delbono, seja no cinema, seja no teatro; porém foram muitos os que saíram anestesiados da obra mais recente do artista e de sua companhia teatral.

É difícil falar de um espetáculo do qual se sai sem ideia exata do que acabou de acontecer. As dramaturgias contemporâneas há muito deixaram de se pautar pelo sentido unificado das obras, mas não se trata exatamente disso. Falo aqui de um evento cênico que assume um posicionamento agudo não somente em termos de uma proposição estético-política, mas também de presença física de sujeitos no palco e intensa manipulação de recursos técnicos como som, luz, figurino e cenografia. O trabalho de Pippo Delbono, nesse sentido, parte de inquietações existenciais e políticas do próprio autor sobre o mundo de hoje, porém isso é feito a partir da materialidade mais imediata daquilo que está no palco: a matéria corporal e biográfica do próprio diretor e dos atores em cena, orquestrados e enquadrados tecnicamente pela direção de Delbono. Há algo de estranho e potente nas sequências e quadros montados pelo ator-diretor: fala-se de valores e questões universais como o amor ao próximo e o problemas dos refugiados na Europa, mas tal proposição se dá por meio de corpos, coreografias e arranjos técnicos que nos puxam para o presente cênico e evitam a revoada do nosso pensamento para além da apresentação. É, a princípio, desse aspecto que deriva a sensação de desconcerto: Vangelo impressiona os sentidos do começo ao fim, e a questão é pensar por que meios o espetáculo consegue esse efeito, e no que resultaria esse “ofuscamento” da racionalidade do espectador.

Foto- Maciej Zakrzewski FotoTeatr. 1
Foto: Maciej Zakrzewski FotoTeatr.

Em entrevistas, Pippo Delbono afirma que o processo de criação de Vangelo se iniciou com um pedido de sua mãe, no leito de morte. Pediu ela a seu filho um espetáculo sobre o Evangelho, em dias tão necessitados de amor cristão. Dispersando e desdobrando o tema, remetendo à sua própria formação religiosa e em íntimo diálogo com o músico Enzo Avitabile, o processo criativo de Delbono contou com intervenções e memórias dos próprios atores da Companhia Pippo Delbono e de participantes do CNT (Croatian National Theatre, no Zagreb), gerando concomitantemente um documentário homônimo sobre os refugiados acolhidos na cidade de Asti, Itália. Assim, pode-se observar como a temática do amor ao próximo e do sacrifício de Cristo passou a ser um ponto de inflexão para pensar a crise migratória por que passa a Europa atualmente, refigurando afetos e valores como piedade e alteridade, amor ao próximo e preconceito, humanitarismo e xenofobia.

Para tanto, o espetáculo prende e quase mantém refém a sensibilidade do espectador, cujos sentidos se “colam” à superfície cênica. A primeira cena, por exemplo, é composta pelos cerca de quinze atores do elenco que se sentam em cadeiras de estilo clássico, de frente para o público, em formato que remete de longe à representação da Santa Ceia. Os trajes formais que os caracterizam, assim como as vigorosas cordas que incorporam a música de fundo, anunciam o tom solene e operístico que frequentemente marcará a apresentação. Porém, cenas depois, esses mesmos atores se vestem com batinas escarlates e máscaras ao estilo Ku Klux Klan, e oficiam uma paródia barroca da crucificação, tendo no lugar de Cristo um homem de aspecto físico decaído, de formas encovadas e olhos fundos. Trata-se de Nelson Lariccia, ex-morador de rua que hoje integra a Companhia Pippo Delbono.

Foto: Maciej Zakrzewski FotoTeatr.
Foto: Maciej Zakrzewski FotoTeatr.

A descrição acima abarca somente dois momentos do que chamaria de uma jornada operística. Nela, o elenco se reveza em diversos figurinos e máscaras, em coreografias e sequências de movimento que, aliados à música e à luz, revelam forte codificação ritual. A estas cenas se sucedem sequências performáticas cujas repetições e movimentos desconstruídos indicam uma forte influência de Pina Bausch (com quem Pippo Delbono já trabalhou durante muitos anos). Por fim, é necessário lembrar que cenas emblemáticas do espetáculo têm como destaque atores portadores de deficiência da Companhia Pippo Delbono: além do já mencionado Nelson Lariccia, Bobò, surdo e mudo, egresso de instituição psiquiátrica, que passeia pelo palco em roupas espalhafatosas e chifres; e Gianluca Balarè, jovem com síndrome de down, que dança, aparece num berço fantasiado de bebê e se engaja em ações junto ao resto do elenco. Presenças como essas certamente despertam questionamentos éticos sobre os procedimentos cênicos em Vangelo. Até que ponto a ópera-happening orquestrada por Pippo Delbono pode ir sem se tornar apelativa?

Foto: Maciej Zakrzewski FotoTeatr.
Foto: Maciej Zakrzewski FotoTeatr.

A iluminação e as projeções de imagens de refugiados, a estrutura musical e sonora ricamente composta por Enzo Avitabile, o potencial performático do elenco, o aproveitamento da singularidade física de certos atores – todos esses elementos são agenciados pela própria liderança de Pippo ao microfone, que se coloca em cena como mestre de cerimônias. Reitero a questão: estamos nós diante de um teatro de variedades, de um freak show costurado pelos prólogos biográficos do autor demiurgo, figura midiática em cena? Nessa perspectiva, diante de um “espetáculo monstro” – desfigurado e refigurador, que retorna às raízes arcaicas do cristianismo para desfazer suas contradições e recuperar o amor e a humanidade entre os homens –, teríamos o risco de transbordamento para um teatro que impressiona e pouco demove, que provoca descarga de sensações e baixa carga de pensamento, causando o frisson pelo frisson e nada mais. Porém, esse é de fato o motivo do desconcerto a que aludi anteriormente?

Foto: Maciej Zakrzewski FotoTeatr.
Foto: Maciej Zakrzewski FotoTeatr.

Talvez o mais interessante seja que o trabalho de Pippo Delbono e Cia. se localize nesse ponto nodal, entre a ousadia cênica e a incorreção de suas proposições, e o caráter política e esteticamente consciente das mesmas. À parte as restrições inerentes à memória, torna-se difícil recuperar a experiência de Vangelo dada a profusão de imagens que se testemunha, e que transbordam limites, não apenas entre a vida pessoal do artista e a obra de arte, como também limites éticos e políticos, como a presença em cena de portadores de deficiência e o uso do semblante de homens refugiados em projeções. Tais procedimentos desmobilizam nossas percepções precisamente porque se colocam nesse lugar excessivo e problemático, oscilando entre a denúncia social e a exploração da imagem do outro, entre o impacto cênico e o sensacionalismo.

Uma hipótese como esta talvez conte demasiadamente com uma suposta intenção deliberada do diretor Pippo Delbono em ser polêmico, como se o risco da exploração midiática e do show de variedades fosse um dado consciente e produtivo de sua criação. No entanto, o mestre de cerimônias de Vangelo parece assumir um estatuto mais complexo do que um simples apresentador de maneirismos estéticos. Destaco que este se encontra entregue e à vontade no palco, ora movimenta-se desajeitadamente aos gritos, ora desempenha movimentos com a exatidão de quem dançou com Pina Bausch por anos. Ele narra parábolas, recupera textos da tradição literária e relata ao público cenas de sua intimidade. O que desejo ressaltar com isso é que, inegavelmente, Pippo está no palco. Existe em Vangelo a força do biográfico, a plenitude do corpo e da presença de um sujeito que está no palco. Delbono não só invoca toda uma parafernália cênica, como também participa íntima e ativamente dela. O seu pleno domínio do texto, que destila as narrativas com a segurança de um sólido trabalho de voz e elocução, se associa uma total entrega ao processo que se desenrola cenicamente no palco.

Uma imagem que permanece em minha memória é que, nas sequências em que Bobò aparece, frequentemente Pippo Delbono o acompanha pela mão. De idade avançada e saúde debilitada, Vincenzo Cannavacciuolo (seu nome de batismo) sofre de microcefalia, e é surdo e mudo. Resgatado em 1996 do total abandono numa instituição psiquiátrica, ele passou a fazer parte da Companhia Pippo Delbono e desde então participa de inúmeros espetáculos lado a lado com o diretor.

O caso de Bobò é emblemático da proposta política e estética da Companhia Pippo Delbono, a saber, a de resgatar e acolher os marginalizados e malditos pela sociedade, alimentando-se criativamente desse embate com o diferente, o precário e o marginal. O sofrimento dos párias é matéria de identificação e criação para Pippo Delbono, porém o singular dessa característica me parece ser o relacionamento íntimo que o diretor estabelece, em cena, com essas alteridades. Existe uma cooperação e uma projeção de Delbono sobre esses sujeitos especiais e sofridos, configurando uma matéria teatral eminentemente retirada das vivências e da presença física singular dele e dos que o acompanham no palco.

Foto: Maciej Zakrzewski FotoTeatr.
Foto: Maciej Zakrzewski FotoTeatr.

É interessante perceber que isso se dá não somente no caso dos atores especiais, mas em cada um dos atores da Companhia, que possuem cada qual uma marca que os evidencia como criaturas do palco e da alteridade. A impressão que tive era que cada ator possuía uma presença específica, espécie de magnetismo indefinido que se acrescenta ao seu potente trabalho performático. Nesse sentido, a voz fina e debilitada e os movimentos lentos de Bobò, a fraqueza do corpo de Lariccia e a força dos gestos de Gianluca podem ser apenas mais um traço do “catálogo” humano composto pela Companhia Pippo Delbono ao longo dos anos. Catálogo esse formado menos pelo interesse de reunir estranhezas, e mais pelo desejo de acolher a alteridade que reside em cada um dos que a eles se juntam.

Os atores, portanto, são o catalisador que une rito, crítica política, performance, projeção fílmica e a música de Enzo Avitabile. São os corpos, as deformidades, a singularidade de cada ator, além da presença física e biográfica de Delbono, que a eles adere de modo, é certo, espetacular e por vezes desconcertante. Com um toque de humanidade difícil de precisar, mas que está ali.

 

Renan Ji é Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

JI, Renan. ” O Evangelho segundo Pippo Delbono – Crítica da peça Vangelo, com direção de Pippo Delbono” In Questão de Crítica. Vol. IX nº 68 outubro a dezembro de 2016.

 

Notas:

[1] Participei do Festival por meio do Young Critics Seminar, organizado pela AICT-IATC (Associação Internacional de Críticos de Teatro), que garantiu estadia, alimentação e livre acesso à programação do evento. Meus sinceros agradecimentos à organização do Festival e à AICT pela oportunidade.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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