Nós somos nós: nonada, companhia e arte

Artigo sobre o processo de constituição da Nonada Companhia de Arte

27 de maio de 2015 Processos

Vol. VIII, nº64, maio de 2015.

Resumo: O artigo repensa os dez anos de existência da Nonada Companhia de Arte, discutindo os conceitos envolvidos em sua nomeação, tendo em vista um novo ciclo que se anuncia. Além de resumidamente descrever sua trajetória e os principais espetáculos realizados, procura-se discutir a noção de continuidade envolvida no processo criativo da cena brasileira.

Palavras chaves: Nonada Companhia de Arte, processo de criação, cena brasileira

Abstract: The article discusses the Nonada Art Company´s existence, during the last ten years, as well as the concepts involved in the choice of its name, in light of a new coming cycle. It also briefly describes the Company´s trajectory and main performances, while discussing the notion of continuity within the creative process in Brazilian theater.

Keywords: Nonada Art Company, work in process, Brazilian theater

 

Ligando os pontos

“Nós somos nós. A nossa opinião não precisa coincidir com a do autor”, afirma o orador emInsulto ao Público (1966),escrito por um jovem austríaco recém-formado em direito, em meio a turbulências políticas entre forças conservadoras e progressistas, entre a autoridade do pai-estado e o pupilo-cidadão, entre proibições e direitos que levaram ao chamado “Maio de 68”para os estudantes franceses, e ao estabelecimento da ditadura civil-militar no Brasil.Em suas peças, Peter Handke fornece indícios do ambiente e do ponto de vista que assumia na época, como em O Pupilo quer ser tutor e A hora em que não sabíamos nada uns dos outros, tornando-se talvez mais reconhecido como escritor de teatro através do seuKaspar: texto em que experimenta formalmente, e com mais radicalidade, os jogos de linguagem como processo problemático de constituição de um sujeito enquanto cidadão, pessoa ou autor, que assume pontos de vista diante da polis pós-moderna (quando voltamos a ensaiar Insulto… entre 2011 e 2012, acontecia no mundo a “primavera árabe”).O processo de emancipação do sujeito tutelado para o de pessoa cidadã deve passar pela potencialização desua autonomia, através do exercício de apropriação e de reelaboração das linguagens no mundo (como concordaria seu compatriota Wittgenstein). “Eu queria ser como alguém que um dia já existiu” diz o Kaspar de Peter Handke, um dos autores literários, da língua alemã, mais editados em português. Mas seu teatro permanece pouco conhecido no Brasil, apesar de suas parcerias cinematográficas com Wim Wenders, como em “Asas do Desejo” (1987). Portanto, a opinião do locutor que se refere a certo nós que fala, no início deste parágrafo, é diferente e convive (sem excluir) com as palavras do escritor, o referido autor do texto (mas não do espetáculo). Ao mesmo tempo, o que se estabelece é um virtual espaço de disjunção entre a fala e o falante, possibilitando ambiguidades, paradoxos ou heterodoxias em cada fala. De tal modo que a repetição do pronome no plural intercalada pelo verbo ser permite que o significado deslize em função da maneira como se fala, dependendo da intenção que se utiliza para sugerir imagens e até mesmo subverter o sentido que a priori o leitor encontraria em uma leitura silenciosa. Afinal, em nós somos nós há um nó discursivo: recurso bastante utilizado e que se multiplica ao longo da escritura cênica de Peter Handke, que não apaga a presença nem dos falantes, nem dos ouvintes, nem a de si mesmo enquanto criador da proposta de jogo que experimentamos através de palavras e silêncios.O próprio sujeito não está no centro, ocupado pela máquina, mas na borda, sem identidade fixa, sempre descentrado, concluído dos estados pelos quais passa. Tal como os anéis que o Inominável traça (…)”, afirmam Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo (DELEUZE;GUATTARI, 2010, p. 35).

Insulto ao Público foi o texto escolhido para ser apresentado no oitavo ano de existência da Nonada Companhia de Arte, em 2012.Foi também o texto escolhido para a sua fundação em 2004. Na segunda imersão foram feitas mudanças significativas: antes eram cinco atores, desse grupo apenas um (Pedro Cavalcante) permaneceu no elenco, que passou a contar com quatro oradores, antes vestidos na cor negra, agora completamente de branco. Para nós, ainda hoje continua em aberto a possibilidade de mudanças na maneira de fazer o texto de Handke acontecer. Apresentamo-nos em algumas unidades do SESC-RJ e em uma temporada de quatro semanas em uma galeria do Espaço Cultural Sérgio Porto. Fomos vizinhos da programação do Tempo Festival, que acontecia no teatro, enquanto a Companhia se perguntava se realmente existia, tal como o personagem Kaspar de Peter Handke, escritor de obras instigantes como A Ausência, A Repetição e A perda da imagem ou Através da Sierra de Gredos. Mas, quando afirmo “a Companhia se perguntava”, o sujeito que interroga deve ser composto por um alguém, com voz e presença humana, um sujeito capaz de perguntar. No texto de Insulto ao Público não aparecem perguntas. Todas as frases são assertivas e, através da repetição e da ausência de sequências vocabulares,Handke produz contradições, e mais, fabrica heterotopias — conceito especial no pensamento de Foucault — em que dois pontos de vista sobre a cena convivem apesar de aparentemente serem opostos. Todo o texto nega, o tempo inteiro, que a cena representa algo a não ser ela mesma, uma linguagem colocada em jogo por “co-oralidades” entre a escrita e a fala, entre o falante e o ouvinte. “Nós não representamos nada”. Porque os quatro oradores dirigem suas falas a maior parte do tempo para o espectador presente, concreto interlocutor “silencioso” a tudo que é dito e tematizado pela viado humorismo, da paródia e de outras formas corais. Daí a utilização do plural na totalidade do texto de Handke; trata-se de um aparente diálogo entre nós e os senhores, que somente ao final são tratados por “vocês”, sendo mais uma imagem utilizada como provocação ao espectador presente,sobre o seu próprio comportamento ser também uma linguagem a ser contemplada pela cena.

Insulto ao Público já foi classificado como “antiteatro”. Por outro lado, como foi possível verificar em sala de ensaios e no espaço das apresentações, trata-se de uma proposta de contraencenação, que vem, em primeiro lugar, negar o que aparentemente está fazendo, para ao final insultar determinados padrões que caracterizam o comportamento do público, de acordo com a tradição teatral burguesa da atualidade. Com esse projeto, buscamos singularizar a recepção do espetáculo, tratando cada espectador como uma presença participante de um jogo de vozes, imagens e escutas. “Os senhores estão na mira”. Mas de quem? Da linguagem que continua falando por meio dos “encontros entre corpos” presentes, no compartilhamento do ar soprado de palavras. Não é o espectador, testemunha participante, o alvo dos insultos, mas a tendência em formar padrões, em uniformizar a própria teatralidade, criando classificações, gerando estatísticas que não nos tocam na sensibilidade e não falam de nossa era.

Logo depois (e quase ao mesmo tempo) do processo de reelaboração do espetáculo Insulto ao Público, entre 2011 e 2014 desenvolvi um projeto de pesquisa de pós-doutorado através de uma bolsa concedida pela FAPESP, com supervisão de Sílvia Fernandes(USP). Analisei, sob a ótica da teatralidade das formas corais, as assinaturas, enquanto encenadores, de Antunes Filho e Enrique Diaz. Processo, autoria e coralidade, se assim é possível sintetizar, foram os temas que mais interessaram minhas pesquisas acadêmicas, desde o mestrado sobre os Processos criativos da Cia. dos Atores (SANTOS, 2004), o doutorado sobre O coral e o colaborativo no teatro brasileiro (CORDEIRO, 2010) e o pós-doutorado sobre Formas corais contemporâneas (CORDEIRO, 2014). Terminada essa trajetória de processos teóricos, iniciada em 2002, que terá como resultado a publicação de um livro sobre a cena colaborativa brasileira, retomamos a parceria na concepção de um novo ciclo para a Nonada Companhia de Arte, incluindo novos desdobramentos não somente artísticos.

Mas quem somos nós, Nonada Companhia de Arte?

Ser e ao mesmo tempo não ser, agora, é a questão. Mas vou poupar o leitor de detalhes, e não farei uma cronologia. Não é minha intenção narrar uma suposta história da “companhia que um dia já existiu”. Não pretendo fazer um memorial da trajetória entre a escolha de um nome e o atual momento. Dizer não faz parte do jogo. Não. Nada. Nonada. A intenção, caro leitor, é discutir essencialmente a escolha e os significados agrupados nesta expressão elaborada para dar sentido aos caminhos trilhados por trabalhos artísticos que vem sendo realizados coletivamente desde 2004, sob a denominação Nonada Companhia de Arte. O primeiro espetáculo que fizemos sob essa denominação foi Insulto!,com o mesmo texto de Peter Handke, depois de cerca de sete meses de processo. Contamos na fundação com Raquel Bruno e Clarisse Lopes, duas pessoas que muito contribuíram para a concretização dos espetáculos, a primeira como voz ativa na produção e a segunda como preparadora da voz dos jovens e inexperientes atores, que tive o prazer de conhecer através das nossas relações como professor-diretor e alunos-atores na Martins Pena. Como afirma Angela Materno, a respeito de Insulto ao Público:

Quando os atores afirmam, de modo crítico, que no teatro ‘tudo queria dizer algo’ (…) “nosso falar é nosso agir” (…), observa-se uma contraposição entre falar e dizer, sendo este entendido como compromisso com um significado preciso, com uma ‘mensagem’ a ser transmitida, enquanto a fala estaria relacionada ao ato da linguagem: acontecimento que tem lugar na voz.” (MATERNO, 2009, p. 127-128).

Até 2009, realizamos outras atividades, entre grupos de estudos práticos e teóricos, aulas de voz e corpo, leituras teatralizadas, esquetes e espetáculos, como Marat ou a hora em que perdemos a cabeça (2006) e Uma carta de adeus (2005), para não listar tudo o que fizemos. Desde 2010, passamos a contar com nova composição de integrantes, passamos por períodos de inatividade, e voltamos aos poucos a pensar na hipótese de a companhia continuar a existir (ou não). Para isso, começamos em 2014 um processo de diálogos que visa a repensar o significado dessa nomeação, envolvendo estudos teóricos, inclusive, que estão gerando novos projetos criativos e artístico-educacionais para realizarmos a partir de agora. Nosso foco volta-se para a psique da cidade, nossa residência passa a ser Niterói (termo do tupi que designa um lugar com “águas escondidas”). Como termina Beckett em O inominável, “aí onde estou, não sei, não saberei nunca, no silêncio não se sabe, é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar”.

Nonada, uma escolha livre

Por que Nonada? Termo do português arcaico, nonada poderia ser utilizado para sereferir tanto a alguém (um “zé-ninguém”) como a algo ou coisa (sem valor ou insignificante) desde o tempo das capitanias, dos engenhos e dos capitães do mato. De acordo com dicionários contemporâneos, vem de uma redução do latim resnon nata e quer dizer literalmente “coisa de não nascido”. Seu significado pode variar de acordo com o contexto em que atua como adjetivo, para “pessoas não nascidas em prole abastada” ou para assuntos de “menor importância ou valor”. Nonada, não-nada, ninharia, bagatela.Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro, refere-se aos primeiros “brasileiros” nascidos em território “nacional” como “nonadas”. Nem portugueses, nem índios ou africanos, ainda não eram brasileiros, porque o país ainda estava por ser inventado. Nonada: coisa de nenhum ser. Nonadas eram os despossuídos, os que eram considerados como mestiços e se viram forçados a inventar, ao longo de décadas, sua própria e plural identidade étnica (a do brasileiro), a partir de heranças miscigenadas e do encontro com a diversidade de geografias de cada localidade. Em Grande Sertão: veredas (1956), João Guimarães Rosa utiliza o termo para abrir, pontuar e finalizar sua obra narrada por Riobaldo: “O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia” (ROSA, 2006,p. 608). O narrador é um nonada, filho da terra, sem território, nômade na vida de jagunço porque “o sertão é sem lugar” (idem,p. 354). Tatarana muda de acordo com a própria narrativa a respeito de sua relação com Diadorim (dia – dor – in), o “menino” Reinaldo que conhecera ainda moço em uma travessia de barco. Rio-baldo é nonada, criador e criatura que vive nas margens do rio,e conversa com o leitor que lhe escuta através de sua singular linguagem, de forte oralidade, entre o literário e o teatral. “(…) Reinaldo— ele se chamava. Era o Menino do Porto, já expliquei. E desde que ele apareceu, moço e igual, no portal da porta, eu não podia mais, por meu próprio querer, ir me separar da companhia dele, por lei nenhuma; podia?” (idem,p. 139).

Adotamos o termo nonada como fundamento norteador para o trabalho que necessitamos desenvolver enquanto artistas-pesquisadores. Nonada para nós significa uma postura reativa a ser tomada diante da vida: não ao nada, não ao vazio de desejos e afetos; sim ao movimento, ao processo continuado de aprendizagens, na medida em que pouco pode representar bem mais que nada. A menor unidade social, cultural ou afetiva será composta por no mínimo duas presenças humanas. No nada estamos, somos, viraremos. Nonada significa para nós permanecer em travessia, processo, busca e transformação, através de caminhos e práticas artísticas compartilhadas. Foi muito curioso descobrir, na continuidade do processo de montagem, que o tradutor de Insulto ao Público do alemão para o português, o professor George Bernard Sperber, é casado com Suzi FranklSperber, pesquisadora dedicada à obra de João Guimarães Rosa, e colaboradora do Lume (de Campinas) por mais de vinte anos. Como coloca Suzi Frankl: “O corpo de Diadorim seria a forma e a matéria seria masculina; mas se revela feminina. O segredo, de ferro, se dá a conhecer. O que era — a vida e o corpo de Diadorim — não é mais, mas os sentimentos continuam misturados, levando Riobaldo ao testemunho, a contar sua vida” (SPERBER, 2006, p.143). Nonada e Insulto ao Público se casam por expressarem uma dupla negação que não implica em cancelamento total de nenhuma de suas contradições — ser e não ser ao mesmo tempo; são palavras que promovem aberturas para o processo hermenêutico do receptor (“homem humano”), convocando a nossa presença como leitores a pensar como fabricantes dos significados, seduzindo-nos a colaborar com o processo de constituição da obra com a nossa imaginação.

Companhia de arte

De acordo com Tania Brandão: “A companhia teatral será a forma de organização produtiva básica da classe teatral do século XVIII ao século XX, momento histórico em que surgiram outras modalidades de articulação, como os grupos e as carreiras individuais independentes” (BRANDÃO, 2006,p. 91).Não somos um grupo de teatro. Não somos uma instituição. Não somos uma trupe. Não somos um conjunto de atores. Não somos um coletivo. Não somos um. Não somos nada. A noção de companhia que aparece em Nonada Companhia de Arte se refere a uma relação de interlocução que surge no acompanhar, em movimento, a trajetória do outro, participando quando possível dos projetos e acontecimentos, contribuindo com a escuta, permitindo-se afetar pelo processo da obra. Não somos uma empresa. Não somos uma religião. Não somos uma comunidade. Não somos. Estamos em relação. E às vezes o silêncio é um modo de dizer algo que palavra nenhuma daria conta de expressar. Talvez as distâncias não sejam um problema a superar, mas a condição de qualquer necessidade de interação. Há de se cuidar das formas no ato da comunicação, no curso do evento, no ato da escuta. É importante cuidar não somente dos atos da fala (“nosso falar, é nosso agir”, afirma Peter Handke) e tratar dos modos de apreensão daquilo que nos é estranho. Chamo atenção ao que pressupomos, às vezes sem muito pensar, ser a constituição de certo alguém plural (um nós) que seja reconhecido por sua autoria coletiva. Somos uma composição de nós e marcas singulares, mas o processo que desenha a face de um sujeito autoral (companhia, grupo, coletivo ou conjunto) acontece no tempo, através dos processos realizados (cf. CORDEIRO, 2006, p. 125-137).

“Quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido” (CALVINO, 1990, p. 123).Toda a trajetória inicial da Nonada Companhia de Arte, em seus dez primeiros anos,está relacionada(ou ramificada) com a minha formação como pesquisador acadêmico, dedicado à cena brasileira e a interlocução com o cenógrafo Carlos Mattos desde o tempo da graduação na UNIRIO. Ele, ao participar do Núcleo de Cenografia do CPT-SESC/SP, e eu, através de minhas assistências teóricas e de direção com Enrique Diaz, não temos como negar que tais referências são como nossas fontes iniciais (ou ancestrais) para o trabalho que desejamos desenvolver. Os textos propostos e escolhidos para os exercícios nas aulas de interpretação que ministrei na Escola Martins Pena, assim como os procedimentos de ensaios utilizados nos espetáculos que realizamos até 2012, surgiram como reelaboraçãodo meu contato e convívio com a Cia. dos Atores (e seus integrantes) e o meu interesse em conhecer mais sobre a cena brasileira recente, estudando principalmente espetáculos.Foi também experimentando e compartilhandocom alunos/atoreso exercício dacena em montagens curriculares que adquiri clareza sobre o interesse em pesquisar a partir do doutorado sobre o coro e suas formas teatrais.Escrevi trabalhos sobre o coro e a Nonada Companhia de Arte para os cursos de que participei (de Flora Süssekind e Beatriz Resende), e acabei incluindo na tese o exame do processo de Insulto! (2004) em um dos tópicos do texto (cf. CORDEIRO, 2010, pp. 321-337). Mas, entre as atividades curriculares, destaco especialmente a adaptação de As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino, experimentada com alunos ingressantes, e o processo colaborativo que resultou na performance coletiva chamadaAusência, reunindo depoimentos pessoais, improvisações, seminários e cenografia criados coletivamente por alunos que se formavam em 2004 na Martins Pena. O grupo de atores que permaneceu trabalhando conosco (Anderson Dias, Flávia Espírito Santo, Lidiane Ribeiro, Priscila Fialho, entre outros) até a segunda imersão na obra de Peter Handke, em 2012, foi encontrado através dessas atividades arte-pedagógicas.

O trabalho da Nonada encontra o principal eixo de continuidade atualmente através de minha parceria com Carlos Mattos, iniciada em O selo e o Sal (2000), com dramaturgia minha em colaboração com Claudia Lage, que atuava ao lado de Luana Féo e Flávio Souza (assinando seu primeiro figurino). A iluminação era assinada por Tomás Ribas e a cenografia de Carlos contava com a parceria de Cristina Albuquerque, dupla que continuou participando dos trabalhos que realizamos até 2006, em nome da Nonada Companhia de Arte. O texto era uma composição de cartas e entre elas estavam partes de um conto de José Vereza (“Relações Postais”), mais tarde adaptado por mim na íntegra para o segundo espetáculo da Companhia, Uma Carta de Adeus (2005), depois reduzido para um esquete em 2009, quando participamos do 2º. Festival Internacional de Humor do Rio de Janeiro, que me honrou com o Troféu Oscarito, de melhor direção. O processo com as “cartas” proporcionou a continuidade da investigação a respeito dos modos de ocupar o espaço, entre a fala e o falante, operando a subversão dos significados descritos pelas palavras e objetos. A pergunta que se fazia através dos projetos que realizamos ao longo de dez anos de existência, assumindo que o nós neste parágrafo seria a própria Companhia, consistia em procurar saber quais as possibilidades de ponto de vista e qual deles assumir enquanto se diz aquilo que encontramos no texto escrito através de um corpo, que gesticula e sonoriza para ser percebido, mais do que compreendido.

É um estranho sujeito, sem identidade fixa, errando sobre o corpo sem órgãos, sempre ao lado das máquinas desejantes, definido pela parte que toma do produto, recolhendo em toda parte o prêmio de um devir ou de um avatar, nascendo dos estados que ele consome e renascendo em cada estado.” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 30).

Entre 2005 e 2007, estivemos voltados para a pesquisa e a criação de Marat ou a hora em que perdemos a cabeça, em que personagens (um quarteto de “pacientes psiquiátricos”) parecem encenar (sem êxito) o assassinato do sanguinário líder da Revolução Francesa por Charlotte Corday. A ambiguidade contida já no título desdobrava em função de outro esquema dramatúrgico o espaço da disjunção entre fala e falante, através de camadas de personagens sobrepostas, resultando num amálgama de discursos — quem fala enquanto se diz? Seria a vozdo personagem encontrado na história ou a suposta presença de um intérprete fictício? Ambos são percebidos ao mesmo tempo por meio da presença física do ator. O longo processo passou por releituras críticas sobre o conceito de revolução, psiquiatria e loucura.Ao longo do trajeto, estudamos outras obras que lidaram com o tema, desde 1789 do TheátreduSoleil aoMarat/Sade de Peter Brook; procuramos conhecer montagens brasileiras como a de Ademar Guerra para o mesmo texto de Peter Weiss (com Rubens Correa e Armando Bogus) na década de 1960; seguindo para a década de 1980, procuramos saber como teria sido oMarat/Marat de Márcio Vianna e assistimos em vídeo a trechos deRua Cordelier — tempo e morte de Jean Paul Marat (1988-89), considerada a primeira realização da Cia. dos Atores, fonte importante para nossas pesquisas. Foram acionadas muitas outras referências, que anunciamos publicamente como fontes matriciais do espetáculo Marat ou a hora em que perdemos a cabeça (2006) na parte dos agradecimentos do programa, no qual se lê em texto escrito por mim:“não procurem pelo autor”. A autoria para nós, quando ocorre no teatro, é um acontecimento coletivo, plural e compartilhado (Cf. TROTTA, 2008). Depois de participarmos do Festival de Curitiba (2007), pesquisamos sobre as relações entre riso e melancolia através da obra cômica de Tchekhov, encontrando no “teatro dentro do teatro” de Pirandello uma referência estrutural para fragmentar e subverter a dramaturgia do autor de A Gaivota. Esse projeto (Assim é Tchekhov — se lhe parece), em minha visão, não chegou ao fim de suas possibilidades. Foi interrompido para que eu pudesse concluir o trabalho com a tese de doutorado (entre 2008 e 2010).

Com Peter Handke, realizamos o primeiro trabalho em 2004; e o último, até o momento, entre 2011 e 2012. A Nonada agora possui 10 anos de existência. Mas não de realizações. Ficamos parados, ou quase imóveis nos últimos dois anos, principalmente em função de minha ausência para dar conta da vida familiar (como pai) e das pesquisas teóricas entre o doutorado e o pós-doutorado, que realizei recentemente. Esse ciclo de formação acadêmica ganhará um desfecho com a publicação de um livro — Coralidades emancipadas: itinerários da cena colaborativa brasileira. Apresentarei um ensaioa respeito das formas corais na cena colaborativa brasileira, analisando determinadas realizações de conjuntos liderados por encenadores que são referência para a história do teatro brasileiro mais recente, como Gerald Thomas, Zé Celso, Antônio Araújo, Enrique Diaz e Antunes Filho, principalmente. Reunindo a maior parte do que foi pesquisado, nessa edição não incluirei o percurso da Nonada Companhia de Arte. Suas realizações serão alvo de minha escrita teórica em outra edição textual, que deverá assimilar o que vem por aí (artisticamente), incluindo a redação desse artigo, que pretende ser um passo na direção de um novo caminho, que vai se abrindo enquanto caminhamos, com aberturas para novos encontros, com outros criadores e espectadores.

(…) Aquele lugar vazio desenha ao inverso uma comunidade de pessoas que tenham a possibilidade de ficar sozinhas. Significa a igual capacidade dos membros de uma coletividade para ser um Eu cujo juízo possa ser atribuído a qualquer outro e criar assim, com base no modelo da universalidade estética kantiana, uma nova espécie de Nós, uma comunidade estética ou dissensual.” (RANCIÈRE, 2012,p. 63).

Nonada! É necessário estar em movimento. Só nos resta percorrer a travessia do rio, aquele que, segundo Heráclito, não se atravessa (sendo o mesmo) por duas vezes. Atentos ao processo de cada um, de cada temporalidade em cada pessoa participante da cena. Agora, a demanda é por uma escrita cênica. Uma poética dos insignificantes? Imagem, movimento sensorial, música da fala, performance teatral. O espetacular, a mágica dos truques de ótica, a simplicidade universalizante, transbordante no ato de encontrar. Transcendência através da experiência estética. A boa fala, o bom texto, bem dito e bem percebido. Pulsões de vida. E de morte. Pulsões poéticas. O artesanal, não o industrial. A singularidade, não a massificação. O relativismo, no lugar de qualquer modo de pensar totalitarista. Teatro físico. Teatro acústico. Cívico e Afetivo. Falar em processo implica em método, busca por continuidades e abertura de novos espaços para o pensamento estético ganhar concretude. Nós somos feitos de nós que nos fornecem medidas para assumirmos pontos de vista e de escuta. Éo inacabado a condição que funda um novo ciclo poético. Somente caminhando é que essa outra Nonada Companhia de Arte poderá dizer que existe.Mas do futuro não pretendo tratar. Voltando a Beckett: “Dance first, think later. It’s the natural order of things”.

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CORDEIRO, Fabio. O coral e o colaborativo no Teatro Brasileiro. (Tese de Doutorado em Artes Cênicas). Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC); Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), 2010.

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DELEUZE, Gilles e GUATARRI. O anti-édipo; capitalismo e esquizofrenia. 2ª Edição Trad. Luiz B. Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010.

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TROTTA, Rosyane. A autoria coletiva no processo de criação teatral. (Tese de Doutorado). Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, UNI-RIO, 2008.

Fabio Cordeiro é diretor da Nonada Companhia de Arte e pesquisador com mestrado e doutorado em Artes Cênicas (UNIRIO) e pós-doutorado em Artes (FAPESP / USP). Um dos organizadores e autores de na companhia dos atores – ensaios sobre os 18 anos da Cia. dos Atores, atualmente finaliza o livro Coralidades emancipadas – itinerários da cena colaborativa brasileira.

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