A noite de Picasso

Peça de Edoardo Erba. Tradução de Maria de Lourdes Rabetti (Beti Rabetti)

24 de dezembro de 2015 Traduções e

Vol. VIII n° 66 dezembro de 2015 :: Baixar edição completa em pdf

Tradução do original italiano La notte di Picasso, de Edoardo Erba, a partir de versão digitalizada, enviada pelo autor, em junho de 2011, e inicialmente destinada a montagem do espetáculo pelo Curso de Graduação em Artes Cênicas – Bacharelado em Interpretação Teatral da UFMG, com autorização do autor e da tradutora. Em dezembro de 2015, autor e tradutora autorizam sua publicação pela Questão de Crítica. (N.T.)

 

Personagens 

Lorenzo

Nero

 

Um longo corredor ladrilhado de branco

À direita três portas. À esquerda duas janelas grandes.

Fora está escuro. Um lampião fraco ilumina o terreno em terra batida.

Nero se aproxima de uma das portas. Olha ao redor para ver se não tem ninguém à vista. Sai.

Nero tem uma idade pouco definida. Está descuidado. Tem a barba comprida.

Nero chega até a porta mais próxima. Espia pelo buraco da fechadura.

Estende o ouvido para escutar se tem barulho lá dentro. Não ouve nada. Bate devagar.

Ninguém responde. A porta não se abre. Em compensação abre-se um visor na porta seguinte. Lorenzo enfiou a cara no visor. Vê Nero. Sai. Fecha a porta atrás de si. Lorenzo é um pouco mais jovem que Nero. Está agitado. Tem os olhos inchados.

 

LORENZO (indicando a porta fechada) Você já tinha escutado?

NERO Começou de novo?

Lorenzo faz sinal que sim.

NERO Então hoje não consegue.

LORENZO Vou voltar pro rádio.

Lorenzo volta ao aposento e fecha. Nero fica incerto por um momento, depois se aproxima da porta de Lorenzo.

NERO Por que não tentamos nós dois. Sinto que a noite é essa. Estou com mil ideias na cabeça.

LORENZO (reabre) Não estou bem do estômago.

NERO Sem ele a gente termina esta noite.

LORENZO Uma queimação.

NERO Faz um esforço. Um esforço pequeno. Mínimo.

Lorenzo não se decide a sair.

NERO Iogurte?

Lorenzo tira uma colher do bolso.

NERO Vamos voltar pro restaurante da  estrada.

Nero vai em direção ao seu aposento. Lorenzo segue-o até a soleira da porta.

LORENZO Eu desenhei ele.

NERO Desenhou? Que belo dia. Estamos na reta de chegada.

Nero entra no aposento. Sai com um copinho de iogurte. Entrega a Lorenzo.

NERO Deixa eu ver.

LORENZO (pega o iogurte e começa a tomar avidamente) Eu rasguei.

NERO Ficou com vergonha? Por que se envergonhou? Jamais. Veja Picasso. Fazia um quadro por dia.

LORENZO Um jornalista foi até Picasso.

NERO Quando? Olha que ele morreu. Já é um mito. Uma lenda. Está morto.

LORENZO Pergunta a ele: Picasso… (encanta-se)

NERO Continua. Não vai se distrair. Sinto que é importante. Que vai provocar uma guinada na gente.

LORENZO O jornalista pergunta a ele: Picasso…

NERO Picasso?

LORENZO Picasso, qual é a sua melhor obra? (Abaixa as calças. Mostra o membro) Aqui está a minha melhor obra!

NERO É enorme! Esta provoca uma guinada (Abraça-o) Que emoção! Picasso fez obras- primas para se restabelecer. Porque estava deprimido. Por uma noite como essa estava deprimido. Eu acho que estava deprimido! Na manhã seguinte, acordava e chic chic chic sujava a tela, assim, como alguém nervoso, que faz qualquer coisa pra relaxar. Chic, chic, chic e fez obras primas. Eu imagino isso de Picasso. Picasso está pensando nas coisas que viu de noite. E deve ter visto muitas. Mas, no dia seguinte fazer o quê? No dia seguinte não se consegue. Quantos já provaram. Os melhores elementos de todas as gerações tentaram…

LORENZO (raspando o fundo do copinho) Estamos no fim.

NERO Temos que resumir. Você chega para uma camareira de sessenta anos, uma mulher do interior, e o que diz a ela?

LORENZO Diga o nome de um artista moderno.

 NERO E ela não diz Stravinsky.

LORENZO Na música do século XIX não existe um verdadeiro gênio universal.

NERO E no cinema? Quem é o primeiro na parada de sucessos do cinema? Charles Spencer Chaplin.

LORENZO Carlitos.

NERO Não, Charles Chaplin. Desde que morreu se juntou ao seu personagem. Mais ou menos como Pato Donald e Walt Disney.

LORENZO Como Hanna & Barbera.

NERO Não. Hanna & Barbera, não.

LORENZO Por quê?

NERO Walt Disney é uma palavra como Coca-Cola, virou um símbolo, um som. Não é mais um homem.

LORENZO É a essência de um desenho animado. É… (se encanta)

NERO O que foi? Não desconcentre. É importante. É capital.

LORENZO Conheço uma anedota do Picasso.

NERO Já havíamos superado isso.

LORENZO Eu era menino e saia pela rua com Gigi, um vizinho de casa.

NERO Jamais voltar atrás.

LORENZO Ele sempre segurava minha mão, talvez tivesse medo que eu fugisse. Gigi era um aposentado que todos os dias lia três jornais e passava o tempo ouvindo as notícias do rádio. Chegamos a uma pracinha. Era uma pracinha toda de pedra, feita com pedras lisas do rio. Tinha um menino muito pequeno, imundo, todo sujo. Estava deitado sobre as pedras e desenhava numa folha de caderno com um lápis. Tinha feito um desenho todo torto, todo desengonçado, com as pernas e os braços em cruz.

E embaixo havia escrito em letra de forma: Picasso. Gigi abaixa, pega a folha.

Olhou e disse: este não é Picasso. É picaretaço![2]

Lorenzo ficou encantado de novo. Silêncio.

NERO (abatido) Quanto tempo ficamos no restaurante de estrada?

LORENZO Talvez tenha sido apenas uma introdução um tanto longa.

NERO Nesse ritmo, não vamos escrever o filme nunca. Erramos a abordagem.

LORENZO Eu gostaria de fazer uma nota à fala de antes.

NERO Qual fala?

LORENZO Que nota?

Silêncio. De repente ouve-se algo no aposento fechado. Poderia ser uma cantiga, um lamento, uma risada histérica. Lorenzo começa a se agitar.

NERO Você percebe o estrago? Dois anos jogados pela janela. Seria preciso estrangulá-lo.  Aonde você vai?

LORENZO O rádio. Talvez já estejam transmitindo.

NERO Por que faz assim? Estávamos trabalhando bem.

Nero se coloca diante da porta de Lorenzo, que gostaria de entrar novamente.

NERO Aguenta só mais um instante. Faz de propósito. Você sabe disso. Temos que pensar no trabalho, nós dois. É preciso força. Determinação. Não é coisa de senhoritas.

A risada parou. Lorenzo permanece imóvel. Mantendo-o sob controle, Nero se aproxima da outra porta. Abaixa-se e olha pelo buraco da fechadura.

LORENZO O que está fazendo?

NERO Limpando as unhas.

LORENZO Sempre que limpava as unhas acontecia alguma coisa.

NERO Era quando começava a pensar.

LORENZO O restaurante da estrada foi ele que inventou.

NERO Era o mais lúcido de nós três.

LORENZO Uma cabeça…

Nero e Lorenzo fazem um sinal de concordância. Nero entra de novo no aposento. Lorenzo segue-o até a soleira. Nero sai com um velho gravador de fita. Apoia o gravador num lugar qualquer. Liga.

LORENZO Está rodando?

NERO Onde paramos?

LORENZO Para. Não me lembro.

NERO (desliga) Não, assim não dá pra trabalhar. Concentre-se. (Liga novamente)

LORENZO Ele toma café e ela está andando pelo mercado…

NERO Continue…

LORENZO … porque para sair do restaurante da estrada,  tem que passar pelo mercado…

NERO Isso é claro.  Próximo passo.

LORENZO … porque sempre se compra alguma coisa. Pode ser um presuntinho, uma bobagem qualquer…

NERO Desembucha.

LORENZO A um certo ponto,  entra no bar a outra. Ele a vê, a reconhece.  Sente um arrepio.

NERO Havíamos dito que não se conheciam.

LORENZO Não sabemos o que aconteceu antes, mas tenho certeza que ele e a outra se conhecem. Tiveram um encontro secreto.

NERO Faz dois anos que não se conhecem.

LORENZO Mudamos juntos, há uma semana atrás. E foi justamente você.

NERO Eu não tenho memória. Você não pode se aproveitar.

LORENZO Ele está ali no café, um pouco de saco cheio e ela lá embaixo no mercado. Diante deles as férias. As férias deles. Estão saindo de férias. Isso deve ficar claro e se entende porque ainda estão branquelos, mas já vestidos com roupas de férias. De bermudas coloridas.

NERO Mas o filme é em branco e preto. Porque em preto e branco é mais dramático, dá mais contraste…

LORENZO Quieto. Estou vendo. Entra a outra. Ele a olha. Surpresa. Algo vai acontecer. A outra engole o café. Olha-o. Ele não resiste. Gostaria, mas não consegue resistir. Desce as escadas. Não sabe por que, mas vai atrás dela. Caminham lado a lado. É um belo momento. Passam pelo mercado e nem percebem que ela está ali olhando um presunto, virada pro outro lado. Saem do restaurante de estrada. A outra vai em direção ao seu carro. Ele a acompanha. No carro não conseguem se separar. A tensão é enorme. Ele entra no carro com a outra.

NERO Sem diálogo?

LORENZO Mudo. No entanto, ela tinha parado no mercado enquanto esperava que ele descesse. Vê que ele não chega e vai até bar para ver se está ali. Não está. Então olha pela vidraça. Bem a tempo de ver que ele e a outra partem no pequeno conversível. Fica petrificada. Vejamos a outra que guia. É o diabo. Ele está agitado. A outra gelada. Os dois sentem a tensão. Ele sorri para tranquilizá-la, mas a outra continua fria. Ele sente remorso pelo que fez, mas tem vergonha do remorso. Olha-a como se pedisse desculpas. Aperta sua mão.  A outra também desfaz a cara de gelo. Ele se torna afetuoso. A outra sorri. É toda sexo.

Nero acompanhou o filme sobre a parede branca, como se o estivesse vendo.

NERO Como se sente?

LORENZO Dei muito.

NERO Me fez gozar. O momento em que do primeiro plano da outra com o rosto de gelo corta para ele que, preocupado torna -se afetuoso, e volta para ela cheia de sexo…é o cartaz do filme.

LORENZO Me empenhei muito.

NERO Para fazer um cartaz desses, seria necessário Picasso.

LORENZO Ou então poderiam ser duas imagens sobrepostas. Como aquelas das figurinhas que mudam conforme você olha[3].

NERO Vamos estampar. Quero o cartaz antes do Natal. O cartaz é a imagem. É tudo. Se existe o cartaz, existe o filme. Se o filme existe, existimos nós também. Essa é ótima. Engrenamos. Estou inspirado. É uma grande noite. É preciso lembrar dela. Está girando?

Lorenzo dá uma olhada no gravador para ver se a fita está girando.

NERO Percebe? Estamos criando. Existe momento mais belo? É como um filme. Tenho que fazer.

LORENZO O quê?

NERO Um filme sobre dois caras que falam em fazer um filme.

LORENZO Talvez o filme do futuro seja esse.

NERO Qual, qual?

LORENZO Ainda estou com azia.

NERO Outro iogurte?

Lorenzo faz sinal que sim.

NERO Depois eu dou. Fala.

LORENZO Mesmo?

Nero o tranquiliza.

LORENZO Você diz: faço um filme sobre dois que falam de um filme, porque uma hora ou outra tenho que ter coragem para fazer. Pra você é um tipo de brincadeira, quase faz pra mim. Depois todo o resto da sua obra é anulado, você não é ninguém. E ao invés disso, com este filme você cria uma nova linguagem…

NERO Você disse uma coisa incrível.

LORENZO … Como Francesco.

NERO Petrarca?

LORENZO Foi você quem me contou.

NERO O quê?

LORENZO Que escreveu a vida toda. Sempre em latim.

NERO Inúmeras obras.

LORENZO E depois escreveu uma coisinha em vulgar, como alguém que escreve assim uma poesia em dialeto. Ou grava dois caras que falam em fazer um filme. Séculos depois o que acontece com a obra latina?

NERO Completamente esquecida. Não sabem nem quem escreveu, está conservada nos códigos vaticanos. O Cancioneiro, ao contrário, é lido em todas as cortes da Europa.

LORENZO E, acima de tudo, ele fundou uma língua.

NERO É a minha obsessão.

LORENZO  Aquilo que pensa fazer não conta nada. As coisas mais importantes são as que saem de improviso.

NERO Tipo esta gravação?

LORENZO A arte do futuro é a conversa gravada. Conversação em fita, o século XIX deixou pouquíssimas, e todas insignificantes. Menos uma conversa a dois do ano tal de tal. Isso é trabalho de descarte do filme. Depois de fazer o filme, você diz: descarto as fitas, depois as primeiras coisas que escrevi, as fotos… Você está pra botar tudo no fogo e aquela irmã de sempre ooop… um momento. Pega tudo. Diz: espera, eu gostei. Põe no armário. Séculos depois na biblioteca tem um estudante universitário que não sabe que monografia fazer. Todos os temas melhores já se foram. Aí encontra um nominho pequeno assim. O seu. Que merda era? Vasculha as prateleiras e acha um cofre com as fitas. Mas essas fitas falam uma linguagem que é a nossa. Eis a música que esperávamos. Com isso faço carreira. Os acadêmicos imediatamente se interessam pela coisa. É um caso planetário. Trata-se da possibilidade de travessia no tempo. Como estas pessoas séculos antes conseguiram viajar no tempo? É algo que eles próprios estão estudando. E dessa forma, descobrem que alguns já haviam feito isso. E começam a estudar estes casos, de Francesco até nós. Há um fio de ligação entre eles. Ao fim, dizem: já haviam entendido tudo só que não sabiam.

NERO Você fala feito um santo. Olhe pra isso. Estou com calafrio. A pele arrepiada.

Lorenzo dá um sorrisinho satisfeito.

NERO Está claro que esta noite nasceu um novo gênero literário: a conversação em fita.  Porque aquilo que eu penso fazer não conta nada.  As coisas que gravamos ali são as importantes. E olhe que nós falamos coisas…

LORENZO São dois anos inteiros que falamos, aqui dentro.

NERO Cavamos fundo

LORENZO Pena que usamos sempre a mesma fita.

Do aposento fechado saem gritos.

LORENZO (agita-se) Talvez já tenham falado no rádio.

NERO Por favor. Agora não. Não ceda. Estamos num momento decisivo.

LORENZO (vai em direção ao seu aposento) Se estão recomeçando preciso saber.

NERO (barrando seu caminho) Se voltar lá pra dentro acabou. Acaba como ele. Entende isso?

Os gritos se fazem mais fortes. Lorenzo e Nero estão cara a cara.

NERO Tenta me escutar. Procura me entender. Temos pouco tempo. É a segunda e última rodada [4]. Não podemos mais errar.

LORENZO Me deixa passar.

NERO Ah Cristo! Para. Não vão falar nada no rádio.

LORENZO Eu ouço o que não dizem. Basta um sinal. Quem sabe uma canção. Eu estou atento. Quero saber primeiro.

NERO Ele sabe que você faz isso. Ele grita de propósito.

LORENZO Como nos campos.

NERO (grita) Você nunca esteve lá! Por isso não diga como nos campos se nunca esteve lá!

LORENZO (começa a tremer) Não quero voltar.

NERO Os campos não existem mais. Foram destruídos antes de você nascer. Mete isso na cabeça. Pensa direito. Perdeu uma experiência. Teria sido um herói, um mártir, um pobre cagão. Teria sido alguma coisa. Mas eles não existem mais.

Os gritos pararam.

NERO Parou. O que foi que eu disse? Não tem resistência. Nós temos que ficar aqui. Esperar que pare. Simples. Até uma criança faria isso. Como se sente? Melhor? Já passamos por tantas. Ergui a voz?  Está bem. Peço desculpas. E não pensamos mais nisso. Às vezes o trabalho acaba com meus nervos. Sabe de uma coisa? Vamos fazer uma pausa. As pausas são importantes. É ali que se trabalha. As noites de Picasso. Põe isso na cabeça. É ali que se cria a obra-prima. Por que não fala nada?

LORENZO Estou com a língua inchada. Não consigo mexer os músculos involuntários, que geralmente andam sozinhos… tipo os da respiração. De vez em quando esqueço de respirar.

NERO Iogurte?

LORENZO  Com um monte de açúcar.

Nero vai pegar outro pote de iogurte. Adoça exageradamente. Entrega a Lorenzo. Ele começa a tomar. Acalma-se.

Nero vai olhar pelo buraco da fechadura do aposento fechado.

LORENZO O que está fazendo?

NERO Está deitado no chão.

LORENZO Está esgotado.

NERO Era quando lhe vinham as coisas melhores.

LORENZO Primeiro era preciso esgotá-lo.

NERO Às vezes, era preciso bater nele.

LORENZO  Lembra quando você deixou ele a noite toda no frio?

NERO Se cobriu com a graxa do motor.

Sorriem.

LORENZO Concebi o filme.

NERO Sabe o que me deixa maluco? Você sabe voltar ao ponto. Você é um cão de guarda. Sempre foi. Você é a força deste trabalho. O motor imóvel. O incansável criador.

LORENZO Temos que sair do restaurante de estrada.

NERO Estava esperando há um tempão. Dois anos trabalhando numa cena. Grandioso. O sacrifício extremo. Fala.

LORENZO Pensa em quantas películas de merda são jogadas fora para fazer um filme de merda.

NERO Retórica fecal. É a essência do trabalho.

LORENZO Se alguém tivesse tido a ideia de filmar um homem do momento em que nasce até a sua morte, o futuro teria a maior obra de todos os tempos. A vida.

NERO É uma coisa nova. A primeira coisa realmente nova desde a invenção do cinema falado.

LORENZO A observação da vida do homem desde que nasce até sua morte é bem mais que a construção do Coliseu, das Pirâmides, ou da Grande Muralha. Neste filme não há montagem. Só uma tomada direta, longuíssima. Tem uma pessoa que nasce e cresce com a câmara diante de si. O Ator Total. Se desde que nasce tem a câmera na sua frente si acostuma. Se convence que é normal. Claro, sempre vai haver a diferença em relação à vida de um homem qualquer, mas esta diferença é pequena diante da vantagem de poder observar toda uma vida de modo completo e reproduzível.

NERO A Kodak poderia patrociná-lo. Fico arrepiado. (Afasta-se)

LORENZO Onde vai?

NERO (entrando no aposento) Mijar.

LORENZO (segue-o até a soleira) Ainda há algo a dizer sobre esta obra colossal: a vida poderá ser vista, mas nenhum homem conseguirá vê-la por inteiro. Ninguém vai conseguir passar a vida na frente de uma tela. Só vai conseguir ver pedaços. Gerações de estudiosos vão passar até que se possa compreender o significado da obra…

NERO (do aposento) E o que importa? Vamos supor que sejam necessários mil anos. O fato é que esta é a única obra que realmente pode dar uma guinada na humanidade.

LORENZO (Está terminando o iogurte)  Tenho que dizer mais duas coisas, urgentemente. As obras do futuro serão feitas apenas pelas nações. Por exemplo, as viagens espaciais são uma obra de arte dos Estados Unidos. A viagem à lua, de quem é aquilo?

NERO (de dentro) Dos Estados Unidos.

LORENZO Eles são um artista do futuro.

Lorenzo pousa o copinho vazio. Encanta-se.

NERO (do aposento) E a outra coisa?

LORENZO Não me lembro mais.

NERO (do aposento) Espera. Se concentra. Não deixa escapar.

LORENZO Não me deixe sozinho…

Lorenzo não consegue continuar.

NERO (do aposento) Se você acredita na nova forma de arte tem que seguir em frente mesmo sozinho.

Lorenzo fixa o gravador. Está perdido.              

NERO (do aposento)  Não é possível. Quer dizer que ainda estamos num estágio experimental.

Longo silêncio.

LORENZO A sensação é de vertigem. Vi um buraco. Falar para dez mil pessoas é infinitamente menor. Agora estou falando para a multidão do futuro.

Nero sai do aposento. Lorenzo está tremendo.

LORENZO Vou voltar pro rádio.

NERO Eh não, cacete. Pro rádio você não volta. Está quebrado faz dois anos. Não transmite mais. Você quebrou. Jogou na privada.

Lorenzo tenta passar. Nero agarra-o pela camisa. Está furibundo.

NERO Você não pode mais se render. Fomos longe demais. A obra total, não podemos esperar que outros a façam.

LORENZO (tem medo)  Me larga.

NERO (segura-o pelo pescoço) Eu sei que você não gosta, porque é uma escolha dramática. É fácil dizer: vamos encontrar alguém que se preste a fazer o Ator Total desde que nasceu. Mas, ao invés disso vamos pensar outra coisa: (indica o aposento fechado) ele é filmado, e então eu sou o autor desta obra. (Começa a bater nele metodicamente). É uma tremenda escolha, mas como vai convencer aos outros se antes não convence a si mesmo? Tem que filmá-lo. Filmá-lo até a morte. E à medida que a obra vai se tornando colossal é preciso superar resistências incríveis. Quando os outros percebem que não está fazendo o filminho das férias, quando o poder se dá conta do que você está fazendo e de seu porte revolucionário, vão tentar te eliminar. Está me ouvindo? Mas se você organizou a coisa de modo a seguir adiante de todo jeito…

LORENZO (com um fio de voz) Ele já nasceu. O experimento é incompleto. Não tem o mesmo valor.  Se faltar um único dia, um dia só, todo o trabalho perde o significado. A coisa importante é filmar a vida do início ao fim. Se não, dá no mesmo escrever a Divina Comédia.

NERO (interrompe improvisamente) É verdade. Não vale a pena.

Nero fixa o vazio. Longo silêncio.

LORENZO Me veio na cabeça.

NERO O quê?

LORENZO A segunda coisa. O Messias já está aqui.

NERO O Messias?

LORENZO  No momento em que pensamos, a coisa pensada já está viva. Quando Nicolau descobriu que a terra girava em torno do sol foi uma grande confusão.

NERO Copérnico?

LORENZO Quando nós descobrirmos que a terra é um ser vivente do qual nós somos os parasitas, isso vai gerar um desequilíbrio semelhante ao que vai ocorrer quando a terra descobrir que outros planetas também são seres viventes e que todo o universo é um grande ser em expansão.

Mesmo que a aquela altura já tenha começado a se contrair… Decorre que o pensamento é matéria universal exatamente como a erva, o iogurte ou um filme.

NERO Existe uma teologia euclidiana e uma teologia não euclidiana. Você é o sacerdote da teologia não euclidiana. Entre você e aqueles que vieram antes ocorreu uma ruptura, uma mudança de época. Você é um profeta.

LORENZO Uma vez, eu estava perto da estação do metrô. Havia pessoas em volta de uma mesinha, daquelas onde recolhem assinaturas. Tinha um cartaz escrito: você já pensou que o Messias poderia descer aqui, agora?

NERO Qual era a estação?

LORENZO Por que tem três coisas que chegam de repente: um objeto achado, um escorpião e o Messias.

Nero fixa Lorenzo que está com a mão erguida e os dedos formando um três.

LORENZO Por que está me olhando? Me dá medo.

NERO Não me distraia. Vi alguma coisa. Uma coisa imprevista. Incontrolável. Temos que fazer os resumos.

Lorenzo está assustado.

NERO Esta noite, depois de dois anos, deixamos o restaurante de estrada. Você não explicou como conseguiu, mas isto faz parte do primeiro mistério.

LORENZO Quando me olha assim, me sinto como ele.

NERO Depois veio à tona pela primeira vez em nível consciente o nascimento do novo gênero literário, a conversação em fita, inventada, no nível inconsciente, por ele… (Indica o aposento fechado)

LORENZO Deixa ele de fora.

NERO  Porque foi ele quem quis o gravador. E teorizada, no entanto, por você. Que na mesma noite, isto é, agora, inventa também o filme total com o ator total. Na verdade, a soma, a essência do saber humano. Que lança as bases da religião do próximo milênio e te coloca, por direito, na parada de sucesso dos profetas.

LORENZO Não insiste. É perigoso.

NERO Com a fundação da teologia não euclidiana você se classifica como primeiro entre os Batistas. Agora ficou clara a relação entre este evento e o fato de que pela primeira vez você percebe que alguém ainda está esperando o Messias. Então…

LORENZO Não fala. Eu sei. Entendi. Ele também sabia. Depois será tarde demais. Ninguém mais será salvo. Ele gritará. O véu do templo se romperá. Haverá trovões. Um tremor atravessará a terra…

NERO Você é o Messias!

Uma risada do aposento fechado. Potentíssima. Prolongada.

O corredor ressoa. Lorenzo põe a cabeça entre as mãos.

NERO O mundo já zomba de você.

LORENZO O que devo fazer?

NERO Convença-se. Ele não conseguiu. Não era digno. Está escrito em outro lugar. Foi escrito antes. E não era ele.

LORENZO Estou com o estômago na boca. Preciso de iogurte.

NERO Agora pode dispensar. Não precisa disso. Pense no que você é.

LORENZO (ergue a voz) Vai me buscar!

NERO É você mesmo. Agora te reconheço. Meus olhos se abriram. A catarata me cai. Você é a minha criatura.

LORENZO Por um momento fui imenso.

NERO Ele é um imbecil. Assume isso.

LORENZO Não posso.

NERO Um pequeno passo. Agora é fácil. Você quase conseguiu. Se acreditam em você, você existe. Se você existe, existo eu também, com certeza.

Lorenzo se encanta. Silêncio.

LORENZO As conversas gravadas vão virar o que no futuro?

NERO O último capítulo da Bíblia. 

LORENZO O Messias Elétrico.

NERO Parece título de livro. Mais cedo ou mais tarde, temos que publicar.

LORENZO Não vamos publicar mais nada. Gravaremos tudo. Este será o nosso trabalho a partir desta noite e até a morte.

NERO Exato. O primeiro mandamento. Gravar tudo. Gravar logo.

Nero vai verificar se o gravador está em funcionamento.

LORENZO Mas, eu, de pequeno, não queria ser Messias. Queria ser advogado.

Nero percebe que a fita gira no vazio.

NERO Lorenzo?

Lorenzo e Nero se olham.

NERO Acabou a fita.

LORENZO Quando?

Nero abre os braços.

NERO Colocamos no começo?

Lorenzo balança a cabeça. Desaba sentado no chão.

De dentro do aposento ouvem-se passos.

NERO Não fica agitado. Eu cuido disso.

LORENZO Acabou.

NERO Não vai fazer nada. Não pode. Não pode mais.

LORENZO O que fizeram com ele?

Nero não responde. Aproxima-se do buraco da ferradura e olha dentro. Afasta-se de repente.

NERO Quieto. Está olhando pra nós.

Silêncio. Lorenzo fechou-se em si mesmo. Está tremendo.

NERO Volta pra dentro.

Nero faz com que levante e o acompanha até a porta.

LORENZO Nero? Já falaram no rádio? Que já estamos nos campos, certo?

NERO Amanhã a gente recomeça.

Escuro.

Edoardo Erba, um escritor da nova dramaturgia italiana, nasceu em Pavia em 1954 e, graduado em Letras, formou-se em dramaturgia pela Escola do Piccolo Teatro de Milão. Em meio a suas obras – A noite de Picasso (1990), Porco selvagem (1991), Curva cega (1992), O homem da minha vida (1999), Boas notícias (2002), Pedreiros (2002), dentre outras – destaca-se Maratona de Nova York (1992), levada à cena em diversas partes do mundo. No Brasil, Erba tem duas peças traduzidas por Beti Rabetti e levadas à cena em Belo Horizonte (A noite de Picasso) e em São Paulo e no Rio de Janeiro (Maratona de Nova York).

Beti Rabetti (Maria de Lourdes Rabetti) é professora de História do Espetáculo do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UNIRIO, pesquisadora do CNPq, com projeto atual dedicado à “História da tradução teatral no Brasil”, e tradutora. Dentre suas traduções publicou Maratona de Nova York (Edoardo Erba) e Os gigantes da montanha (Luigi Pirandello), ambas pela 7Letras do Rio de Janeiro; Mamas sicilianas (Giuseppina Torregrossa) pela Objetiva do Rio de Janeiro; e A arte mágica de Amleto e Donato Sartori (org. Carmelo Alberti e Paola Piizzi) pela É-realizações de São Paulo.

[2] No original “questo non è Picasso. É picasasso!”. Onde “picasasso” seria quebrapedra. (N.T.)

[3] No original “Come le figurine del formaggino Mio”. O autor se refere a imagens estampadas sobre plástico corrugado, que altera a figura conforme se muda a direção do olhar e que por muitos anos foram coladas em caixas de um queijinho, o Mio. (N.T.)

[4] No original “È il girone del ritorno”. No esporte italiano, uma rodada em dois turnos é dividida em “rodada de ida” e “rodada de retorno”. (N.T.)

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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