A pesquisa artística e a arte dos dispositivos

31 de agosto de 2015 Traduções

Vol. VIII, nº 65, agosto de 2015

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De José A. Sánchez

Tradução de Luciana Eastwood Romagnolli 

Texto de publicado em maio de 2015 no Catálogo da 12ª Bienal de La Habana.

 

As artes contemporâneas têm sido absorvidas pelo paradigma da pesquisa. Embora a pesquisa artística não seja conflituosa com a produção nem com os jogos, os modos de fazer e estar de quem dela participa são diferentes dos assumidos por quem participava dos circuitos de produção e exibição artística habituais décadas atrás. A pesquisa artística não é incompatível com o mercado, mas, sim, com a especulação. Tampouco é incompatível com as instituições, mas, sim, com o controle ideológico, a instrumentalização ou a censura. Pois o objetivo da pesquisa artística não é a produção de obras (sejam materiais ou imateriais), senão a articulação de saberes e conhecimentos. E tanto a especulação como o controle político são hostis ao enriquecimento do saber e à disseminação do conhecimento: os especuladores, ao ocultá-los e privatizá-los em processos de monopólio e vendas abusivas; os agentes políticos, ao distorcê-los ou diretamente cerceá-los mediante a privação de direitos fundamentais a quem os produz ou distribui. A pesquisa artística é consistente com a democracia do conhecimento[1], que apoia com recursos privados e públicos a geração de conhecimento socialmente útil e evita a todo custo a especulação com os resultados de tais conhecimentos.

Da arte conceitual, a pesquisa artística herdou a concepção da prática artística como produção de conhecimento. Luis Camnitzer reconhecia que sua experiência como artista proporcionava-lhe não uma habilidade para produzir objetos, mas, sim, “uma liberdade de conexões que me permite compreender melhor as coisas” [2]. Os artistas que se inscrevem no novo paradigma não concebem a si mesmos como inventores de formas e manipuladores de objetos, mas como geradores de saber ou agentes numa rede de geração de saberes. Nessa rede, os artistas não ocupam uma posição de privilégio, mas se deslocam guiados por questões ou afetados por problemas, aos quais respondem pondo à disposição da coletividade os procedimentos e as habilidades próprias de sua prática, mas sem por isso depreciar os procedimentos e as habilidades próprias de outras disciplinas do conhecimento e outras práticas sociais.

O descentramento dos artistas nesse paradigma seria uma herança das práticas críticas, feministas e pós-coloniais, que realizaram a dissolução do velho sujeito do conhecimento e situaram o indivíduo corporalmente imerso em seu campo de pesquisa. Esse campo afeta inevitavelmente a subjetividade do artista, que eticamente já não pode se referir aos resultados de um processo como “sua” obra, por mais que as convenções sociais sigam identificando atribuição à autoria. Uma investigação sobre as memórias, os modos de convivência, as zonas de conflito ou os interstícios de uma sociedade ou de uma comunidade na qual o artista se inscreve ou imerge nunca será uma obra fechada, mas estará necessariamente exposta ao questionamento externo e ao diálogo.

Que se compartilhem perguntas e preocupações mais do que convicções e constatações indica que a pesquisa artística pode ser também concebida como um contexto de aprendizagem. Esta formação permanente é a reedição dos velhos ateliês, que já não são físicos, nem locais, nem fechados, nem disciplinares, senão globais, abertos, transdisciplinares e articulados em rede. E quem são os mestres? Nesses ateliês de pesquisa não há mestres, praticam-se pedagogias colaborativas e métodos de autoaprendizagem. Os mestres, se existem, podem ser ignorantes, mas também escritores, cineastas, atores, cientistas ou pensadores políticos e até pessoas anônimas em seu fazer comum.

Os artistas-pesquisadores aprenderam da antropologia, mas também das ciências experimentais, que não existe observador neutro. Por isso, uma de suas premissas é efetivar sua intervenção subjetiva de modo consciente, não com a finalidade de impor uma visão ou forma, mas, sobretudo, com o fim de produzir uma colaboração, um diálogo ou um intercâmbio.

E o que pesquisam? Basicamente a relação entre linguagem e experiência. Diferenciam-se assim dos que estudam a linguagem exclusivamente como meio de codificação das experiências não presentes ou como vestígio-código-antecipação destas. E em vez de fazê-lo de modo contemplativo, o fazem de uma maneira prática, jogando com os arquivos de formas simbólicas disponíveis na rede ou com seus usos atuais em âmbitos muitos diversos, desde a vida cotidiana à ciência experimental, ou instalando-se criticamente em qualquer dos dispositivos que constituem nosso cotidiano, alterando-os ou, na terminologia de Giorgio Agamben, profanando-os[3].

A pesquisa artística conserva da definição de arte um núcleo instável, que poderia ser compreendido, nos termos propostos por Camnitzer, como um modo de organizar as coisas. As “coisas” podem ser materiais ou sensíveis; podem ser também relacionais e intangíveis. Ao organizar, os artistas se veem obrigados a transitar fisicamente de um lugar ao outro e de um contexto de enunciação ao outro, a manipular objetos e articular ideias, a exigir-se cruelmente em um trabalho solitário, e a conversar, dançar ou simplesmente olhar em companhia de pessoas desconhecidas e que, em alguns casos, podem continuar a sê-lo. Tal expansão do espectro organizativo e a responsabilidade assumida em relação aos outros requer uma prática transdisciplinar. Mas os artistas não podem voltar a ser heróis, por isso, em muitos casos, conscientes das limitações individuais, recorrem aos dispositivos.

Em seu ensaio sobre Michel Foucault, Gilles Deleuze descrevia o dispositivo como “uma espécie de novelo ou meada, um conjunto multilinear […] composto por linhas de natureza diferente” [4]. Os dispositivos articulam saber, poder e subjetividade em um mecanismo de aparência confusa e por isso dificilmente representável, cuja função é “fazer ver” e “fazer falar”. A subjetividade dificilmente é pensável no exterior do dispositivo, pois o dispositivo é também um mecanismo de subjetivação. E isso tira dos indivíduos a capacidade de originalidade, pois esta somente se dá como novidade dos regimes de enunciação estabelecidos pelos dispositivos.

Agamben, por sua vez, propõe a seguinte definição, muito sintética: “chamo dispositiva a todo aquele que tem, de uma maneira ou outra, a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres vivos”[5]. Relendo Foucault, Agamben descreve o dispositivo como uma rede composta por elementos heterogêneos (discursos, instituições, edifícios, leis, protocolos, proposições), nos quais se realiza “o cruzamento das relações de poder e de saber” [6]. Os seres vivos não fazem parte dessa rede, tampouco são independentes dela, pois somente em relação com os dispositivos os seres vivos devêm sujeitos.

Um ser vivo não pode se relacionar com o dispositivo como um objeto, já que é a relação com o dispositivo que lhe permite atuar como sujeito. Se não pode situar-se como sujeito à margem da relação com o dispositivo, tampouco poderia criá-lo ou destruí-lo. Em troca, pode, sim, resistir à progressiva colonização dos seres vivos por parte dos dispositivos, dirigida a um enfraquecimento máximo das subjetivações singulares. O modo de resistência ao dispositivo é a “profanação”: “a restituição ao uso comum daquilo que foi capturado e separado neles” [7].  Mas a profanação dificilmente pode ser uma empreitada individual, ela requer colaboração na compreensão dos mecanismos que produzem separações, destituições e dessubjetivações, e colaboração nas desmontagens, desativações e subversões dos mesmos.

A pesquisa artística intervém nesse processo em colaboração com outras práticas. Como a natureza dos dispositivos é complexa, as disciplinas requeridas para sua análise e transformação são diversas. A pesquisa artística tem vocação transdisciplinar. Contribui com um modo específico de indagar e organizar, no qual se encontram diferentes modos de pensamento: sensível, radical, intuitivo, transcendente, “selvagem”, integrador, lúdico, criativo, afetivo. A pesquisa artística pode ser concebida como geradora de conhecimento sempre que for igualmente concebida como um modo de pensamento implicado na profanação dos dispositivos.

A arte participa da profanação alterando momentaneamente as condições de enunciação, tornando visível o escondido, cometendo atos de sabotagem seletivos, reorganizando as peças até o absurdo, detendo temporalmente o funcionamento do mecanismo, invertendo o sentido das linhas ou das expressões, produzindo maquetes efêmeras, entendidas como objetos de observação ou como experimentos de subjetivação alternativos. A profanação será efetiva se essas táticas conseguirem superar o estado de entretenimento e alcançar o da experiência e do discurso. Do contrário, correm o risco de verem-se reduzidas a ofertas de serviço social, provedoras de descansos artificiais ou substitutos de experiência e, portanto, subsidiárias dos processos de dessubjetivação produzidos pela ação colonizadora dos dispositivos a profanar.

No entanto, Brecht tinha razão quando considerava que a arte (ele se referia especificamente ao teatro) somente pode cumprir sua função se a considerarmos como um entretenimento (“Unterhaltung”/ “Vergnügung”)[8]. Pois a arte, efetivamente, nos entretém. E a questão radica em este ser ou não um entretenimento do pensamento e da sensibilidade, na qual a subjetividade se ativa, ou um entretenimento da subjetividade mesma, na qual o indivíduo abdica desta e entrega-se plenamente ao dispositivo, neste caso chamado arte (ou teatro).

A pesquisa artística é um entretenimento que produz conhecimento, que atravessa experiências, que gera pensamento, que resiste aos processos de dessubjetivação. Os artistas se entretêm em indagações, conversações ou sabotagens que ninguém demandou, do mesmo modo que seus interlocutores se entretêm participando dos dispositivos profanados sem que ninguém os obrigue. Uns e outros se encontram em redes de disposição configuradas em torno das linhas tensionadas pela curiosidade, a crueldade, a expansão sensorial, o riso, a memória, o olhar ativo, a raiva, a surpresa. Tratam-se de dispositivos de pensamento, isto é, de entretenimento, que, sem substituí-la e muito menos dispensá-la, contribuem para a ação.

 

Notas:

[1] http://joseasanchez.arte-a.org/node/893

[2] http://www.guggenheim.org/video/luis-camnitzer-on-art-thinking-and-art-history

[3] Giorgio Agamben, “¿Qué es un dispositivo?”, Sociológica, ano 26, nº 73 (maio-agosto 2011), pp. 249-264.

[4] G. Deleuze, “¿Qué es un dispositivo?”, em VVAA, Michel Foucault, Filósofo, Gedisa, Barcelona, 1990, p. 155.

[5] G. Agamben, idem, p. 257

[6] Idem, 250.

[7] Idem, 264.

[8] B. Brecht, “Kleines Organon für das Theater” (1948), em Gessammelte Werke nº 16, Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1967, p. 663.

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