O que é a direção teatral?

Anotações de uma aprendiz

22 de dezembro de 2014 Estudos

Vol. VII, nº 63, dezembro de 2014

Resumo: Mesmo reconhecendo o papel histórico da direção teatral, o artigo tenta defender a necessidade do ofício, do ponto de vista filosófico e poético. Em seguida, admitindo a dificuldade de formular um método lógico, objetivo, digamos científico para o exercício da direção, o artigo aponta alguns caminhos empíricos, possivelmente inválidos para outrem, visando abrir o diálogo sobre uma arte impossível de se ensinar.

Palavras chave: direção teatral, método empírico, mestre\aprendiz.

Abstract: Even recognizing an historical role of stage direction, this paper tries to defend the need of it, from a philosophical and poetic view. Then, assuming the difficulty of formulating a logical, objective method, for stage direction, the article points out some empirical ways, possibly invalid for others, seeking to open dialogue on an impossible art to teach.

Keywords: stage directing, empirical method, master \ apprentice.

O que é a direção teatral?

O que vem a ser direção, em uma arte colaborativa como a da cena? Historicamente, parece até ser teimosia das vanguardas do começo do século XX ávidas de revogar a superioridade do cinema no desafio naturalista. E como? Dando asas à abstração em cena com truques cenográficos e invenções espaciais inusitadas, efeitos de luz, sonoplastia, música. Caberia à direção a tarefa de combinar todos estes elementos em uma obra de arte vivente, segundo Appia (1921). Mas, quanto o cinema é autoral – visões de um olho só, montadas definitivamente em película – tanto o teatro é fruto de autoria coletiva, sujeito à permanente modificação da performance. Quanto o cinema é virtual, tanto o teatro é físico, mais: fisiológico. Corpo da obra de arte vivente é corpo de ator. E os atores, especialmente os latinos, não perdem ocasião de mostrar que já faziam todos os truques da cena, há séculos, por conta própria. Tradição.

Por outro lado, apaixonados como estamos por todos os estilos de todos os tempos e lugares por mais distantes e exóticos, agora como nunca dantes acessíveis, caberia à direção a responsabilidade da escolha – e que faça algum sentido. Diretores não teriam surgido por necessidade técnica (da companhia ou do trabalho) mas, sim, por carisma intelectual. Mesmo assim, até hoje teatro não se faz sem atores, enquanto desde sempre é possível estrear sem crédito na direção. Sua ausência não necessariamente implica limitar o resultado. A paixão atorial é hipertrófica e tendente ao eterno retorno ao domínio total do palco inteiro. Qualquer ator maduro tende a auto-dirigir-se, ratificando a revogabilidade da figura do diretor – afinal, uma invenção dos albores do século XX, aposentada pelos processos colaborativos.

Do ponto de vista teórico, em defesa do cargo, argumentarei que a construção da visão precisa de uma distância, de um olhar externo. Neste sentido, a direção coincide com a tendência abstrata que poupou o teatro da competição com o cinema (e a pintura da competição com a fotografia) no desditoso item da imitação da realidade. Há divergências entre uma percepção estética “por fora” ou “por dentro” do processo cênico, esta última sendo necessariamente limitada à visão parcial e contagiada pela vivência emotiva do estar dentro da cena. Geralmente, os atores ajustam a sua própria percepção do fato cênico no parâmetro da reação da platéia – bem sabendo que é impossível entendê-la como uma entidade homogênea. O publico riu: então funciona; mexeu nos assentos, tossiu, não riu: então não funciona. Mas quantas vezes a risada do público é compulsiva? Superficial? Gregária? Antes a de rir, obras de arte suscitam outras e mais raras reações, como maravilha, perplexidade, comoção, piedade, aquele silêncio tenso e aquele estado de espera que hospeda uma revelação. Usando o público como diretor, corre-se o risco de banalizar-se. Certa vez, fiquei curiosa ao ver Eugenio Barba espreitar os espectadores com intensidade e cuidado durante toda a duração de um de seus espetáculos. O que estaria fazendo? Talvez os pesquisasse, intuindo a representação em seus olhos, protegendo-os, mas ao mesmo tempo protegendo os atores do olhar do público. O diretor é uma ponte, um filtro, uma fronteira. Garante um encontro não banal entre dois mundos estéticos, isto é, perceptivos.

A fronteira è uma ótima imagem para me entender nesta função. Tenho uma formação em dança e outra em literatura, melhor, em filologia. Tenho desde criança um gosto desmedido de olhar. Esses vetores se encontram em algum território fronteiriço: o território do corpo como narrativa biográfica, o território da oralidade como outra forma de escrita em que a linguagem se dissolve em sua origem fisiológica de ruído e grito. Em respiração – que é o som da dança. Como fazer dançar palavras? Nos processos de montagem que tenho vivenciado com atores, è a respiração que provoca o som do qual surge a ação que estimula a reação que compõe a partitura que evoca algum sentido que reclama enfim um texto. Nunca me aconteceu o contrário, mesmo estando o texto à disposição desde o começo dos ensaios. Sinto necessidade de atravessar de novo a fronteira entre corpo e palavra, desmontar os clichês da espontaneidade e buscar a essência do movimento, “reconstruir a sinceridade” do ator desde sua primeira inspiração/expiração, o primeiro passo. Todo novo processo é uma busca pela justa medida da representação dramática e mesmo pós-dramática, entre realidade e ilusão cênica, verdade e ficção no paradoxo da “mentira verdadeira” (segundo Diderot, uma “imitação tão exata que o espectador, enganado sem interrupção, imagina estar assistindo à própria ação real”). Este entre-lugar me inquieta. As montagens são etapas de uma pesquisa em que experiências artísticas e biográficas se conectam; são pedrinhas caídas na trilha da floresta que mais adiante se revelam como traços de um percurso de reconhecimento. A ambigüidade das motivações è essencial, já que se trata de emoções que eu não saberia expressar de outra forma e que muitas vezes compreendo somente mais tarde, como espectadora. Não há receita. Cada história a ser contada aponta para a sua própria forma – uma provocação comunicativa eficaz para aquele momento da vida, aqueles parceiros de trabalho e aquela platéia; não dá para cristalizar em estilo. Mas, mesmo que este interesse pela “mentira verdadeira” me alimente impulsos experimentais, o alvo nunca é demonstrativo. Em teatro, lidamos o tempo todo com o imponderável da vida, sua efemeridade, casualidade, organicidade. Para mim, em alternativa à igreja, se tornou o espaço profano de celebração do humano. Arte do encontro, com o outro e comigo mesma. Confesso que, para além das razões intelectuais, profissionais e do prazer de fazer teatro, minha opção pela direção tem caráter de necessidade como forma de auto-analise, já que se re/conhecer nas situações representadas permite imaginar alternativas. Com Nietzsche, sei que “temos a arte para não morrer da verdade”.

Já ouvi muitos mestres dizerem que qualquer convenção cênica, mesmo as mais sólidas, deve ser demolida e remontada a cada novo espetáculo. Este ofício de demolição e remontagem, este olhar crítico (provocando crise) que o ator pode não ter ou até em alguns casos não pode ter, é, para mim, o cantinho da direção. Me parece que sua função é fomentar um ambiente de interação, para que o ator continue presente e o público desperto. No palco, diversamente que nas artes plásticas e em artes mecanicamente reprodutíveis, o trabalho de criação da obra se dá ao vivo e em três dimensões. No palco, a produção de qualquer sentido exige a presença física que molda, suja, sua e contamina a primeira. Todo o teatro aspira a tornar-se música, disse certa vez Aderbal Freire Filho citando, se não me engano, Vladimir Mejerchold; no sentido de somente existir no instante em que se dá como ato expressivo absolutamente presente, nem antes (quando ainda é palavra escrita e canovaccio) nem depois (quando é transcrição da oralidade perdida e memória de imagens e gestos). Esta interatividade presentifica o espectador: estamos todos aqui, agora. O teatro começa onde a palavra termina, escreveu Artaud; não é (mais) literatura escrita. É performance, isto é transform/ação da percepção estética dos presentes. Evidentemente, o veículo da obra é o ator, às vezes autor, às vezes delegado do autor. Então, me parece que outra função da direção – impotente após o terceiro sinal – seja a de potenciar a auto-regência do ator, já que o êxito daquela passa através do futuro êxito deste. Arte de premeditação. Trata-se de instigar, propor ou proporcionar ao ator os meios para o seu sucesso naquele espaço de livres encontros e acontecimentos que é o palco, onde a poesia brota como obra coletiva, em co-autoria com a platéia e com o grau de imperfeição próprio dos fenômenos vivos. Buscar, apontar não um produto artístico, mas os caminhos e meios de produção da arte. Mesmo que todos nos preocupemos em comer imediatamente, escreve Artaud, mais importante é não desperdiçar apenas na sensação efêmera de saciedade nossa energia de ter fome. Uma obra de arte não é um objeto “fechado” tipo sabonete, pronto para o consumo, mas um roteiro “aberto” que precisa da inesgotável fome criativa dos espectadores e permanece disponível às mais diversas e inesperadas interpretações – considerando o altíssimo grau de subjetividade embutido no ato de olhar. Trata-se enfim de inventar e preparar em detalhes, durante os ensaios, um jogo que outros (atores/espectadores) vão jogar. Cada um, naturalmente, jogará seu próprio jogo: assistirá a seu próprio espetáculo. Me fortalece confiar nisso: o espetáculo está na cabeça do espectador (Grotowski).

Mas como? A única tática que conheço tem a ver com a escuta. Ensaiar não é forçar que coisas aconteçam mas – como sugere o pintor Francis Bacon para o seu trabalho – “postar armadilhas” para que algo inesperado e mágico surja diante de olhos prontos para vê-lo e capturá-lo. “Auscultar” todos os fenômenos, cruzar todos os indícios e aguardar, até a cena liberar o seu segredo. Trata-se de uma atenção tensa e paciente que visa reconhecer os meios para o êxito do ator no jogo de cena. Ao mesmo tempo, è preciso decidir – no que tem de cisão, corte, seleção e hecatombe de outras possibilidades – e decidir com rigor, persistência e diria mesmo crueldade (com Artaud). Esta postura afeta o estado criativo do ator? O ator joga si mesmo, seu próprio corpo e voz (material da arte) em cena. Se arrisca, como qualquer jogador; seu êxito depende, certamente, do quanto ele conseguirá se manter alerta e “aberto” mesmo dentro de uma partitura “fechada”. Vivo nas marcações, como se ele as estivesse criando ali, na hora. Despertar o estado de perigo no palco, tirar o conforto do ator pondo-o a andar na beira do precipício, trabalhar sua resistência, enfatizar sua vertigem – é função da direção. “O que não mata, fortalece” dizia Nietsche ou outro filósofo atrevido que atentou para o fato de que a maior parte dos seres humanos age com extrema criatividade quando posta em estado de emergência. Se nossa arte é um paradoxo (viver de verdade algo ficcional e premeditado), um possível treinamento para isso é fazer do próprio paradoxo um método. Um método patafísico – do tipo lançado por Jarry como “ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam exceções” – serviria mais do que qualquer sistema lógico. Desafiar o ator a se livrar de tudo que “funciona” e desobedecer às marcas, derrubar os seus cabides virtuosísticos, desorientá-lo e puxar-lhe o tapete do texto, enfim criar obstáculos para que súbitas soluções brotem em cena como decisões. Ao invés que recorrer àquilo que o ator já domina, apelar para as suas reservas de energia – sua fome criativa – e treinar os músculos emotivos até então inertes. Paradoxalmente, são as restrições as que mais fortalecem e permitem a liberdade – não de algo, mas para algo. Arte tem a ver com atrito – produção de diferença no encontro. Fomos infestados pelo vírus da concordância. Mas sem resistência não há fogo. Sem desequilíbrio não há descoberta do movimento.

O meu método patafísico tem produzido um vocabulário de caminhos empíricos que costumo percorrer nos ensaios. Trata-se de percursos por obstáculos, privando os atores do texto, do pensamento psicológico como ferramenta e da espontaneidade como paradigma de verdade. Sem texto, o ator è levado a montar um tapete sonoro fisiológico (incluindo respiração, ruídos, interjeições e discurso indireto íntimo) que constitui o estado verbal pré-expressivo do personagem. Acompanhando o processo de desequilíbrio e deformação do corpo do ator, em busca de máscaras, contra-máscaras e caminhadas próprias do outro, a construção do tapete sonoro pode dar acesso ao personagem dentro da extensão físico-vocal (voz é corpo) do ator. Uma partitura física em gromelô pode dar conta das mais variadas intenções e dos objetivos de cada entrada em cena e finalmente do roteiro inteiro da peça. Preocupo-me mais com o significante do que com o significado, pois pode-se calar uma pessoa mas não o seu corpo. Quando a hora do texto vem, as palavras elevam o corpo sonoro do personagem ao invés que esmagá-lo com seu peso de conteúdo. Aí, as palavras pairam como as melhores possíveis, que o ator não decora mas com elas preenche sua partitura físico-vocal, tornando-se dono do sentido que a cada dia dará ao papel. Como não há forma sem conteúdo, não há conteúdo sem forma. Todo o corpo do ator é expressivo e não existe nele um grau zero de escrita. Mesmo nu, carrega hábitos, histórias e ideologia. È um arsenal de memórias biográficas, uma máquina de gestos civilizados que cada um identifica com seu próprio jeito natural e espontâneo de ser. Estranhar o ator de si mesmo – fazer com que perceba os clichês que compõem sua “espontaneidade” – pode treiná-lo a distanciar o comportamento do personagem e descrevê-lo como outro ao passo que o vivencia. Sem referência à espontaneidade, evita-se a armadilha da identificação psicológica – toda a tralha mística pseudo-stanislawskista dos atores que “recebem” o papel. Pedir ao ator para que pense com o corpo e não com a mente é o único antídoto que tenho contra o não-teatro. Na dança, uma ação é, antes, gesto essencial, emoção e presença real do bailarino. No teatro dramático, o corpo do ator hospeda outros – mesmo que haja como performer e seja chamado pelo primeiro nome, sua presença é ficcional, sua sinceridade é construída. Se você pedir a um bailarino para cair, ele cai. Se pedir a mesma coisa a um ator, reage: “Porque cair? Como cair? E quem cai? Eu ou a personagem?” Esta sofisticação psicológica do gesto, que certamente visa sua riqueza, precisa ser mantida no estado de alerta e de domínio do bailarino que cai, do acrobata que anda no arame. A “presença” è uma montagem de tensões físicas essenciais, assim como no jogo e no atletismo, onde é logo evidente que potência não é nada sem controle.

Talvez minha atual função na direção tente responder àquela paixão infantil, de fazer dançar palavras, já que trato as ações físicas como escrita cênica e a palavra, vice-versa, como partitura física. O que é evidente que não posso sem atores – o que posso sem figurino, sem cenário, sem luz, sem objetos de cena e sem texto. Mas o ator, por sua vez, não pode sem espectador – e um diretor é um proto-espectador. O ator é letra da escrita performática que o espectador lê e interpreta. Sua presença é incompletude: há uma margem em que o outro (diretor, espectador) entra, transita, imagina e reage em uma relação dialética e colaborativa. O diretor torna-se, principalmente em parcerias que se mantém no tempo, um arsenal de possibilidades e metas guardadas, não desperdício, mas semente que fertiliza o solo criativo dos ensaios. Seu imaginário perceptivo – tudo que sente e pensa com seu estômago, coração, vísceras – intui o do espectador, tornando-se visível através do corpo do ator. A direção aponta caminhos para Jerusalém, mas é o ator que tem que chegar lá passo a passo, toda noite, junto aos espectadores.

Alessandra Vanucci é pesquisadora e diretora italiana, radicada no Brasil. Entre seus trabalhos: A descoberta das Américas (2005), Pocilga (2006), Herói (2007), Arlecchino all’inferno (2007), Sancio Panza e il cavaliere (2008), Náufragos (2009), Felinda (2010), O cozido (2012), Invisíveis (2014). Formada na Universidade de Bolonha e doutora em Letras pela PUC-Rio, è professora de Teoria do Teatro, Processos de Criação da Cena, Direção. Escreveu, entre outros: Crítica da razão teatral (São Paulo, 2005) e A missão italiana. Histórias de uma geração de diretores no Brasil (São Paulo, 2014).

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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