O artista como produtor – um (des)fazedor de limites

Artigo sobre a noção de arte a partir de Benjamim, Duchamp e Borriaud

30 de junho de 2014 Estudos

Vol. VII, nº 62, junho de 2014

Resumo: O artigo trata do tema do artista como produtor em interlocução com o ensaio original de Walter Benjamin, O autor como produtor (1934). A visada privilegia a inflexão da noção de arte colocada pelo readymade de Marcel Duchamp, sobretudo pelo deslocamento da noção de obra para a instância do público. Realiza também uma discussão sobre a Estética Relacional tal como a compreende Nicolas Borriaud e suas relações com artistas contemporâneos.

Palavras-chave: Walter Benjamin, Estética Relacional, Arte da Performance, Artista-produtor.

Abstrat: The article presents the theme of the artist as producer in a dialogue with Walter Benjamin’s original essay The author as producer (1934). We privilege a notion of art connected to Marcel Duchamp’s readymade, above all because o its displacement of the notion of art work towards the public instance. It also promotes a discussion about Relational Aestheties as Nicolas Borriaud understands it and its relations with contemporary artists.

Keywords: Walter Benjamin, Relations Aesthetics, Preformance Art.

O artista como produtor – um (des)fazedor de limites

La boite em valise (portable museaun), Marcel Duchamp, 1941.

Pensar o tema do artista como produtor em interlocução com a noção de História da Arte nos leva a possibilidade de compreender uma importante inflexão do olhar sobre a própria noção de arte. Gostaria de colocar como um dos traços fundamentais desta inflexão o deslocamento do projeto de arte para uma instância silenciosa em que faz do espectador um artista, como nos diz Octavio Paz a respeito de Marcel Duchamp, e que se propõe em interlocução com a vida, criando problemas para distinções positivas entre artista, espectador, obra, gêneros, arte e vida. O que a argumentação aqui privilegia é o aspecto de desfazimento de limites, ou se quisermos, de movimento sempre desviante dos territórios das linguagens artísticas.

Gostaria de pensar tais desvios em relação com a noção de artista-produtor juntamente com Walter Benjamin e realizando um movimento de indistinção de lugares. Outra faceta, numa mesma medida, ainda nos aproxima da prática do artista contemporâneo que se movimenta em diferentes papéis no circuito de arte. A inspiração do nosso olhar está impregnada do gesto de Duchamp e na forma mesmo do readymade, verificando algumas derivações possíveis de seu ato nos trabalhos de arte, na chamada Arte Relacional e na Arte da Performance.

Em seu ensaio O autor como produtor, Walter Benjamin convida o autor a se aproximar dos produtores, “com os quais antes não parecia ter grande coisa em comum” (BENJAMIN, 1994, p.129), e também a se solidarizar com o proletariado, apontando um percurso derivante para a arte que se tornaria cada vez mais presente na ordem do dia. Mais do que uma tomada de partido, Benjamin convoca o autor do futuro a uma tomada de posição consciente a respeito dos meios de produção. Um dos pontos de conexão com intenções e eventos anteriores no âmbito da arte é o impulso virtual das Vanguardas Históricas e de toda carga utópica dos primeiros anos do século XX – a de que as práticas de arte poderiam ativar o potencial de criação artística presente em cada indivíduo.

Benjamin atesta no artigo a importância dos processos de fusão que enxergava nas obras literárias como pressupostos de criação de novas formas artísticas a partir dos novos meios técnicos disponíveis e de sua reprodutibilidade como a fotografia, o cinema e a música. O filósofo faz uma distinção importante entre os autores burgueses e os revolucionários que, mais do que uma temática engajada, se mostravam eles mesmos atuantes no processo da revolução, sobretudo ao proporem em suas obras novas qualidades formais, que Benjamin entendia como verdadeira qualidade literária, ou seja, a inovação da forma como qualidade revolucionária. A consciência formal e a crítica que se abre com a estrutura das obras é uma discussão referencial para as artes moderna e contemporânea. Nosso crítico Mario Pedrosa, em um ponto de vista distinto de anos anteriores, faz referência em uma comunicação de 1953 ao papel revolucionário do Impressionismo na história da arte como transformador do processo produtivo – uma pintura revolucionária que se caracteriza pela consciência dos meios da pintura.

Em uma relação com o readymade podemos dizer que os meios de produção são problematizados pelo reconhecimento da ação (escolha do artista) como prática em arte. O tratamento dado ao tema do readymade por Thierry De Duve no livro Kant after Duchamp, parece compreender o fato como integrante de um evento da História da Arte. Sua discussão quer entender Duchamp não como aquele que vai divorciar o fenômeno artístico da estética, mas o que vai repensá-la em seus próprios termos. A discussão dos critérios de definição do que é arte passa pelo embaraço da condição intrínseca de julgar, como no caso do readymade. E o juízo será mais demandado onde não existem critérios a priori. O juízo nunca será definitivo e objetivo. A busca de critérios não se esgota, porque a arte é caracterizada pela singularidade (todo mictório não é considerado uma experiência de arte).

A tese fundamental desse autor aponta para o readymade como um fato histórico que desloca os pressupostos de ajuizamento da arte confiados à esfera do gosto para a questão mesma do que é arte. E a questão da autoria da obra de arte, compreendida pelo gesto de escolha poética do artista como instaurador de sentidos específicos, desdobra-se num contexto maior de possibilidades que incluem o público, a história e o próprio mercado de arte. Tal contexto tensiona as condições tradicionais de beleza como determinantes do valor estético da obra e parece afirmar uma presença maior do público.

Este lugar mais opaco da arte nos indica que o readymade se funda sobre uma contradição nada fácil de resolver – o gesto do artista transforma o objeto anônimo em objeto de arte, ao mesmo tempo em que dissipa esta noção. Os readymades de Duchamp ainda criam problemas para enxergarmos uma autonomia ou unicidade nos objetos de arte e sua diferenciação dos objetos funcionais. Mais do que dizer que tudo pode ser arte (e realmente os anos de 1960 mostraram que tudo é permitido, inclusive, a perda do objeto), o que ressoa do gesto de Duchamp é a pergunta fundamental sobre o que faz com que algo seja um objeto de arte.

E se por um lado há aqui uma ameaça no que diz respeito à mística que envolve o trabalho do artista, por outro lado a arte como gesto faz aparecer um legado conceitual que sobrevive nas transições entre moderno e o contemporâneo. O lance conceitual da arte é como um sintoma que surge, sempre se reinventando, cortando o fluxo causal dos acontecimentos no tempo. Uma das perspectivas da arte conceitual sinaliza que a condição experimental da arte, ou seja, quando o estado de arte não está garantido a priori, é uma medida importante que faz com que seja possível provocar a produção de sentidos na recepção.

Ao depreendermos ainda do ensaio de Benjamin que a consciência dos meios de produção faz das obras uma operação que inclui o processo de trabalho do espectador (ele mesmo um produtor), podemos pensar que a conjugação realizada na noção de arte posta por Duchamp, quando postula a intercessão da invenção do artista com o processo criativo do espectador, na medida em que é ele que no final das contas acaba por realizar a obra, podemos aproximar artista/público e produção em um território flutuante. Nesta injunção é que Duchamp formula o chamado “coeficiente artístico”, em que se anuncia uma potência de desfazimento da presença abstrata do artístico e o localiza na relação com o espectador. A equação deste coeficiente se realiza numa relação entre o que o artista intenciona expressar, mas que permanece inexpresso, e o que se expressa não intencionalmente. No meio dessa equação está o espectador, o fruidor como presença pressuposta.

Estética relacional, os anos 90

Uma visada sobre a arte dos anos de 1990, na sua feição dita Relacional como distingue Nicolas Bourriaud, ao se relacionar com o projeto moderno que investiu no desmonte da barreira existente entre arte e vida deve se apresentar por meio de extratos diferentes coexistindo em uma determinada duração, caso se pretenda fazer o exercício para o qual convida Benjamin em suas Teses sobre a História. Segundo Benjamin as obras de arte têm uma temporalidade específica que não se expressa no modo extensivo de um relato causal. Seu modo de expressão, ao contrário, é a da ordem da intensidade que faz brotar conexões atemporais.

A argumentação que pretendo expor da arte relacional visa compreender a transformação do lugar aurático da obra de arte para a instância do espectador. Neste sentido, uma investida teórica possível para pensar tal inflexão é vê-la inserida no quadro das discussões sobre o pós-modernismo em um matiz que se afigura como um limite da história das vanguardas e que, de algum modo, se torna uma das características da arte contemporânea. Neste limite, são transpassadas tanto as primeiras vanguardas, quanto sua revisão nos anos de 1960 na cultura em arte norte-americana. O readymade de Duchamp alterou a ordem na divisão do trabalho e a concepção do estatuto da arte utilizando objetos já existentes e convocando o público para a produção, transformou a economia artística e vinculou coletividades em relações dadas a partir de dispositivos inventivos. De qualquer forma perdura nos movimentos artísticos americanos, como o pop, a op, o minimalismo e a arte conceitual, um campo demarcado para a atuação da crítica, uma noção de obra que ainda vigora no objeto e relações intermediadas com a imagem e que a estética relacional problematiza.

Diante de uma cultura já descentralizada e pulverizada em plena ativação das diferenças, a estética relacional pode ser vista em destaque como um sintoma, como um lugar de produção de diferenças do projeto moderno de superação entre arte e vida, bem como resistência à produção de objetos ressignificantes da representação, próprios de um movimento do final da década de 1980 que levou os artistas a uma volta da tradição pictórica, como nos diz Ricardo Fabbrini. O ponto de fuga para o real parece ter alcançado seu lugar-limite e sobrevive em desdobramento como “práticas colaborativas” e no pensamento subsequente de Hal Foster sobre uma prática no campo das artes de “retorno ao real” que, após o desmonte das utopias das vanguardas se aproxima do presente denunciando crises abertas pela questão de gêneros, de minorias e efeitos globalizantes (FABBRINI, 2010, p. 12).

Para caracterizar a estética relacional, Borriaud faz uma análise que não se detém em detalhes, mas investe na ideia de que os fenômenos modernos e seus impactos são fruto do pensamento iluminista distinguindo três concepções do mundo, a saber, uma vertente racional, uma outra que se dedica à filosofia do espontâneo e ainda uma que se caracteriza pelo irracional. Para ele tais visões tensionam as forças do capitalismo moderno. Porém, com o avanço capitalista as relações em seu contexto sofreram profundas modificações e o projeto moderno de emancipação foi transformado em modos diversos de melancolia (BORRIAUD, 2009). Tal sensação existencial permite que a arte atual não esteja associada à produção de ideologias e não tenha pretensão de recuperar formas do passado; os artistas estão interessados em realizar uma série de pequenas modificações que não têm nenhum aspecto hegemônico. Se a arte contemporânea ainda se constrói por um projeto político-social, este seria concebido por meio das relações com o público.

O ponto fulcral de diferenciação da estética relacional entendido como uma ordem de intensidade que faz brotar conexões atemporais pode ser compreendido por meio desta práxis. Talvez esta seja a diferença que insere a estética relacional em uma complexidade que procura criar um território deslizante entre arte e mundos de vida possíveis, justamente reagindo às formas tradicionais da arte como a pintura ou a escultura. Tal proposta desbancou a criação do objeto artístico que represente, ou seja, que esteja no lugar do referente, ou que seja específica por si mesma, obras em que o fluxo de sentido se esgota no exercício de um tempo determinado de fruição reflexiva. Ao contrário, procura provocar descontinuidades a partir de situações reais na qual a ordem simbólica tem a possibilidade de ser questionada a encontrar outros modos de habitar o mundo.

O artista contemporâneo, para Bourriaud, não tem como objetivo construir o mundo segundo uma ideia preconcebida da evolução histórica. Ele deseja aprender a habitar o mundo ao invés de construí-lo: “O artista habita as circunstâncias dadas pelo presente para transformar o contexto de sua vida (sua relação com o mundo sensível ou conceitual) num universo duradouro”. A estética relacional, então, tomaria “como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social, mais que a afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado”. A obra, agora, permite um intercâmbio ilimitado com o mundo. Bourriaud usa a expressão “estar-junto” no exemplo de Roland Barthes para explicar que o regime do encontro se transformou em regra de civilização, e que acabou produzindo formas de arte que se transformam em um encontro entre observador e obra, uma “elaboração coletiva de sentido” (Op, cit. p. 19-20).

Com podemos apreender a questão relacional privilegia menos a contemplação mais tradicional que o uso, dando destaque aos processos que se inserem em termos de intersubjetividades, de regiões táteis, de práticas de trocas do que em termos ópticos. A estética relacional cria espaços de relações, não firma lugares, mas dá a ver suas fraturas criando entre-lugares, ou seja, camadas expressas do que podemos considerar como mundo político. Podemos entender a reorganização de modos já existentes no real como ecos do gesto de Marcel Duchamp, cujos equivalentes se encontram em ações como escolher formas disponíveis e apresentar novos modos, originários de novos contatos. Aposta do readymade: o intempestivo do cotidiano.

Um aspecto anacrônico pelo qual é possível compreender as investidas relacionais está numa espécie de remissão às características rituais que envolvem as práticas de alguns artistas. Porém, um paradoxo ou contraponto mais concreto aparece por meio de uma crítica vigorosa de alguns de seus comentadores, como Claire Bishop, para quem a conceitualização de Bourriaud nos anos de 1990 é problemática quando afirma que estas práticas estão mais interessadas “nas recompensas criativas da atividade colaborativa” do que propriamente na criação investida no campo da estética.

Untitled 1992 (Free). foto: Hiroko Masuike/The New York Times.

Diante deste quadro expositivo é possível engendrarmos uma crítica às práticas relacionais em conexão com os autores até agora citados. Para tal desdobramento me alio ainda à crítica de Gillian Sneed (2010) que tensiona dois exemplos de arte relacional. O primeiro, um artista caro à Bourriaud, Rirkrit Tiravanija, que instaurou uma série de performances híbridas, como Untitled 1992 (Free), em que encheu o espaço expositivo da Galeria Nova York 303 com os objetos da despensa e do escritório, substituindo os itens da despensa por uma cozinha improvisada em que passou a cozinhar curry tailandês para os visitantes da exposição. Outra dessas peças foi Aperto 93 da Bienal de Veneza que era composta por uma estante de metal, um pequeno fogão aceso que mantinha uma panela com água fervente, rodeados por materiais de acampamento e caixas abertas cheias de pacotes de sopas chinesas que o visitante poderia consumir se utilizando da água da panela. Tais trabalhos de Tiravanija podem ser entendidos como práticas colaborativas.

Podemos concordar com Sneed que as práticas de Tiravanija se instalam na rubrica de eventos em arte que não se pautam por um critério específico de obra e se assemelham ao que Allan Kaprow chamou de vanguarda da arte lifelike, ou como uma nonart performance para usarmos outro termo do artista em seus textos teóricos – os visitantes que não se conhecem se reúnem ao acaso para comer numa situação que se aproxima extremamente de eventos da vida cotidiana – patente relação com os happenings. Tiravanija entende que os participantes ocupam o lugar de matéria-prima em seus trabalhos, numa relação direta com Kaprow que afirmou que nestas modalidades que ele se detinha em tentar definir (como os happenings, performance, atividades de arte lifelike ou nonart-performance) a noção de público se redimensiona para o fato de que os participantes se tronam elemento real e necessário para o trabalho.

A crítica de Sneed à série de Tiravanija, sobretudo a Untilted, se detém no fato de que ela não cumpre um dos mais importantes pressupostos da lifelike de Kaprow, que é o de abandonar os lugares institucionais e recorrer a outros espaços impensados para a realização das práticas, espaços instaurados no chamado mundo real. Quando Tiravanija propõe uma prática colaborativa dentro de uma galeria ou em uma Bienal, o público é mais notadamente reconhecido como especializado e menos como aleatório. Nos tipos de arte definidos por Kaprow, o que é intencionalmente performatizado é a vida cotidiana na intenção de criar alguma consciência diferenciada sobre ela, elaborar um pensamento ou mesmo uma sensação crítica que acompanhe os eventos ditos banais.

Juntando os cacos

Em uma visão retrospectiva, que destaca no gesto da arte relacional uma instância originária do artista como produtor que se desdobra nas práticas modernas e contemporâneas, podemos verificar apreensões do sentido de artista/produtor na obra de Lygia Clark. Um dos alvos de sua investigação levava a consciência dos meios ao entendimento de como o sistema da arte age na determinação dos espaços destinados às obras e na determinação das categorias com as quais a história da arte trata de criar qualificações. Investigou também os meios empregados e os gêneros reconhecidos. Sua prática e sua força poética passam a ser orientadas pela problematização de tais questões.

Suely Rolnick atenta para o fato da deriva mais radical a que se dedicou Clark se afirmando por uma deriva extradisciplinar, o que não deixa de ser uma resposta às questões colocadas aos artistas pela hegemonia do neoliberalismo. Em seu trabalho Caminhando de 1963, a pesquisa toma uma direção irreversível em direção à potência criadora do corpo e da mobilização dos participantes. Por meio de uma ação em arte de dissolução do objeto que Clark chama de digerir o objeto, a obra se transforma em puro acontecimento, ou como nos diz Rolnick – “da qual emana seu poder de interferência crítica na realidade” (2007, s/p). Um novo recorte de sua pesquisa passa a ser a memória dos traumas que ocupará o centro de seu trabalho clínico-poético juntamente com a noção de relacional.

Podemos encontrar na postura do artista como propositor uma interseção com Benjamin em que tal convite pode ser entendido como trabalho do autor consciente que “não visa nunca a fabricação do objeto, mas sempre, ao mesmo tempo, a dos meios de produção”. O filósofo segue dizendo sobre o trabalho pedagógico do autor cujo aparelho será tanto melhor “quanto maior for sua capacidade de transformar em colaboradores os leitores ou espectadores” (BENJAMIN, 1994. p. 132). Penso aqui na noção de Instauração de Tunga. Instauração é um termo do artista para uma estratégia recorrente em seu trabalho que consiste em incorporar à obra pessoas estranhas ao mundo da arte que protagonizam uma performance com objetos e materiais sugeridos pelo artista.

Os restos da performance acabam compondo uma instalação que permanece exposta e que esboça um museu contaminado pela memória do corpo. O vigor de tal proposição parece ser o de produzir atividades como “inalienáveis territórios de existência”, nas palavras de Suely Rolnik. Como produtor, Tunga dá a ver o processamento dos materiais pela força vivificante de pessoas de origem popular (na maioria das vezes como em 100 teto em que trabalhou com office boys, ou na instauração que realizou que realizou com crianças do Projeto Axé de Salvador, ou ainda em Tereza com a convocação de pessoas pelos classificados do jornal impresso), propondo potencialidades dentro dos meios do capitalismo, de suas produções residuais, tanto materiais como humanas, investindo também na transformação do espaço museológico, bem como na transformação do espaço de passagem da rua para sua potência de produção, como no caso dos office boys visíveis na Avenida Paulista, ambiente em que normalmente são invisíveis.

Vale destacar ainda com Rolnick que a deriva em arte em sua face extradisciplinar, compreendeu propostas que se infiltraram em lugares mais tensos, comuns na América Latina fazendo uma mistura entre ações ativistas e artísticas. Uma verificação importante pode ser vista no trabalho de Ricardo Dominguez, A ferramenta transbordadora de imigrantes, que foi apresentado em uma palestra-intervenção no evento Atos de Fala no Oi Futuro Ipanema em setembro de 2011. O trabalho é um dispositivo eletrônico que permite que telefones celulares funcionem como um sistema pessoal e seguro de navegação pelas zonas de fronteira entre o México e os Estados Unidos. Como um Gesto de Artivismo, é um aplicativo que guia os caminhantes pelo deserto ao encontro de água. Num sentido reflexivo sobre o des-limite da arte em direção à vida, como poética performativa perfaz um retorno aos impulsos utópicos de hospitalidade, liberdade e justiça.

A imbricação do artista contemporâneo com práticas derivantes do lugar tradicional de puro realizador de objetos e transferidas para gestos agenciadores, curatoriais, críticos e de pesquisa promove, como nos diz Ricardo Basbaum (2013), a construção de um “dispositivo de atuação” com o olhar voltado para a autonomia do artista como aquele que está sendo forjado juntamente com a produção da obra. Segundo Basbaum, as práticas de alguns artistas que se voltam para atividades de fomentação, produção, agenciamento de outros eventos que envolvem outros artistas e criadores, tanto contribui para o deslocamento da figura do artista isolado em um processo de criação detentor da assinatura, para uma instância conceitual como lugar privilegiado da poética em que a consciência sobre intercâmbios e formação de comunidades de discussão e circulação são igualmente responsáveis pela produção de sentido da obra.

Podemos falar de uma guinada do lugar de produção de sentido que se alia ao modo de constituição consciente do artista sobre os meios, em que se entende uma noção de meios alargada, ou ampliada para a criação do circuito em que as obras se instalam. Lembramos aqui da obra de Duchamp, La boite en valise que, na verdade, mais do que uma obra em que o artista reuniu miniaturas de seus trabalhos em uma caixa-maleta inaugurando um modo de exposição portátil (circulação inusitada), também se exerce como ato fundador curatorial e como alternativa financeira.

Outra faceta contemporânea do artista, na visada e experiência de Basbaum, é seu lugar como artista-pesquisador vinculado à universidade. Mesmo reconhecendo tensões nem sempre conciliadoras entre a universidade e o circuito de arte, Basbaum entende que se tratam de instâncias diferentes de valoração em que é importante ver o espaço universitário paulatinamente se imbricado nas práticas da arte contemporânea. Seu reconhecimento gira em torno de um lugar de construção de passagens produtivas entre a prática de laboratório, as discussões de campos especialmente dedicados a delinear traços experimentais inseridos no âmbito social (em constante avaliação das agências universitárias) e as injunções mercadológicas.

Referências bibliográficas:

BASBAUM, Ricardo. Manual do artista – etc. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2013.

BENJAMIN, Walter. “O autor como produtor” in Magia e técnica, arte e política Obras escolhidas Vol. I. Trad: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BORRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. Trad: Denise Bottmann. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

DE DUVE, Thierry. Kant after Duchamp. The MIT Press; Reprint edition: February 6, 1998.

FABBRINI, Ricardo. “Arte relacional e regime estético; a cultura da atividade dos anos 1990”, in http://www.fap.pr.gov.br/arquivos/File/Revista_cientifica_5/revista5_Ricardo_Fabbrini.pdf

PAZ, Octavio. Marcel Duchamp, ou, O castelo da pureza. Trad: Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 2004.

ROLNIK, Suely. “Memória do corpo contamina museu”, in http://eipcp.net/transversal/0507/rolnik/pt

SNEED, Gillian. “Dos happenings ao Diálogo: Legado de Allan Kaprow nas Práticas Artísticas Relacionais Contemporâneas”, in http://www.poiesis.uff.br/PDF/poiesis18/Poiesis_18_TRAD_Happenings.pdf

TOMKINS, Calvin. Duchamp: uma biografia. Trad: Maria Teresa de Resende Costa. São Paulo: Cosac Naify, 2004.

Dinah Cesare é teórica do teatro, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (EBA- UFRJ) dentro da Área de Teoria e Experimentações em Arte na Linha de Pesquisa Poéticas Interdisciplinares e mestra em Artes Cênicas pela UNIRIO.

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