Rasuras sobre o conceito de figura em Samuel Beckett

Artigo sobre o conceito de figura em Samuel Beckett em dialogo com ensaio de Erich Auerbach

10 de março de 2009 Estudos

Figura segundo Auerbach

Podemos dizer que Auerbach e Beckett foram contemporâneos, tendo Auerbach nascido em 1892. A diferença de idade entre os dois era de quatorze anos, sendo Beckett de 1906. Para nós, o estabelecimento de uma aproximação com um dos mais importantes críticos e historiadores da literatura europeia da primeira metade do século XX visa iluminar ou encaminhar um argumento de análise do processo de figuração na obra de Beckett, tendo como ponto de referência inicial, ou como ponto de partida, o conceito de figura de Auerbach. Ler Beckett com a chave de Auerbach em nada me parece apropriado, mas este talvez seja o método adequado quando não se crê em leituras definitivas: ler ou tentar abrir portas com chaves trocadas. Fazer aproximações, traçar paralelismos, explorar de coincidências e dar forma a reflexões vagas. Tentar moldar fechaduras por chaves, e chaves por fechaduras, de antemão tendo consciência da impossível tarefa, mas garantido o jogo. Assim, Auerbach e Beckett, para além dos quatorze anos que separam as vidas e as obras de um crítico judeu alemão e de um escritor protestante irlandês: nos empenharemos em sobrepô-los forçosamente, garantindo um jogo ganhar e/ou perder no nosso processo de análise crítica e compreensão histórica.

O conceito de figura foi central na crítica e na abordagem da história da literatura desenvolvida por Auerbach no seu Mimesis: A representação da realidade na literatura ocidental (1947) – transformado em clássico da crítica literária moderna -, assim como no restante de sua obra. Em 1938, surge o ensaio Figura, publicado na revista florentina Archivum romanicum, através do qual, Luis Costa Lima acredita haver “a possibilidade de compreender-se a base afetivo-filosófica do autor” [COSTA LIMA: 1994,220].

Em Figura, o ensaio de Auerbach parece se preparar para a sua apoteose do desenvolvimento do conceito de figura, desdobrado desde Terêncio, Varrão, Lucrécio, Ovídio e Plínio, na análise da Divina Comédia de Dante Alighieri.

Forma Plástica

“That shade. Once lying. Now standing. That a body? Yes. Say that a body. Somehow standing. In the dim void.” (BECKETT: 1996,92)

“Originalmente, figura, da mesma raiz de fingere, figulus, fictor e effigies, significava ‘forma plástica’” (AUERBACH: 1997,13), assim Auerbach inicia sua reflexão lembrando a origem etimológica da palavra e nos abrindo olhos para um significado que parece pairar ainda hoje sobre a idéia que fazemos ingenuamente da palavra figura, e, estabelecendo ou restabelecendo, de acordo como o uso que façamos desta lembrança, como com algum atrevimento trans-histórico, o caráter concreto, corpóreo e material de figura. A forma plástica traz consigo imediatamente a idéia de um preenchimento ou/e de um suporte material, estendendo sobre a superfície da nossa análise uma hipótese de que a distância entre os efeitos figurais, dito das figuras, tanto possam se aplicar a personagens reais, quanto a histórias lendárias ou a artes como pintura e escultura.

Em Varrão, Auerbach identifica a mutação do significado de figura, que chega a aparecer nos seus escritos com significados como “aparência externa”, “contorno”, e que “extrapola o campo da plástica quando ele (Varrão) começa a falar de formas das palavras” (IDEM: 1997,14). Parece-nos preciosa a articulação possível entre “forma plástica” e “forma das palavras”, antes que cheguemos às formas gramaticais, às formas do discurso ou às formas do estilo.  A maneira pouco precisa com que Varrão irá se utilizar da palavra figura talvez seja a resposta mesma para a interrogação que mais adiante Auerbach se faria: “Como é possível que ambas as palavras (forma e figura), mais particularmente figura, cuja forma guarda a clara lembrança de sua origem, adquirisse com tanta rapidez um significado puramente abstrato?” (IDEM: 1997,15) Este salto é explicado segundo a simplicidade vocabular do latim frente ao grego, língua que dispunha de inúmeras possibilidades que nuançavam significados próximos, mas não semelhantes, enquanto o latim, com menos possibilidades, abria o caminho para a generalização ou abstração do sentido original de figura

Em Lucrécio, o trânsito de significado parte do sentido original para o delineamento puramente geométrico, “ele transpõe o termo da esfera plástica e visual para a auditiva, quando fala da figura verborum [a figura das palavras]” (IDEM: 1997,17). De alguma forma, as metamorfoses, pensando aqui um pouco no uso que Maurice Blanchot (BLANCHOT: 1999) faz do conceito de metamorfose, concedem à escrita, ou lembram a escrita, sua dimensão de uma expressão e efeitos perceptivos menos fechados aos deslindamentos de significados racionais, daí interpretativos. O que pode nos ajudar a “ver” e “ouvir” na escritura beckettiana.

O caráter plástico de figura, que Auerbach interpretará no contexto escolástico, anterior ao momento cristão, contrariando comentadores que atribuem ao crítico um neo-platonismo, permanecerá no desenvolvimento do argumento de Auerbach para a leitura patrística do conceito de figura, onde Auerbach atribui uma performance ao conceito ao compará-lo à idéia de profecia e ao conceito de pré-figuração. O aspecto material e corpóreo de figura plástica, que teria através dos romanos perdido sua precisão e, por generalismos praticados contra sua concentração de sentido, tornado seu significado mais abstrato teria seu significado tornado mais abstrato, poderia ser atribuído à forma gramatical, retórica, lógica, matemática e, “mais tarde até de forma musical e coreográfica”, entretanto, não perderia o seu aspecto material, evidenciado por Auerbach na realização ou exteriorização de uma realidade que toma a forma de outra realidade através da manifestação de uma determinada figura. Seguindo por este caminho, a plasticidade da figura produziria efeitos os quais Aristóteles em sua Poética teria analisado, e se aproximaria mais de uma apresentação (Darstellung), do que de uma representação (Vorstellung), no sentido kantiano, como Luis Costa Lima colocou no seu ensaio Figura e Evento (1994):

“(…), já em “Figura”, o verbo em que o autor sempre insiste é darstellen. Seria isso ocasional ou, ao invés, indicaria a propensão de Auerbach de se descartar de um legado que sentia incômodo? Parece difícil pensar-se na aleatoriedade da preferência referida. É bastante viável a hipótese de que o autor não se sentia à vontade com o uso do termo, Vorstellung, cujo peso de imediato reconheceria. No entanto, dever-se-ia logo acrescentar: embora verdadeira essa disposição não foi suficiente para que afastasse Aeurbach da problemática da Vorstellung. Assim como a Vorstellung, a concepção cristã de figura doma a sua plasticidade e, tornando-a subordinada ao momento do cumprimento, faz com que ela se submeta, se integre e se sirva a uma convenção unidirecional da história.”

A citação deste trecho nos evidencia a problemática tensão entre o momento pagão de figura, que por seu aspecto plástico se manteria mais próximo de uma apresentação, corporificação, do que, propriamente, uma Vorstellung, e o momento cristão. Entretanto, concordando com a análise de Costa Lima, de que a concepção cristã “doma” e “subordina” o aspecto plástico de figura, podemos concluir que sua presença não terá sido extirpada no momento seguinte.

Figura e Profecia ou Figuração e Pré-figuração

Na análise de Auerbach, figura traz consigo a idéia de prefiguração, umbra futurorum, se constituindo uma realidade menos real, onde um preenchimento futuro da Verdade divina e eterna a tornará figura preenchida. Assim, no curso da Divina Comédia, as figuras reais i/e históricas com as quais Dante se encontra através da geografia do Inferno, Purgatório e Paraíso, saem da realidade histórica da Itália do século XIII para uma realidade mais real, deixando de ser simplesmente sombras.

As figuras de Beckett são, como em Dante, pré-figurações, sombras não preenchidas por verdade alguma. Sombras ocas que realizarão intermitentemente movimentos ou narrativas enquanto esperam num presente perpétuo e sem futuro. Como em Dante, no seu Inferno, as sombras pelas quais Dante passa entre os círculos infernais buscam que o poeta lhes lembre os nomes, as figuras das novelas e textos de Beckett têm nomes provisórios, anedóticos ou banais, até a ausência de nomes como A e B em Ato sem Palavras, ou O Inominável, ou Imaginação morta imagine

Referências Bibliográficas:

Costa Lima, L.: Figura e Evento. V Colóquio UERJ: Erich Auerbach. Editora Imago: Rio de Janeiro, 1994.

Beckett, S.: Worstward ho! In: Nohow on. Grove Press: New York, 1996.

Auerbach, E. Figura. Tradução Duda Machado, Editora Ática: São Paulo, 1997.

Blanchot, M. Le Livre à Venir. Éditions Gallimard: Paris,1959.

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