Um espaço para o devir
Crítica de Cabras – Cabeças que rolam, cabeças que voam, da Cia Balagan
Vol. IX, nº 67 abril de 2016 :: Baixar edição completa em PDF
Resumo: O texto enfoca o espetáculo Cabras, cabeças que voam, cabeças que rolam, criado e dirigido por Maria Thaís para a companhia Balagan, de São Paulo.
Palavras-chave: Cabras, Balagan, montagem, narratividade.
Abstract: The review focuses Cabra, cabeças que voam, cabeças que rolam, created and staged by Maria Thaís for Balagan group from São Paulo.
Keywords: Cabras, Balagan, montage, narrativity.
Sétimo trabalho da companhia paulista Balagan, Cabras, cabeças que voam, cabeças que rolam se inscreve na mesma vereda por ela antes trilhada de procurar uma poética estreitamente vinculada com o tema proposto, reinventando um percurso de criação cujo destino é tocar algo novo e antes não referido.
Maria Thaís, a encenadora, defende com garra o comando do grupo, superando as naturais dificuldades de todo processo – não apenas criativo, mas também de sobrevivência, administração e luta contra condições adversas à criação artística entre nós. O elenco tem variado ao longo da história da Balagan, fundada em 1999, e isso se reflete nas criações. Cabras conta com uma equipe renovada, nem todos rendendo satisfatoriamente no mesmo diapasão de trabalhos anteriores, mas que se mostra coesa e afinada com as propostas criativas do ensemble.
Tomando por núcleo criativo a palavra-valise cabra – polimorfa e metafórica -, a encenação transita por apurada intertextualidade. Há um território de base onde se manifesta, o sertão brasileiro e suas peculiares contradições socioculturais, mas, como rizomas, os demais sentidos vão se imiscuindo e se desdobrando nessa partitura textual criada por Luís Alberto de Abreu que não esconde sua intimidade com as poéticas de João Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto, autores maiores da língua, mestres em conduzir as sonoridades expressivas para fraseados peculiares e muito próprios. Trata-se de um universo onde a cabra e os cabras convivem em aliança, tão somente vozes berrando ao léu suas agruras.
Transbordamento
Os eixos criativos da realização são Guerra, Festa e Fé e cada participante do ensemble, incluindo os músicos, o cenógrafo, o iluminador e demais integrantes puderam, ao longo do percurso, elaborar a tríade sob variados pontos de vista. Foram criadas quatro versões cênicas, cada uma delas etapas de depuração quanto ao produto final, oportunidades de incluir também o público no rol dos criadores, uma vez que sugestões e observações por ele indicadas foram incorporadas. Esse dialogismo processual buscou, sobretudo, estreitar e absorver em modo não personalizado as alternativas poéticas descortinadas.
O material textual final resultou das simbioses que Luís de Abreu e Maria Thaís efetivaram sobre todo esse conjunto. Que, naquelas alturas, já se mostrava indefectivelmente impostado enquanto cena. Cenas-guia ou cenas-mônadas, uma vez que os serviços dramáticos foram dispensados em benefício das costuras épicas, narratológicas, desenhadas como mosaico que exibe qualidades próprias. No resultado final, as cenas se imbricam, se superpõe, exercem a função de contraponto, se dão à vista em sua natureza híbrida de fechadas e abertas. Isso não cria dificuldades para a sequência, embora possuam a natureza do romance e não a intersubjetividade do drama. A Guerra pode passar à Festa ou à Fé sem que obstáculos se ofereçam ao percurso. No fundo e afinal, as três dimensões são diferentemente nomeadas apenas para facilitar as referências, posto que, em sua unidade íntima, nascem e crescem de uma mesma realidade: o espaço.
É o espaço, de fato, o fator unificador do espetáculo. Cada uma das quatro versões em processo foi realizada sob diferentes condições espaciais, dialogando e aproveitando cada uma das geografias disponíveis. No Centro Cultural São Paulo, onde Cabras finalmente estreou para o grande público, uma imensa parede de concreto armado delimita o fundo da cena, um brutalismo originário que não fere, mas, ao contrário, complementa, o paisagismo alucinado dos horizontes sertanejos. Verde, róseo, alaranjado, vermelho, púrpura ou amarelo, esse paredão hostil se estiola e se dobra às incursões luminosas, propondo metáforas pelo avesso do avesso onde antes só existia o duro concreto de nossas esquinas.
Cabeças voam, afinal. É apostando nesse desígnio múltiplo que o espetáculo se oferece às percepções, tomando o transe como trânsito: uma via de acesso. Rodando como um pião, o que temos são flashes, instantâneos colhidos pelo cine-olho que cada um pode articular em relação àquelas paisagens reais e imaginárias. Fiel ao espírito criativo de Eisenstein, Maria Thaís emprega a montagem como um recurso poderoso, fazendo do entrelaçamento entre elas uma síntese que almeja mover o espectador. Não se trata de narrar, como nas velhas fábulas, um enredo qualquer, um percurso dramático acalentado pelo sonho ou a fantasia; mas, em outra direção, chocar o espectador com novos ângulos de realidade, novos prismas difratados do real, ele, ainda e sempre, o guia da realização. Não há aqui o luar do sertão, a romântica aventura do espírito que edulcora com eflúvios a gratificação do gozo; mas, bem ao contrário, a aguda reverência à pedra, a singular metonímia com que Cabral esculpe seus significados:
“Só me recordo de Azulão me lavando, com capricho e areia, em mina d’água e o roxo de que sou feito ficou mais escuro. Mancha de sangue entranha em madeira, não adianta arear” (cena 3).
Amnésico
“O devir é o que literalmente se evade, foge, escapando tanto à mímesis, ou seja, a imitação e a reprodução […], quanto à ‘memesis’, ou seja, a memória e a história. O devir é amnésico, pré-histórico, anicônico e estéril; ele é a diferença na prática”, postula Eduardo Viveiros de Castro (CASTRO, 2015, p. 183), indicando uma das razões pelas quais as cabeças voam. Devires são irredutíveis quer à ordem simbólica quer serial, uma das razões pelas quais a cena não comporta ser reduzida a uma estrutura, a algum tipo de modo dramático absoluto ou forma ideal, senão à custa de achatamentos do fato cênico em sua própria manifestação. É da natureza da cena a contiguidade, a superposição, a montagem. Pensada como diferença, a cena desborda toda categorização ontológica que muitos insistem em nela perceber ou cultivar. Território de devires contínuos, ela é pré-histórica e, como acima afirma nosso antropólogo, também amnésica. A diferença aqui aludida, portanto, não é o que falta, mas o que transborda.
É o que foge, se evade pela imaginação e pela intensidade, conformando novos agenciamentos onde antes nada havia ou estava. A contiguidade entre uma roupa e um chapéu, entre um ator e um objeto, entre uma figura e um fundo sem correlações imediatas estabelece uma Gestalt que nenhuma outra psicologia apreende em sua inteireza e pujança, e Maria Thaís as sabe explorar em seu espetáculo com grande maestria. Anti-mimético, Cabras se estrutura pela cena, não pelo texto, obedecendo uma pulsação que apenas a encenação postula, administra e oferece como puzzle de prováveis ou possíveis. Entre o animal (cabra) e o homem (cabra) não há meio termo nem condescendência: um é o outro.
É isso o devir. Conforme explicam os autores de Mil Platôs, o devir não é nem uma metáfora nem uma correspondência de relações, nem uma imitação nem uma evolução – pois “o devir-animal do homem é real, sem que seja real o animal que ele devém; e, simultaneamente, o devir-outro do animal é real sem que esse outro seja real” (DELEUZE e GUATTARI, 2012, p. 19). Enfim, o devir é da ordem da aliança.
Essa a razão pela qual as cabeças podem voar, mas também rolar,seja ao sabor da festa, da fé ou da guerra, três dimensões da realidade permanentemente em jogo no espetáculo.
Realidade
Muitos pensam que a realidade é fruto de interconexões causais. Esquecem que nela está imbricada a linguagem e o desejo: eu falo dela porque minha vontade me orienta nessa direção. Crer que algo exista – no nosso caso, a realidade – é uma condição para nosso desejo se manifestar, pois de outro modo ele nunca seria conhecido. Uma equação que toma por base a inferência é fundamental de ser distinguida nesse processo, pois a crença e o desejo nunca são associações, mas inferências (DELEUZE, 1974, p. 14). Rompe-se assim o círculo serial ou sequencial que estrutura a guerra, a fé e a festa, uma vez que entre os três planos de realidade tanto o desejo quanto a linguagem estão profundamente imbricados na rede de relações possíveis entre eles.
Isso vale para o espetáculo e para o espectador, uma vez que é preciso deixar-se contaminar pela cena, a ela aderir para que devires possam ser colocados em marcha. No programa é relatado que, ao realizarem a pesquisa de campo no alto sertão, muitos dos entrevistados não sabiam explicar o porquê do ódio separando parentes, causa das muitas mortes por vingança naquele universo que pode ser tomado como pré-capitalista. Uma inextricável aliança une festa, fé e guerra entre aquelas populações, apoiada numa particularíssima partitura de crenças e desejos. As mulheres, por exemplo, sabem que vão parir filhos que serão mortos, em emboscadas ou desafios, mas nem por isso deixam de fazê-lo. Há uma inferência aqui bastante particular: se um Albuquerque morre, também um Azevedo precisa seguir o mesmo caminho. É a lei da guerra. Mas também é da fé e da festa, uma vez que todos frequentam a mesma igreja e as mesmas festividades, tornando os encontros entre eles inevitáveis. A vendeta possui uma ética particular e a-histórica: vige desde tempos imemoriais, alimenta-se de cada ação praticada no dia a dia: “puxasse ou não o gatilho, a sorte estava lançada. Nos olhares cruzados, selava-se o destino” (programa, p. 18).
Mas além da guerra, o sertanejo também vive a fé e a festa. A suspensão temporária do ódio dá ensejo ao gozo, íntimo quando se trata da crença, corpóreo, quando se dança e canta a alegria da existência. Através desses fluxos a vida sertaneja escorre, se embrenha no solo e institui um espaço de contiguidades.
Em Cabras, cabeças que voam, cabeças que rolam esse espaço é delimitado pela presença dos atores. Eles são capazes não apenas de se alternarem entre personagens distintas como viver as ambiguidades entre humano e animal, terra e pedra, céu e inferno, dando curso às inferências do espectador. Razão maior, quero crer, para que o espetáculo cale em modo bastante pessoal sobre a plateia, permitindo a cada um ali absorver ângulos bastante particulares. Numa era de homogenia artística, a realização aposta na singularidade de uma invenção.
Referências bibliográficas:
DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo, Perspectiva, 1974.
_________ e GUATTARI, F. Mil Platôs (vol. 4), São Paulo, Ed. 34, 2012.
CASTRO, Eduardo Viveiros de. Metafísicas canibais. São Paulo, Cosacnaif, 2015.
CABRAS, cabeças que voam, cabeças que rolam. Programa do espetáculo, 2016.
Edélcio Mostaço é doutor pela USP, pesquisador do CNPq, professor de Estética Teatral na Udesc-Universidade do Estado de Santa Catarina. Lançou, recentemente, o livro Soma e Sub-tração, pela Edusp.