Ocupação SozinhosJuntos: Samuel Beckett segundo o Coletivo Irmãos Guimarães
Crítica do conjunto de espetáculos intitulado Ocupação SozinhosJuntos, concebido pelo Coletivo Irmãos Guimarães
Vol. VIII, nº 65, agosto de 2015
Resumo: O artigo discute três espetáculos da Ocupação SozinhosJuntos, concebida pelo Coletivo Irmãos Guimarães no Sesc Belenzinho de São Paulo: Quadrado, Sopro e Fôlego. O texto busca colocar em questão a relação entre teatro e performance proposta pelo Coletivo, de modo a debater tanto a relação entre as artes quanto a fidelidade ao texto beckettiano em encenações recentes de sua obra.
Palavras-chave: Samuel Beckett; performance.
Abstract: The article discusses three works by the Coletivo Irmãos Guimarães during the Ocupação SozinhosJuntos presented at Sesc Belenzinho in São Paulo: Quadrado, Sopro, Fôlego. It questions the relation between theater and performance art proposed by the artists in order to debate the connection between different art forms as well as the fidelity to Samuel Beckett’s writings in recent stagings of his work.
Keywords: Samuel Beckett; performance.
Durante os meses de maio e junho de 2015, o Coletivo Irmãos Guimarães apresentou no Sesc Belenzinho, em São Paulo, um conjunto de encenações, performances e discussões, todas elas tendo por eixo a obra de Samuel Beckett. Com o título inspirado num dos textos encenados (Improviso de Ohio), a Ocupação SozinhosJuntos evidencia a relevância crescente para a cena contemporânea brasileira da confluência de duas trajetórias: a recepção entre nós do escritor e dramaturgo irlandês e o trabalho de pesquisa e encenação levado a cabo pelos irmãos Adriano e Fernando Guimarães. Estabelecidos em Brasília, eles não são de modo algum novatos na exploração da obra de Beckett. Muito pelo contrário, frequentadores obsessivos desse universo, eles são responsáveis por um número respeitável de espetáculos, devidamente documentados no site do Coletivo (www.coletivoirmaosguimaraes.com). Qualquer interessado pode ali conferir o registro de encenações que vão da primeira incursão no teatro de Beckett, com a montagem de Dias Felizes, em 1998, ao reiterado enfrentamento das peças curtas da fase tardia do dramaturgo, entre elas Ir e Vir, Catástrofe, Jogo, Balanço e, mais recentemente, na presente Ocupação, Passos e Improviso de Ohio. Quem assistiu aos espetáculos ou consultou essa documentação, pôde constatar que o trabalho dos Irmãos Guimarães não se resume à encenação dos textos dramatúrgicos de Beckett. Um espetáculo do Coletivo é usualmente composto pela conjunção de encenações das peças e trabalhos próprios, originais, mas que guardam uma profunda relação com a obra beckettiana, desdobrando suas questões num terreno expandido, em que se transita do teatro à performance, com passagens pela dança, pelas artes visuais, pela música e pela literatura. O Coletivo desafia a demarcação rígida dos gêneros e das artes e propõe uma concepção própria de espetáculo.
No mesmo movimento, os Irmãos estimulam a pensar o que ainda é possível fazer com um autor e com peças que aparentemente permitem tão pouca liberdade ao encenador. São notórios os episódios em que Beckett desautorizou ou mesmo tentou impedir encenações que propunham intervenções significativas nos textos[1]. Morto o autor, os responsáveis por seu espólio continuam vigilantes diante do trabalho de encenadores, podendo autorizar ou não uma nova montagem. Tais restrições desapareceriam com a entrada da obra em domínio público, mas outras continuariam desafiando os encenadores. À medida que Beckett se tornava um experimentado diretor das próprias peças, sua escrita dramatúrgica adquiria tamanha consciência da composição da cena que seu texto se especializava na composição de imagens, partituras sonoras e movimentos corporais milimetricamente coreografados. O drama já trazia a cena prefigurada num sentido muito preciso e detalhado. Durante os ensaios, por sua vez, o texto dramático era mais uma vez corrigido na ponta do lápis. Mesmo após a publicação das peças em livro, a ocasião dos ensaios para uma nova encenação ensejava novas alterações. O controle extremo paradoxalmente abalava a ideia de um texto teatral definitivo, como atestam os preciosos Theatrical Notebooks editados por Stanley Gontarski, James Knowlson e Dougald MacMillan. Tais documentos de direção, acompanhados de registros em vídeo das encenações feitas pelo autor, ajudaram a criar, senão um cânone, ao menos referências incontornáveis para qualquer encenador. Tais peças funcionariam de outra maneira? Seria possível retirar ou acrescentar elementos sem descaracterizá-las? Tais questões perpassam os trabalhos do Coletivo Irmãos Guimarães e voltaremos a elas após uma breve incursão nos três espetáculos da Ocupação SozinhosJuntos.[2]
Quadrado
Apresentado nos dois primeiros fins de semana da Ocupação, Quadrado retoma no título e na configuração geométrica duas peças conexas produzidas por Beckett para a televisão pública alemã em 1982: Quadrat 1+2. O Coletivo não realiza propriamente uma montagem das peças em outro meio, mas um espetáculo distinto daquele que o inspira, lidando de forma própria com questões que alicerçam o projeto beckettiano, tais como o esforço físico e a repetição, sem falar da atenção à presença do corpo humano em cena.
Quadrat 1+2 dedicavam-se à exploração exaustiva de procedimentos seriais e repetitivos em trabalhos de cunho fortemente coreográfico, sem recurso a textos literários. Tratava-se ali de duas peças simétricas para quatro instrumentos percussivos e quatro atores que percorriam uma série de caminhos rigorosamente traçados em um cenário quadrangular. Os quatro cantos da TV em tubo desdobram-se em quatro figuras, quatro cores (as três cores primárias e o branco), quatro pontos de entrada e saída do cenário[3]. Eles entravam e saíam alternadamente de cena, compondo séries que atingiam seu ponto máximo de tensão nos momentos em que os quatro atores estavam presentes, desviando-se simultaneamente do ponto central do quadrado. As séries compunham uma coreografia que só se mostrava inteiramente no momento em que as quatro figuras estavam em cena, revelando que o movimento de cada um era determinado ou controlado pelo movimento de todos, mesmo quando se estava só em cena. A repetição ou a combinatória de séries era a responsável pelos dois aspectos formais determinantes da coreografia: o controle extremo do tempo e do movimento, que impedia o choque entre as figuras, e a falta de finalidade ou de sentido dos movimentos, os quais deviam repetir-se infinitamente, sem resolução, como um jogo sem propósito pré-determinado.
O Quadrado dos Irmãos Guimarães mantém a demarcação de um terreno quadrangular, amplificado pelo espaço também quadrangular da sala de espetáculos do Sesc Belenzinho, uma espécie de caixa escura propícia a encenações avessas à disposição convencional de palco e plateia. Distancia-se, contudo, em pontos essenciais de seu modelo, entre eles a diferença de meio, marcada pela substituição da televisão por um espetáculo que conjuga teatro, dança e performance, ou melhor, que faz da performance o terreno expandido para o diálogo com as demais artes. O serialismo coreográfico de Beckett, que instaura permutações repetíveis ao infinito e abole as demarcações de início e fim, é referido ao longo do espetáculo, mas cede lugar a uma outra configuração, organizada em função de quatro cenas ou episódios e de um sofisticado trabalho de iluminação, responsável por fazer o espetáculo aparecer e desaparecer diante do público.
Assim que os espectadores ocupam seus lugares e a porta é fechada, os atores nus, que compartilham os assentos com eles, assumem sua posição no palco. A sala é escurecida para então ser lentamente iluminada, apresentando os contornos dos corpos entrelaçados na formação de um novo corpo, único, instável, múltiplo. O mínimo movimento de um corpo repercute sobre os demais e sobre a lenta movimentação conjunta do agrupamento pelo palco sob a iluminação de intensidade variante. Esse coletivo se dissolve, ou melhor, se desenlaça e a partir daí os atores passam a movimentar-se pelo quadrado, vestindo e despindo as roupas retiradas de caixas ou abandonadas pelos demais. Os movimentos prosseguem até o esvaziamento das caixas e o encobrimento do quadrado pelas peças de roupa. Ao contrário da peça de Beckett, em que a movimentação é rigorosamente coreografada, de modo a determinar trajetórias regulares e evitar a colisão entre os atores, aqui os movimentos, assim como a escolha das roupas, são aleatórios, não seguindo prioridade de trajetórias, tamanhos ou modelos. O ponto de vista privilegiado da audiência, fornecido pela câmera plongée da peça televisiva, também está ausente. Cada espectador, sentado num ponto distinto das três laterais, via o conjunto de um ângulo distinto. Na cena seguinte, os atores voltam a se encontrar e, entrando um na roupa do outro, compartilhando a mesma peça, passam a compor esculturas corporais que são feitas e desfeitas em várias configurações. Por último, o entrelaçamento inicial, com os corpos nus sobre o palco despido, é retomado, mas com o acréscimo de copos e garrafas d’água, em que o esforço para servir um ao outro se torna um novo motor do movimento coletivo.
Beckett recorreu ao meio televisivo para interrogar, por meio de uma extrema literalização, procedimentos artísticos já desenvolvidos por seus trabalhos em prosa e para o teatro. O novo meio, por sua vez, diferentemente do que ocorria com a prosa e com o teatro, conferia um feitio inédito a antigas interrogações, permitindo a ele realizar em Quadrat 1+2 uma obra unicamente a partir da tematização do procedimento serial. No seu conjunto, as peças para televisão confrontavam diversas convenções da estética televisiva: os sombreamentos da imagem em preto e branco, o comentário da voz em off, a sobreposição de imagens pela edição, o enquadramento, os movimentos de câmera que aproximam e distanciam o objeto em foco, entre outros elementos que conferem ao meio seu caráter pretensamente realista ou documentarista. No contexto da obra de Beckett, esse enfrentamento se delineava juntamente com o desenvolvimento de um novo meio de produção artística.
Apesar das diferenças de meio, o Quadrado dos Irmãos Guimarães possui afinidades com alguns desses aspectos dos projetos televisivos de Beckett. Se estes retomam questões da prosa e do teatro, reformulando-as em um novo meio, seria possível dizer que o Coletivo também retorna à obra beckettiana com o intuito de explorar suas consequências para uma outra prática artística, distinta dela. Trata-se, em suma, de repensar a performance a partir do desdobramento de potencialidades inscritas na experiência cênica beckettiana. É certo que isso implica realçar algo bem distinto das convenções dramáticas usuais: não se encontra em Beckett a imitação de uma ação sustentada por personagens em conflito, assim como não se faz uso de técnicas de encenação de feitio naturalista, em que um ator encarna personagens adentrando um universo ficcional nitidamente distinto das circunstâncias de encenação presenciadas pelos espectadores. Beckett, desde o início e de maneira mais intensa e concentrada em sua produção tardia, propõe outra equação entre representação e performance. O corpo em cena não está ali para ocupar o lugar de um corpo ficcional ausente. Muitas personagens demonstram consciência de sua teatralidade, trazendo o espetáculo para o interior do drama. Com isso, ele abala a tendência do teatro à representação. Abala, certamente, mas não a elimina, pois seria ingenuidade simplesmente substituí-la pela pura presença, como se esta conferisse força e estabilidade ao que aparece em cena. O outro lado da moeda, pretensamente mais contemporâneo, não é mais verdadeiro que sua metade mais tradicional. O interesse da cena beckettiana, assim como a dificuldade em lidar com ela, consiste na reversibilidade constante entre performance e representação, entre presença e ausência, reversibilidade em que um termo é insistentemente convocado para se pensar o outro e colocá-lo em questão.
Dito isso, seria necessário concluir que tais questões exigem um encaminhamento nos limites da prática teatral e dramatúrgica? O Coletivo Irmãos Guimarães responde que não. Sem contar histórias ou aludir a narrativas implícitas, mas também sem apologias dos corpos em cena, Quadrado ficou à altura das questões propostas por Beckett justamente por manter o equilíbrio entre elementos tão instáveis. É o que se nota pelo sucesso em sustentar o caráter instável e transitório das composições corporais (vários corpos? um corpo coletivo?), que se formam à medida que se desfazem, conferindo estatuto transitório à forma, sempre à beira do informe. E também por um trabalho de iluminação impecável: ao esculpir a cena e pintar corpos com luz, ele combina concretude física e material com a imaterialidade da presença evanescente. A intermitência de presença e ausência tornava-se assim o cerne da experiência cênica e trazia à tona, anunciando os espetáculos seguintes, esse entrelaçamento fundante do trabalho beckettiano entre esforço físico e imagens evanescentes.
Sopro
Segundo espetáculo da Ocupação SozinhosJuntos, Sopro reuniu uma reformulação original do Ato sem Palavras I à encenação de Passos, um dos dramatículos (o termo é de Beckett) da fase tardia, peças caracterizadas pelo emprego concentrado de poucos recursos e, notadamente, pelo caráter fortemente imagético da cena. Nessa peça, uma personagem feminina, May, percorre, no movimento pendular de ir e vir, os nove passos que a levam de uma extremidade a outra da cena, enquanto dialoga com a voz em off de uma mulher mais velha. Num primeiro momento, May, ao chamar pela mãe, estabelece um diálogo com a voz. A conversação esparsa sugere uma situação dada pela relação da filha com a mãe idosa, doente e acamada. No momento seguinte, May apenas escuta enquanto a voz, a partir de um distanciamento épico, além de criar a aparência de um diálogo entre ambas, confere indicações de cena a May, observando e coordenando seu movimento. A voz, para além da configuração de uma personagem fictícia, passa a ser também um dispositivo de encenação. Como afirmou um comentador de Beckett, “a peça dentro da peça feita pela voz é um drama se fazendo, pois seu roteiro contém direções de palco e informações de bastidores marcadas por tentativa e erro e sujeita à revisão” (BRATER, 1987, p. 55). Desse modo, ao chamar nossa atenção para a presença em cena de May, a voz nos faz lembrar que estamos no teatro.
Posteriormente, a palavra é retomada por May, que passa a narrar a história de Amy e de sua mãe. O monólogo provoca uma duplicação de May em narradora e personagem (Amy como anagrama de May; o W de Mrs. Winter como a reversão do M de mãe), assim como do par inicial formado por mãe e filha. May evoca em sua fala imagens que estabelecem conexões com a situação vivida por ela no palco. A exemplo do monólogo da mãe, ela hesita, se corrige e prossegue sem saber ao certo como sua história termina. Como Beckett indicou a Hildegard Schmahl, a atriz que fez o papel de May na encenação de 1976 no Schiller Theater der Berlim: “Você está compondo. Não é uma história, mas uma improvisação. Você está procurando as palavras, você se corrige constantemente. Você está na igreja com a menina. A voz é a voz de um epílogo. No fim ela não tem como continuar. É só um fim” (BRATER, 1987, p. 54). No modo de narrar e nas possíveis sobreposições entre a situação em cena e o teor da narrativa, a dupla May/mãe se aproxima de Hamm, o fabulador de Fim de partida. As duplicações internas, por sua vez, remetem à serie de duplos que povoam os textos em prosa de Beckett, em particular a trilogia formada pelos romances Molloy, Malone Morre e O Inominável. Em May há vestígios dos narradores que contam e abandonam histórias a respeito de personagens que podem ser duplos deles mesmos. Além do diálogo interno à obra, tem-se aqui um indicativo de como a obra tardia reformula a relação entre os gêneros no espetáculo teatral.
Enoch Brater propôs uma interpretação instigante da peça a partir da relação entre presente e passado, ou seja, entre o presente da encenação e seu diálogo com a voz originária do passado. O ponto merece discussão, pois envolve alguns dos problemas centrais dos trabalhos de Beckett, dentre eles a origem da voz e a conexão entre fábula e memória. Caso se assuma que a voz da mãe venha do passado, originária da memória de May, a encenação se caracterizaria pela materialização sonora dessa voz interna. É em seu interior que a voz da mãe reverberaria e se duplicaria, no monólogo da mãe, entre May e a mãe. Beckett estaria assim operando uma cisão do monólogo interior entre a voz da personagem e a voz ressoando em sua mente. O palco, por sua vez, representaria uma expansão desse espaço interior. Nesse caso, recorrer à voz de uma outra atriz em off seria um modo de enfatizar a cisão interior de May.
A impossibilidade de se afirmar se a fala de May é produto da memória ou da invenção coloca algumas dificuldades a essa hipótese. O mesmo pode ser dito a respeito da voz em off e naturalmente da história de Amy. É um problema semelhante ao das histórias contadas por Hamm em Fim de partida, que podem ser tanto a evocação de um momento anterior à convivência no abrigo com Clov, quanto o mero esforço de produzir algum sentido à existência presente por meio do recurso à fábula. Tamanha instabilidade da voz, em que tudo o que é dito tem origem e referência nebulosas, alude também aos paradoxos em que se enredava o narrador de O Inominável, ao constatar que todas as vozes, que poderiam ser dele, eram vozes de outros. Se a voz em off de Passos remete à memória da mãe ou se não passa de uma dentre outras invenções de May, é algo que permanece no escuro. Diante dessa indeterminação, a utilização da voz em off se torna algo mais que um modo de enfatizar uma cisão interna da personagem. Ela passa a ser um poderoso recurso cênico, empregado com o intuito de borrar as fronteiras entre presente e passado, fábula e memória, interior e exterior, monólogo e diálogo, confrontando a presença física em cena com o alto grau de imaterialidade das imagens evocadas e das indicações de cena ali contidas.
Essa instabilidade pode ser notada na concepção mesma da peça. Beckett trabalhou em diversas versões do texto, alterando-o durante os ensaios em Londres e em Berlim, de modo que só a versão publicada nos Theatrical Notebooks traz o texto que passou pelo processo de encenação[4]. Um detalhe presente em algumas das versões publicadas é a indicação de uma linha vertical iluminada no fundo do palco, possível alusão ao cômodo onde a mãe repousaria. May caminharia assim por um corredor em diálogo com a voz da mãe no quarto contíguo. Durante os ensaios, Beckett eliminou essa indicação de cena, possivelmente porque ela conferia nitidez àquilo que a peça cuida de tornar nebuloso. Na encenação apresentada durante a Ocupação SozinhosJuntos, essa possível referência a um cômodo por trás de May como provável origem da voz foi mantida pelos Irmãos Guimarães, associando-se a diversas outras escolhas que vão na contracorrente de uma tendência à nebulosidade inscrita na peça. A alusão a um quarto ao fundo torna mensurável a distância espacial entre May e a mãe. Da mesma maneira, o registro de voz de Liliane Rovaris no papel de May, próximo demais ao registro natural da fala cotidiana, impedia a crescente indistinção entre May e a mãe ao longo da peça, uma indistinção que já se encontra no texto, mas poderia ter sido amplificada ainda mais pela encenação. A iluminação, por sua vez, também mereceria algum reparo. Ainda que privilegiasse o tablado por onde May caminhava, deixando a parte superior de seu corpo na penumbra, ela conferia um grau de nitidez excessivo ao conjunto. Ao contrário do que foi atingido por Quadrado, em Passos a iluminação não colaborou para a sobreposição de materialidade e imaterialidade proposta pela peça.
May é, antes de tudo, uma imagem espectral que está e não está lá, assim como a voz com a qual contracena. Nesse sentido, Passos é um trabalho em estreita conexão com projetos para televisão como …but the clouds… e Nacht und Träume, peças em que Beckett se utilizaria de outros recursos técnicos para também explorar o caráter evanescente das imagens. Quando se assiste ao registro da encenação de Beckett com Billie Whitelaw no papel de May, é possível notar o quanto a cena pode ser fantasmagórica[5]. Não se trata aqui de comparar a montagem recente com um modelo canônico, dado por seu próprio autor, mas de notar elementos que poderiam intensificar a reflexão a respeito da utilização dos recursos cênicos. Enquanto Beckett veste sua atriz com um manto que a inscreve na superfície de luz sobre a qual ela caminha, os Irmãos Guimarães, ao contrário, optam por um vestido mais curto, que deixa à mostra os pés de May, e pela construção de um tablado perfeitamente visível e delimitado no interior do espaço cênico. Com isso, não se ouvem somente os passos, mas também a madeira rangendo sob cada um deles. Enquanto a ênfase de Beckett recai sobre a imaterialidade da cena como um todo, como se a personagem estivesse prestes a se desmaterializar na luz ou a fundir-se com a superfície iluminada abaixo dela, reforçando o caráter espectral da apresentação, o Coletivo salienta uma certa precariedade ou fragilidade da situação, em possível alusão à antiga casa materna por onde ressoam os passos de May. Por esses motivos, essa encenação de Passos fica um tanto aquém dos mecanismos de produção de som e imagem disponibilizados pelo texto beckettiano.
O mesmo não pode ser dito do experimento produzido a partir do Ato sem Palavras I. Apesar do título homônimo, o Coletivo produziu um exercício próprio, distinto da pantomima de Beckett. No original, um homem se encontra numa paisagem desértica e é constantemente provocado por assobios e por objetos que descem do alto da cena. Uma árvore é ali inserida, mas sua folhagem, que daria alguma proteção contra o sol a pino, permanece recolhida. A seguir um jarro d’água também entra cena, mas a uma altura impossível de ser alcançada. Sombra e água fresca, logo ali à mão, são insistentemente oferecidas e negadas. Outros objetos são colocados ao alcance do homem para ajudá-lo a apanhar o jarro d’água. Primeiro, dois cubos, sobre os quais ele sobe sem atingir a altura do jarro; e depois, uma corda, com a qual ele também tenta sem sucesso alcançá-lo. O homem, uma espécie de clown atônito encenando o mito de tântalo, tenta, mas necessariamente fracassa, menos por incompetência própria que pela sabotagem dos elementos de cena que fogem ao seu controle. Ele ainda tenta usar a corda para se enforcar, mas a árvore recolhe o galho onde ele pretendia pendurar-se. Finalmente os objetos saem de cena, deixando-o ocupado em contemplar as próprias mãos.
Esse esforço de realizar tarefas simples na contramão de forças incontroláveis é reaproveitado de maneira engenhosa pelo Ato I dos Irmãos Guimarães. O tablado de Passos é mantido em cena e, por trás dele, delineia-se uma segunda passarela, duplicando o tablado em primeiro plano e reativando o movimento de ir e vir da peça anterior. Ao lado esquerdo, um móvel discreto, espécie de púlpito ou estante musical, mas sem função numa peça privada de música ou palavras. No ponto médio da passarela, uma estreita estante vertical onde é guardado um aparelho de chá. Ao lado direito, por sua vez, uma mesa retangular e uma cadeira. Por fim, na extremidade direita, um enorme ventilador, da altura da atriz Yara de Cunto. Enquanto ela, em movimento pendular de ir e vir entre mesa e estante, prepara a mesa para o chá, arrumando a toalha e a louça, para finalmente sentar-se e servir-se, o ventilador funciona em velocidade crescente, tornando-se cada vez mais um obstáculo à realização daquela cerimônia cotidiana e banal. As folhas de papel sobre o púlpito são derrubadas pelo vento e passam a circular pela cena como num verdadeiro vendaval, o qual, ao final, terminará por arrastar tudo: açúcar e açucareiro, xícara, bule e o próprio chá escorrendo pelo ar. Sem palavras, o Ato I é um verdadeiro drama em sua encenação do conflito entre forças opostas: a intensidade crescente do instrumento técnico contra a obstinação da tarefa fisicamente desempenhada pelo elemento vivo do espetáculo, a saber, o corpo da atriz. Com isso, o Coletivo colocou em cena o conflito entre corpo e maquinário próprio a todo espetáculo digno de autorreflexão. Quanto mais Beckett se tornava um diretor experimentado, mais ele transformava o teatro no âmbito de reflexão a respeito dos elementos constituintes da cena. O Coletivo retoma essa lição a respeito da técnica e do artifício teatral, evidenciando o quanto a presença física em cena resulta de sua interação com o aparato técnico. Num espetáculo em que a técnica chega ao ponto extremo de horizontalizar a força da gravidade, fazendo com que tudo seja impelido da direita para a esquerda, nada mais é natural. Mas, diferentemente da regularidade e do controle próprios à encenação beckettiana, o Coletivo foi suficientemente hábil para, a despeito da força do maquinário, abrir espaço ao instante (talvez?) casual que arremata o espetáculo: embora fosse possível controlar a intensidade do ventilador, não haveria como prever ao certo quando a força do vento venceria o atrito dos objetos na mesa, arrastando tudo consigo, inclusive a própria toalha que, ao cair no chão, finaliza a peça como se fosse a cortina de boca de cena.
Fôlego
Fôlego, o espetáculo seguinte, reúne, tal com o anterior, uma peça tardia – o Improviso de Ohio – a um Ato sem palavras. Mais uma vez, não se trata de uma junção arbitrária, mas de uma escolha que chama a atenção para esses dois aspectos fundantes da cena beckettiana, o esforço físico e a imagem evanescente, trabalhados pelo Coletivo ao longo de toda a Ocupação SozinhosJuntos. O Ato sem palavras II é, como o anterior, uma pantomima com forte exploração da fisicalidade, dessa vez para dois atores que não chegam a contracenar, mas se espelham na realização de ações semelhantes. O tema do duplo, uma recorrência na produção de Beckett, é aqui tratado na vizinhança da tradição dos clowns, uma marca das primeiras peças – Esperando Godot e Fim de partida – das quais os Atos são contemporâneos. No início do segundo Ato, cada um dos personagens dorme num saco. Um deles acorda, vestido só com uma camisa, sai do saco, reza, toma um comprimido, se veste com as roupas dobradas deixadas ao lado do outro saco, dá uma mordida numa cenoura tirada do bolso do casaco, e inicia o que parece ser sua tarefa diária: carregar os dois sacos – o seu próprio e aquele onde dorme o segundo ator – até um outro ponto do palco. Despe-se, reza e retorna no saco para dormir. Feito isso, o segundo ator sai do saco e realiza o seu ritual, ligeiramente diferente do anterior: ele faz exercícios, penteia o cabelo, escova os dentes e a roupa, veste-se, se olha no espelho, abre e fecha um mapa, e carrega os sacos um pouco mais adiante, sempre consultando um relógio de bolso entre cada uma dessas muitas ações. Depois se despe, faz mais exercícios e entra em seu saco. A peça termina com a iluminação diminuindo enquanto o primeiro ator realiza pela segunda vez seu ritual. Beckett indicava que cada um teria o mesmo tempo, mas um número bem distinto de tarefas a realizar, o que exigiria comportamentos também distintos. Enquanto o primeiro é lento, desajeitado e distraído, realizando várias gags durante o vestir-se e despir-se, o segundo é rápido e preciso.
Diferentemente do que fizeram com o Ato I, o Ato II dos Irmãos Guimarães segue de perto o roteiro de Beckett, embora com modificações. A primeira é a inversão dos personagens. Aqui o primeiro é ágil e metódico, enquanto o segundo é lento e preguiçoso. Essa modificação é complementada por alguns detalhes cenográficos, como uma caixa onde estão guardados os itens de toalete e a transparência do saco onde dormem. A segunda modificação importante está na nudez dos dois atores, o que retoma Quadrado na introdução desse elemento no universo beckettiano, que pode ser entendido como um acento na fisicalidade da presença em cena, extensamente trabalhada em Quadrado e nos dois Atos.
Se o expediente do duplo é submetido à exploração física no segundo Ato, o Improviso de Ohio o traz ao palco sob o viés da imobilidade. Como nas demais peças tardias, a cena produz uma imagem que pouco se altera ao longo da apresentação. Duas figuras tão parecidas quanto possível – leitor e ouvinte – estão sentadas à mesa com o rosto apoiado na mão, como se um fosse a imagem especular do outro. Sobre a mesa apenas um chapéu e um livro. O leitor inicia sua leitura enquanto o ouvinte dá comandos com batidas na mesa, produzindo pausas e repetições das últimas palavras lidas. Durante a leitura, um movimento do ouvinte impede uma única vez que o leitor retorne a uma página anterior referida no texto. No final, terminada a leitura, o livro é fechado, eles colocam as mãos sobre a mesa e, descobrindo o rosto, se encaram.
A narrativa contida no livro esboça a história de um casal e de sua dissolução. Aquele que resta, em busca de alívio para a dor, se muda para um local não familiar, não povoado pelas lembranças da vida passada a dois. Em sonhos, o rosto da pessoa querida havia aparecido a ele e o advertido contra aquela mudança, dizendo que sua sombra o reconfortaria no local onde tinham estado sozinhos juntos. Sua decisão, contudo, como toda decisão tomada sozinho, não poderia ser revertida e ele continuaria sem alívio em suas noites de insônia. Uma noite aparece um homem enviado pela pessoa querida, lê para ele até o amanhecer e então desaparece. Ele volta a aparecer em outras noites até uma vez em que toma a palavra para dizer que a pessoa querida dissera a ele que não haveria mais necessidade de retornar. Na história lida, ele lê a história pela última vez e ambos permanecem sentados um diante do outro.
Como em outras peças de Beckett (Fim de partida, Passos), a narrativa interna à cena dialoga com ela, podendo ser uma reconstituição de uma história pregressa que culmina na situação ou na imagem configurada no presente de encenação. Emulando a concentração de um drama clássico, o espetáculo começa próximo ao fim e termina com sua conclusão, transcorrendo entre duas marcações temporais registradas no texto lido em cena: tudo se passa entre o “resta pouco a dizer” e o “nada resta a dizer”, como se coubesse à apresentação levar de um ponto a outro, referindo-se ao passado e antecipando o futuro. Nenhuma curva dramática, contudo, nenhuma ação concluída, pois tudo levaria a crer – ou ao menos é plausível – que aquela leitura noturna poderia ser um evento repetido todas as noites, uma eventual referência à reapresentação noturna de um mesmo espetáculo teatral. É um dado de autorreflexão interno à cena que não é estranho ao teatro beckettiano e que tem antecedentes em uma peça como Fim de Partida. O texto lido não indica, assim, apenas a composição de um universo ficcional que explica a cena retrospectivamente, subordinando-a a ele. Pela dinâmica da leitura e da escuta, o texto e seu universo fabular são submetidos à dinâmica da cena, enquanto que as direções de cena são incorporadas à cena na forma de uma narrativa. Isso só é possível num universo teatral em que há imbricação entre encenação e dramaturgia, como se uma fosse o espelho da outra. Improviso de Ohio assim encena um processo de duplicação entre a história no livro do leitor e a cena insólita em que o ouvinte recebe a visita noturna, entre a imagem ouvida e a imagem vista, entre a progressão da narrativa e a repetição das batidas na mesa, emolduradas, por fim, pelas mínimas variações sobre a (quase) imobilidade gestual do conjunto da cena.
Num universo de tamanha precisão, Beckett desenvolveu mecanismos de encenação que trazem marcas de seu trabalho para a televisão[6]. Da iluminação ao enquadramento, o caráter pictórico da cena é fortemente enfatizado por meio de sombreamentos, contrastes de claro e escuro e o destaque de uma zona iluminada em meio à escuridão circundante. No delineamento dos atores no palco, a encenação confere ao rosto humano o aspecto de uma máscara. As figuras especulares do Improviso de Ohio, de longos cabelos grisalhos e casacos compridos, assim como o rosto e o perfil de Billie Whitelaw nas encenações do próprio Beckett de Passos e Balanço, remetem à figura de Trio-Fastasma, sua peça para televisão de 1975. Diante disso, uma encenação como aquela de Charles Sturridge com Jeremy Irons para o projeto Beckett on Film torna-se bem discutível. Com as mãos abaixadas, os rostos ficavam descobertos para a troca constante de olhares, tornando-se o veículo privilegiado de uma expressividade psicológica que pouco ou nada tem a ver com a máscara da personagem beckettiana.
A encenação dos Irmãos Guimarães segue de perto as indicações de Beckett, iluminando a mesa e deixando os atores na penumbra, com os rostos parcialmente cobertos pelas mãos. A ausência dos longos cabelos brancos marcava uma diferença de caracterização, afetando a composição das máscaras referidas acima. A interposição de uma certa distância entre a mesa e os espectadores, porém, compensava essa modificação, propiciando um distanciamento de outra ordem. Apesar dos acertos de cenografia e iluminação, o conjunto ficou um tanto comprometido pelo trabalho de voz, que mereceria um outro encaminhamento. O problema é semelhante ao da encenação de Passos. Cada palavra se encontrava organicamente integrada ao movimento de frase, como se essa última fosse movida por uma intenção interna, dada por um sentido a ser comunicado. Num nível micrológico, a frase construída e pronunciada como veículo para o sentido mimetiza o impulso da ação dramática em direção a um desenlace. A finalidade dá coesão às cenas, de modo que a resolução do conflito ao final seja paulatinamente construída ao longo do drama.
O teatro de Beckett, desde Esperando Godot, peça em dois atos em que nada acontece, dispensou esse modelo de ação dramática. Em Godot, como mais de um crítico já observou, nada acontece duas vezes. Fim de partida, por sua vez, transforma em tema a impossibilidade de encontrar um desfecho convincente. De tal posição perante a ação – o alicerce do teatro aristotélico – decorre a exploração de repetições, séries, impasses e paradoxos. Os efeitos repercutem em todos os elementos constituintes do espetáculo e do texto teatral. A recorrência da contagem dos passos de May em Passos, a intermitência das batidas na mesa e do “resta pouco a dizer” em Improviso de Ohio, que impelem a voltar atrás apesar do prosseguimento da leitura, são elementos que também estruturam a composição da frase beckettiana. Cada palavra tem peso próprio, subvertendo pontuação e respiração a despeito de um eventual sentido da frase. Caso não se note isso, os elementos particulares, ao invés de potencializar o conjunto, o enfraquecem. Imagens cênicas tão fortes e inusuais como as de Passos e Improviso de Ohio podem ser descaracterizadas por uma dicção próxima à fala de feitio mais cotidiano, para não dizer naturalista. O problema afetou as encenações das duas peças e ainda foi agravado na última delas pela projeção mais fraca da voz, que impedia que ela atingisse como deveria seus outros ouvintes, os espectadores. Num conjunto de muitos pontos altos, a voz, um elemento essencial da cena e da prosa beckettiana, se mostrou o calcanhar de Aquiles da Ocupação SozinhosJuntos.
Performance
Ao reunir encenações das peças de Beckett a trabalhos originais, a Ocupação SozinhosJuntos propõe uma discussão a respeito de uma forma de espetáculo que tangencia a performance e o teatro, mas possui contornos próprios num terreno de imbricação das diversas artes. A questão possui inúmeras ramificações e vai muito além desse conjunto de espetáculos ou da prática artística dos Irmãos Guimarães. No âmbito mais restrito dos trabalhos aqui considerados, ela também se traduz em interrogações incontornáveis a respeito de como encenar uma peça de Beckett. Recentemente, em um artigo para a revista Literatura e Sociedade, Stanley Gontarski, estudioso de destaque da obra beckettiana e também encenador de suas peças, discutiu a questão a partir de uma hipótese a respeito de espetáculos híbridos como os do Coletivo Irmãos Guimarães[7]. Seu ponto de partida é a preocupação, motivada pelo sucesso mundial de Beckett, com o adestramento de sua dimensão vanguardista. A conversão em clássico e a incorporação a cânones seria um possível sinal de domesticação da obra. Na contramão do cânone, Gontarski identifica um grupo de artistas responsáveis por recuperar tal dimensão vanguardista e retomar uma tradição teatral experimental, o que, segundo ele, não entra necessariamente em conflito com a conversão do autor em clássico. Tais artistas conseguiriam evitar tanto a descaracterização da obra beckettiana por encenações adulteradoras, quanto a mera reprodução de produções anteriores, entre elas as do próprio Beckett. Gontarski, em suma, se interroga a respeito de como reinscrever tais textos na produção artística contemporânea, contornando restrições colocadas primeiro por Beckett e, posteriormente, pelos executores de seu espólio literário.
Atom Egoyan, JoAnne Akalaitis, Christopher McElroen e os Irmãos Guimarães se destacam no panorama de Gontarski por não se resumirem a fornecer novas encenações de Beckett: “eles não só ‘dirigem’ a obra de Beckett. Eles também a redirecionam para suas raízes imagísticas e dessa forma restauram sua dimensão experimental e até mesmo política” (GONTARSKI, 2015, p. 168). O artigo de Gontarski busca caracterizar esse “redirecionamento” revisitando vários dos trabalhos dos artistas mencionados. Sob esse viés, o Coletivo não está sozinho, mas é parte de um campo mais vasto da cena contemporânea. Atom Egoyan, por exemplo, utiliza o vídeo de sua encenação de A última gravação de Krapp, realizada para a série Beckett on Film, numa instalação própria, exposta no Museu do Homem de Londres, com conexões formais e temáticas com a peça teatral de Beckett. Gontarski reconhece na instalação de Egoyan, assim como nos trabalhos dos Irmãos Guimarães, uma forma de reencontrar o espírito vanguardista da obra de Beckett e fazê-la avançar num novo âmbito de práticas artísticas. Essa forma consiste em tomar o texto beckettiano, ou mesmo o registro de uma encenação, como um ready-made, ou seja, um achado ocasional. Texto ou encenação podem aparecer, por exemplo, como uma relíquia em processo de deterioração, como é o caso do registro em vídeo de Krapp na instalação de Egoyan, ou então adentrar sem adulteração em um novo espaço poético, como na arte performática dos Irmãos Guimarães. Por esse caminho tais artistas levariam Beckett adiante, a um novo século das práticas artísticas, ao mesmo tempo em que contornariam a camisa de força da montagem fiel à letra tal como exigida pelos detentores dos direitos autorais. Assim seria possível afirmar “a heterogeneidade da encenação beckettiana sem violar os ditames de contratos firmados com os proprietários dos direitos” (GONTARSKI, 2015, p. 176).
A referência ao ready-made é estimulante e merece ser discutida. Gontarski denomina de ready-made o estatuto dado por esses espetáculos à encenação respeitosa, fiel ao contrato e ao texto do autor. Como os administradores do espólio impedem a adulteração, resta aos artistas encenar segundo o manual. O rompimento com a ortodoxia se dá assim menos nas escolhas para a montagem de uma peça particular e mais em sua inserção num campo, por assim dizer, expandido, cujas coordenadas são dadas pelo desdobramento do espetáculo teatral no âmbito das artes visuais. Esse é o sentido do desdobramento do texto em ready-made, identificado por Gontarski nos artistas de sua predileção. Diante disso, cabem algumas questões.
Primeiro, é pertinente chamar o texto dramático ou a encenação respeitosa de ready-made? Cem anos atrás, tomar o objeto escolhido ao acaso como obra de arte, conferindo a ele uma assinatura ou inserindo-o em um espaço tradicional de exposição como o museu, resultava no enfrentamento do conceito de obra de arte e da arte como instituição autônoma. A ideia não era produzir novas condições para a compreensão daquele objeto casual. O urinol, a pá de neve ou a roda de bicicleta de Duchamp eram manifestações contra a arte entendida como criação individual de obras únicas e originais, mas não objetos a serem vistos de outro modo, esteticamente valorizados, a partir de então. Sua posição hoje no interior de um museu é de ordem prioritariamente documental, quando não uma transformação do conceito mesmo de ready-made[8]. Nos espetáculos e instalações analisados por Gontarski há certamente o rompimento com limites rígidos entre as várias artes, mas dificilmente algum ataque à instituição como um todo por meio de sua desestetização. Ao contrário, defende-se a manutenção de espaços adequados à fruição estética.
Sua referência parece reter do ready-made um outro aspecto, ou seja, o objeto produzido em série que surte um certo efeito quando arrancado de seu contexto e inserido em outro. No caso, a encenação é tirada do teatro e trazida para novos espaços de exposição, próprios às artes visuais e performáticas. Mas seria o caso de sustentar que toda encenação fiel ao texto e às direções de cena do autor é apenas mais um termo da série, idêntico aos demais? Elas deixariam de ser resultados de processos individuais ou autônomos de produção simplesmente por serem obedientes ao texto? Com isso, o interesse suscitado por tais encenações seria nulo, pois não suscitam nada de novo, incluindo aqui o Krapp de Egoyan e as montagens de Passos e Improviso de Ohio discutidas acima. É sempre pertinente chamar a atenção para a historicidade e para o envelhecimento de formas de encenação e de recepção estética, mas isso não as identifica a produtos em série. Também não se observa aqui o efeito visado pelo ready-made, a saber, colocar em questão a instituição em que é exibido.
Além disso, como a conversão do texto em ready-made parece depender das restrições legais à adulteração, seria possível questionar também se Gontarski não dá um peso excessivo aos limites impostos pelos direitos autorais. De acordo com seu argumento, encenações fiéis dificilmente despertam algum interesse hoje. Elas contribuem para a canonização do autor, mas não para sua inscrição na dinâmica da produção contemporânea. Ademais, parecem existir somente porque não seria lícito fazer de outra forma. Ele defende que montagens de peças específicas produzem algo novo desde que extravasem as indicações do autor ou ocorram num novo ambiente, como o Godot encenado por Susan Sontag em Sarajevo. Gontarski parece tomar as circunstâncias de um exemplo bem sucedido como condição para todos. Inversamente, parece excluir do raio de possibilidades inovadoras a montagem integral de texto e rubricas. Essa questão certamente atinge as encenações examinadas. Se as observações mais críticas aqui feitas a respeito de aspectos da Ocupação SozinhosJuntos têm pertinência, seria razoável dizer que os problemas ali apontados decorreriam em última instância da necessidade de fidelidade ao texto? O argumento foi justamente no sentido contrário, indicando uma exploração do texto aquém de suas potencialidades.
Com base nisso, valeria a pena considerar também uma outra hipótese. Encenar Beckett implica decerto uma série de dificuldades a quem não pretende seguir o texto à risca, mas estas não decorreriam primariamente das restrições impostas pelos direitos autorais, mas das características formais das próprias peças. Tomemos Shakespeare como contraponto. É possível conceber inúmeras versões de Hamlet, do monólogo à grande produção, e todas elas continuariam sendo Hamlet. Mesmo um experimento como Hamletmaschine de Heiner Müller poderia ser reconhecido como um Hamlet. O texto shakespeariano não só permite o recorte como também o exige, pois sua dimensão já coloca de antemão a dificuldade de montá-lo por inteiro. O recorte é o ponto de partida do encenador. A margem de manobra em Beckett, ao contrário, é muito mais estreita, notadamente nas peças tardias. A alteração de um mínimo componente do delicado e preciso mecanismo seria suficiente para descaracterizá-lo. Caberiam ao encenador outros desafios, esquivando-se das alterações substanciais e reconhecendo que o sucesso pode estar no investimento concentrado em detalhes mínimos. É um equilíbrio entre autoria e fidelidade difícil de atingir, capaz de afastar encenadores afeitos a intervenções marcantes. As encenações recentes de A última gravação de Krapp e Dias Felizes por Robert Wilson, surpreendentemente próximas ao texto e simultaneamente muito autorais, são exceções num panorama de grandes interventores. Diante desse caminho tortuoso é compreensível a atração exercida pela encenação dos textos em prosa. Na ausência de indicações prévias, transpor a prosa para o palco parece uma atividade mais aberta à experimentação. Não é à toa que tais encenações já somam uma parcela significativa da recepção de Beckett nos palcos[9]. É uma alternativa à resistência do texto dramático beckettiano à intervenção, assim como aos trabalhos dos Irmãos Guimarães em diálogo com Beckett. No contexto da Ocupação SozinhosJuntos, são justamente eles os mais bem sucedidos. O sucesso do Coletivo em concretizar um espetáculo de feitio próprio, desdobrando a experiência teatral beckettiana em um terreno avesso às demarcações rígidas entre as artes, resulta paradoxalmente da resistência desses textos à intervenção. Por via negativa, é um sinal da produtividade de Beckett para a produção contemporânea.
É essa mesma resistência que permite aos Irmãos Guimarães recolocar a performance em discussão e buscar um lugar de destaque na arte contemporânea brasileira. Ao que tudo indica, os tempos heroicos da performance ficaram para trás. Ela não representa mais um ataque contundente à instituição artística, como eram as primeiras manifestações dadaístas no Cabaré Voltaire, nem um manifesto público ou um risco de vida para o performer. Como indica a recente exposição Terra Comunal de Marina Abramović no SESC Pompeia, mesmo os grandes representantes do pós-guerra estão sujeitos a substituir a exploração de limites físicos e artísticos por práticas autorreferenciais de cunho terapêutico. O trabalho dos Irmãos Guimarães extrai sua força desse refluxo. É um movimento de interiorização em que a performance é trazida para o espaço fechado da sala de espetáculo. O sentido desse retorno, contudo, é uma expansão no bojo do qual a performance busca um novo lugar pela conexão com as demais artes. As fronteiras entre elas são ultrapassadas e as dimensões performáticas de artes tão diversas como o teatro, a literatura e as artes visuais são potencializadas. Simultaneamente, pelo recurso reiterado à obra de Beckett, os trabalhos do Coletivo conferem instabilidade à performance, o que faz pensar criticamente a respeito de suas antigas pretensões mais afirmativas e combativas. É, sem dúvida, uma contração, mas com potencial de reformulá-la por dentro. Num contexto em que a postulação do caráter público e político da arte se tornou tão suspeita de apologia quanto a defesa de um espaço circunscrito para a experiência estética, a persistência dos Irmãos Guimarães em suas antigas obsessões tem fôlego e produz mais que bons espetáculos.
Referências bibliográficas
ACKERLEY, C. J.; GONTARSKI, S. E. The Faber Companion to Samuel Beckett. London: Faber & Faber, 2006.
BRATER, Enoch. Beyond Minimalism: Beckett’s Late Style in the Theater. Oxford: Oxford University Press, 1987.
BÜRGER, Peter. Teoria da Vanguarda. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
GONTARSKI, Stanley E. “Beckett em sua época / Beckett em nossa época”, in Literatura e Sociedade, n. 18, 2015.
KALB, Jonathan. Beckett in Performance. New York: Cambridge University Press, 1989.
MAMMÌ, Lorenzo. O que resta. Arte e crítica de arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Luciano Gatti: Doutor em filosofia pela UNICAMP e professor do departamento de filosofia da UNIFESP. É autor de Constelações: crítica e verdade em Benjamin e Adorno (Loyola, 2009) e A Peça de Aprendizagem. Heiner Müller e o Modelo Brechtiano (Edusp, 2015).
Notas:
[1] Jonathan Kalb discutiu alguns desses episódios no seu livro Beckett in Performance (1989), p. 71-94.
[2] Além dos três espetáculos comentados a seguir (Quadrado, Sopro e Fôlego), a Ocupação apresentou três performances (Nada se move, 59 minutos e 59 segundos e 99 a 1) e promoveu um ciclo de palestras.
[3] Apesar da simetria entre as peças, a segunda delas se diferenciava da primeira em alguns pontos: filmagem em preto e branco, ausência dos instrumentos percussivos, movimentação mais lenta dos atores e menor tempo de duração.
[4] Para uma discussão pormenorizada dessas circunstâncias, cf. C. J. Ackerley e S. E. Gontarski, The Faber Companion to Samuel Beckett. London: Faber & Faber, 2006, p. 201-203.
[5] O registro encontra-se disponível no youtube: https://www.youtube.com/watch?v=RGvwqERVkFw
[6] Cf. Brater, 2015, p. 112.
[7] Stanley E. Gontarski. “Beckett em sua época / Beckett em nossa época”. In: Literatura e sociedade, n. 18, 2015, p. 167-176.
[8] A Teoria da vanguarda de Peter Bürger defende que o fracasso das vanguardas históricas em liquidar a arte como atividade separada da práxis vital, assim como as práticas das neovanguardas da década de 1960, resultaram em uma institucionalização das vanguardas históricas. A exposição de objetos dadaístas em museus e galerias é uma consequência desse processo. Se Bürger extrai desse fracasso consequências interessantes para se pensar o conceito de obra de arte num contexto posterior às vanguardas, sua afirmação de que a institucionalização confere retrospectivamente ao ready-made o estatuto de obra de arte autônoma é um tanto exagerada. Seria mais razoável interpretar uma exposição de ready–mades como uma documentação. O caráter fortemente efêmero de um ready–made, tal como o de uma performance, de um happening ou de uma apresentação teatral, torna-o indissociável das circunstâncias de sua primeira recepção. Em outras palavras, ele pressupõe certas condições de exibição, implicando um arranjo cênico e, consequentemente, algum grau de teatralidade. Observar hoje o urinol em uma galeria é algo semelhante a assistir ao registro em vídeo de uma performance ou de uma manifestação. A provocação modificou a autocompreensão da arte, mas as condições de recepção de um acontecimento passado permanecem distintas daquelas próprias à recepção de obras de arte autônomas. Cf. BÜRGER, Peter. Teoria da Vanguarda. São Paulo: Cosac & Naify, 2008, p. 109-110 e p. 117-124. Sobre a mudança das condições de exibição do ready-made, vale a pena consultar a discussão do conceito de indiferença estética proposta por Lorenzo Mammì a partir da exposição de réplicas dos ready-mades na década de 1960. Cf. MAMMÌ, Lorenzo. O que resta. Arte e crítica de arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 87-92.
[9] Uma discussão interessante a esse respeito é a proposta por Jonathan Kalb, op. cit., p. 117-143.