O espetáculo autônomo

Crítica da peça A descoberta das Américas

15 de outubro de 2008 Críticas
Ator: Julio Adrião. Foto: divulgação.

Um dos atuais sucessos teatrais do Rio de Janeiro, A descoberta das Américas, foi apresentada na 9ª Mostra Prática da UniRio, que ocorreu durante a última semana de Agosto. O espaço alternativo para a encenação (“Sala Cinza”) comportou o máximo de espectadores possível, e de várias formas tal espetáculo pode repercutir na vida acadêmica e profissional dos alunos do curso de Artes Cênicas. Uma característica, porém, chama mais atenção: os espectadores/estudantes são confrontados por uma estética simples e bem executada, diferente das “grandes produções” que possivelmente muitos aspiram, um dia, integrar.

Em cena não há um cenário grandioso, com elementos justapostos, ou um figurino cheio de signos – o que se vê com freqüência na cena carioca – para afirmar a personalidade de um ator, um diretor, ou qualquer artista que seja. Julio Adrião interpreta no palco praticamente vazio durante quase toda a peça, apenas uma rede é usada próximo ao fim, o que, aliás, poderia ser dispensado. O que significa que a forma ator, palco, texto ainda é uma boa opção para escapar da ostentação gratuita, além de, no caso da de uma encenação na academia, desviar-se dos problemas enfrentados por conta da falta de verba. Os alunos da UniRio (e outras universidades caso assistam ou tenham assistido o espetáculo) podem ainda refletir sobre um outro aspecto da montagem: a direção e a atuação confundem-se, e fora raros momentos, é impraticável uma dissociação dos dois elementos cênicos, não há um limite nítido entre pesquisa do ator e direção. Produto, acredito, da não existência de uma relação hierárquica entre as funções. Posicionamento este que me parece ainda pouco questionado na universidade, não apenas entre atores e diretores, mas entre todos os estudantes que podem estar envolvidos em um projeto (cenógrafos, figurinistas, iluminadores, teóricos, etc). Esta parceria – e não subordinação – começa desde a tradução e adaptação do texto de Dario Fo realizada por ambos Alessandra Vanucci, também Diretora, e Julio Adrião, único ator do espetáculo.

A descoberta das Américas mostra através do olhar de um prisioneiro italiano exilado na América as transformações sofridas pela  população desta região durante o período de colonização. Uma visão crítica e sem mitificações escrita em um monólogo inteligente, bem humorado, que indicaria, para o autor – e conseqüentemente tradutores –  onde estão as raízes da configuração sociológica que temos hoje. Julio Adrião, com sua atuação bastante elogiada, mostra toda a sua habilidade técnica (vocal e corporal) construindo sons, vozes e gestuais que ora complementam, ora são ilustrações do texto. O espectador, contudo, não deixa de ver em cena um ator em total entrega no seu trabalho. Exemplo disso é o desgaste físico (compatível com esta proposta) visível sofrido por Julio Adrião durante a encenação.

O tom cômico da interpretação pode, por vezes, distanciar o público das críticas do texto, e o trabalho parece fechar-se na intensa pesquisa do ator. Ao fim da encenação os comentários eram direcionados especificamente a isto, como se a peça não fosse um todo. Em um determinado momento, que não sei precisar, começa um duelo – que poderia ter um resultado frutífero – entre ator e texto, no qual o primeiro, com ajuda dos espectadores vence, e riso parece ser apenas uma boa recepção à interpretação. Qualquer que seja a relação estabelecida por Julio Adrião e Alessandra Vanucci com a dramaturgia (duelo, jogo, justaposição, etc.) não é percebida pela maior parte do público, isto acontece porque este ainda está estreitamente ligado à idéia dos “grandes atores de teatro”, e não propositalmente, suponho, o ator tira o foco do todo. A descoberta das Américas é um espetáculo autônomo, extremamente pensado e ensaiado por dois artistas. Para os espectadores, a encenação pode servir de meio para se repensar a maneira de ver teatro: sem ignorar os méritos individuais, perceber a possibilidade de assistir não apenas a um bom ator, mas a um bom espetáculo.

A descoberta das Américas participa até o final do ano do projeto de repertório do Teatro do Planetário.

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A Questão de Crítica – Revista eletrônica de críticas e estudos teatrais – foi lançada no Rio de Janeiro em março de 2008 como um espaço de reflexão sobre as artes cênicas que tem por objetivo colocar em prática o exercício da crítica. Atualmente com quatro edições por ano, a Questão de Crítica se apresenta como um mecanismo de fomento à discussão teórica sobre teatro e como um lugar de intercâmbio entre artistas e espectadores, proporcionando uma convivência de ideias num espaço de livre acesso.

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