Meu corpo é minha política
Artigo sobre o processo de criação de Meu Corpo é Minha Política
Vol. VII, nº 62, junho de 2014
Resumo: As palavras aqui tratam de um projeto que nasceu no fim de 2006 e permanece até hoje: é formado por uma performance, três solos de dança contemporânea, duas oficinas e uma performance (para a rua, eu acho) que está ainda em gestação. Este texto trata, resumidamente, de processos de criação, viagens, encontros, pessoas, lugares e histórias. Bem vindo ao micro relato de processo Meu Corpo é Minha Política – Uma coreógrafa e oito anos experimentando territórios, descobertas de inesperadas soluções, precariedades e invenções por 25 cidades no Brasil e 10 países ou ao (rascunho do futuro livro) Diário de Bordo de uma Artista do Brasil.
Palavras chave: Corpo – política – dança contemporânea – performance – processo – colaboração
Abstract: The words here deal with a project that was born in 2006 and remains today: consists of a performance, three contemporary dance solos, two workshops and a performance (for the street, I think) that is still in gestation. This paper addresses briefly the processes of creation, travels, meetings, people, places and stories. Welcome to micro report of My Body is My Politics – A choreographer and eight years experimenting territories, discoveries of unexpected solutions, precariousness and inventions for 25 cities in Brazil and 10 countries or (the draft of the future book) Diary of a artist of Brazil.
Keywords: body, politics, contemporary dance, performance, process, collaboration
Meu corpo é minha política
Era 1997, um amigo muito querido chega a mim, visivelmente eufórico, falando de uma entrevista que ele viu, uma entrevista incrível que ele viu por acaso na TV, com um senhor negro, de cabelos já embranquecendo, muito muito sorridente (e meu amigo falava enfaticamente daquele sorriso insistente), falando sobre globalitarismo, sobre multiplicar os centros periféricos e como foi alfabetizado pelos pais em Brotas de Macaúba, no interior da Bahia.
Foi assim que ouvi falar do Milton Santos pela primeira vez.
O geógrafo baiano Milton Santos, brilhante pensador já falecido, aborda em sua obra os conceitos de espaço, território e paisagem, onde (e falando aqui de uma maneira simplificada) esses elementos se encontram e formam um “conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações”. Segundo Milton Santos, na articulação desses três conceitos as velhas noções de centro e periferia já não se aplicam, pois o centro poderá estar situado a milhares de quilômetros de distância e a periferia poderá abranger o planeta inteiro.
Ao longo de mais de 30 livros, Milton Santos desenvolve as noções de espaço, território e paisagem como agentes não estanques, e sim como sistemas que, a cada período histórico, alteram, renovam e adaptam-se para atender aos novos paradigmas do modo de produção social. Desta maneira Milton coloca um debate, que poderia ser simplesmente geográfico, no centro do debate acerca dos dilemas da sociedade contemporânea como um todo. É entender histórias, pessoas e lugares como um conjunto que contém e está contido.
É pensando neste conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações, que parto aqui para falar de dança contemporânea, (da parte que sei sobre) ser artista no Brasil, de histórias, lugares, pessoas e trânsitos entre categorias, numa profanação de linguagens, uma interdisciplinaridade de fazeres.
Neste meu transplante de conceitos, territórios e arte, o coração da dança, de onde localizo meu discurso, fala por meio da geografia da cena e de tudo o que orbita este complexo conjunto que é o artesanato cênico, onde quer que ele aconteça.
Espaço, território, paisagem, geografia cênica, dança contemporânea e a jornada de prosseguir produzindo arte no Brasil: pego estes elementos e trago-os todos para mim, para o meu dia-a-dia, para o micropolítica do viver.
O que quero mesmo aqui é falar destas conexões energéticas e mobilizadoras, me engajando em um relato de processo que é pessoal pessoal pessoal pessoal e, ao mesmo tempo, só possível pelo contexto onde vivo, transito e modifico, só é possível porque existem pessoas diferentes, lugares e suas histórias.
Bem vindo ao micro relato de processo Meu Corpo é Minha Política – Uma coreógrafa e oito anos experimentando territórios, descobertas de inesperadas soluções, precariedades e invenções por vinte e cinco cidades no Brasil e dez países ou ao (rascunho do futuro livro) Diário de Bordo de uma Artista do Brasil.
Como diria (sorridentemente) Milton Santos: “Os lugares obrigam os homens a intercâmbios.”
Este texto deambula pelos oito anos de Meu Corpo é Minha Política, de trás para frente e para trás, até chegar onde me encontro agora: dedo no teclado, quase silencioso cair da tarde nesta cidade que desafia qualquer artista (e/ou cidadão) a permanecer atravessando esta transformadora e predatória pré copa do mundo, ao mesmo tempo que você lê este texto, do seu aqui agora, do meio dos seus desafios e invenções para prosseguir em suas escolhas.
As palavras aqui, pois, se arremessam no desejo de compartilhar, a partir de uma prática insistente; compartilhar estratégias, instrumentos, dinâmicas de produzir, transitar, afetar e ser afetado no fazer artístico, entendendo esse fazer artístico como uma prática que vaza suas bordas, que se arroja, para frente para trás, em rotas improváveis.
Meu Corpo é Minha Política é um projeto que nasceu no fim de 2006 e permanece até hoje. Quando nasceu não disse a que veio, não informou tamanho nem duração, foi chegando e eu entendendo-o e co-criando minha vida nele/com ele ao longo do tempo, construindo mesmo o barco enquanto navegava.
Hoje entendo mais Meu Corpo é Minha Política e posso falar: são quatro solos, duas oficinas e uma performance (para a rua, eu acho) que ainda está em gestação.
CARNE é o primeiro solo e começou em 2006, como um trabalho-resposta às questões do curso de performance ministrado por Daniela Mattos e Alexandre Sá, no Parque Lage. Construí uma ação de dez minutos. No início era somente eu e um frango congelado, desses de supermercado. Eu e um frango Rica.Apresentei estes pequenos 10 minutos no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Recife. Nestes lugares eu era “uma pessoa da dança contemporânea”.
Depois de Recife e das duas intensas semanas no SPA das Artes, conhecendo o trabalho e convivendo com os artistas Rodrigo Braga, Juliana Notari, a crítica Clarissa Diniz e a intensa cena das artes visuais do Recife, o trabalho cresceu e eu me perguntei: Quem manipula quem? Quem come quem? Que imagens podem deslizar entre sexualidade, canibalismo, maternidade e ícones femininos?
Voltei ao Rio, olhei para o meu corpo, peguei nas mãos os garrotes que já usava e mergulhei mais na investigação.Trabalhei como uma coreógrafa fazendo performance.
Terminei o CARNE e, ao longo dos anos, levei-o para Vitória, Salvador, Brasília, São Paulo, Recife (de novo, desta vez em um festival de dança), Holanda, Caxias do Sul, Paris, Porto, Buenos Aires, Cuba, Morelia (Mexico), Fortaleza, Ilha da Reunião (Africa), Cidade do México, São Luiz do Maranhão, Joanesburgo, Rio de Janeiro, Oaxaca e Oslo. Em alguns lugares eu era uma artista das artes visuais, em outros uma bailarina contemporânea.Segui pelos caminhos que o trabalho apontava e por outros que eram abertos a facão de cortar cana-de-açúcar.Depois me perguntei se era dança contemporânea, se era performance ou se era… um trabalho.Acho que é um trabalho, não importa a categoria.Ou melhor, importa sim, para alargar e friccionar os espaços e outras coisas caberem.
Mas, espere, para quem não conhece os trabalhos, de que serve esse texto?
Uma conversa o que é, para que serve?
Comecei fazendo essa pergunta, pois queria alguns comparsas de criação. Mas ao mesmo tempo trabalhar sozinha me era essencial. Estava sozinha e no meio de uma residência artística na França, uma residência para trabalhar o CARNE. Trabalhei, me embrenhei, li coisas, escrevi, construí ações… mas percebi que aquilo não cabia mais no CARNE, que eu já estava construindo outro trabalho sem me dar conta.
Ok, cortei o cordão umbilical, o mais forte, e deixei alguns fios dependurados.
E comecei Eu Prometo, isto é Político.
Isso já era em meados de 2008.
Tive a possibilidade de trabalhar em outra residência artística, esta em Portugal. Estaria lá com uma artista norueguesa, mas eu precisava propor um trabalho para aquele um mês de residência. Não tive dúvidas, cerzi alguns fios que já havia construído, estruturei numa proposta de investigação e lá fui eu com Mia Haugland Habib, norueguesa de família israelense, trabalhar sobre Eu Prometo, isto é Político, em Portugal.Não sabia o que viria, mas tinha a promessa de um encontro e um encontro é uma conversa.
Programas de residência e sua natureza de deslocamento propiciam outros traçados que nos fazem rever as dinâmicas de um processo artístico e/ou um produto artístico?
O processo foi deveras interessante e fiquei bastante afogueada com o resultado. Mas eu moro no Brasil, Mia mora na Noruega, sem dinheiro, sem suporte político-econômico-cultural que me abrigasse nesse começo de pesquisa, como fazer?Fiz sozinha, segui a pesquisa sozinha, da maneira que pudesse e senti que o trabalho todo seria este e desta maneira: sozinha-acompanhada. Entendi isso como uma estratégia, um instrumento de experimentar colaboração, entorno e encontro.
Quais são as estratégias para se maquinar experimentações?
A pesquisa se seguiu em lugares e contextos bem diversos, onde eu pudesse trabalhar. Não, não me acho super heróica por construir isso ou deveras brava e ousada. Vejo abundantes artistas ao lado, mais próximos ou mais distantes, que trabalham e engendram trabalhos em situações as mais diversas. Da adversidade vivemos.Encontros, tensões, pressões, restrições, perguntas, atritos, invenções.
O que significa dizer que estamos transformando práticas de experimentação artística em produção de outros espaços de criação e troca?
O lugar onde o processo da pesquisa mais teve seu chão – embora seja um pouco desequilibrado fazer essa comparação entre os lugares, com suas intrínsecas diferenças porém equipotentes importâncias no labor –,o lugar que cimentou e, ao mesmo tempo, me fez duvidar de muitas convicções que apurei no caminho, esse lugar foi o México, por um mês em que vivi lá.No México não apresentei nada do Eu Prometo, isto é Político. Não desenvolvi a pesquisa nem sozinha nem acompanhada. No México apresentei o CARNE em duas cidades, num contexto para especialistas e “formadores de opinião” e em outro para “leigos afoitos por conhecer outras coisas” e que me deram um dos acolhimentos mais generosos e abrasados que já recebi em toda a minha vida.No México coordenei uma mesa sobre gênero e performance e outra mesa sobre artivismo.E no México andei muito nas ruas e conversei com pessoas e entrei onde eu conseguisse. Entendi, experienciando e concordando, a importância de descentralizar e olhar para os lados. E transitar mais e mais pela América.
E se interessar, ler e falar mais sobre pensadores e artistas do Brasil, Moçambique, Guatemala, Nigéria, Argentina, Burundi, México, Costa Rica, Colômbia, Índia, Itália, Equador, Venezuela, Hungria, Portugal, Angola, Sérvia, China, Cabo Verde, Montenegro, Croácia, Uruguai, Polônia, Iugoslávia, Paraguai, África do Sul, Espanha, Egito, Congo, El Salvador… E outras localidades.
O resto do mundo: local onde vivo e trabalho.
A razão dessa índole Robin Hood da produção de pensamento é abrir espaço para a visibilidade de quem vive abaixo da linha da miséria de outros pensamentos e outros pensadores, pois muitos desses brilhantes pensadores dos países supracitados já passam dos 50 anos de serviços prestados ao “surgimento de outros possíveis” e ainda é difícil ouvi-los, enquanto o abecedário do Deleuze fala alto e ainda está na letra R. De Redistribuição.
Nada sobre nacionalismos e/ou reserva de mercado epistemológico.Nada sobre Deleuze e o fato de ele ser o mais citado em praticamente todas as teses, monografias, ensaios, resenhas, orelhas de livros, matérias de jornal, artigos de filosofia, arte, sociologia, agricultura, ciência, literatura, além de alta gastronomia francesa.Nada disso em particular, tudo isso ao mesmo tempo.
Ah! E o México foi transformador (de voltagem) não por “olha como eles fazem as coisas com pouco dinheiro!”, ou por “olha que exótico este lugar!”. Mas pela experiência de pensamento e produção em um encontro auto-gerido, construído por cada participante a partir de suas próprias ideias e projetos. E por exercitar como nossas estratégias, escolhas e comprometimentos artísticos/éticos têm repercussões em nossas criações, em nosso entorno.
As diferenças foram se endemoniando a partir daquele país.
Ambular, deambular, discorrer, errar, passear, perambular, percorrer, pervagar, tumultuar, vaguear. Olhar os lugares e as pessoas. Tornar este trajeto politizado: passível de discussão, passível de escolha, passível de crítica.
Seguindo (com alguma cronologia?), já que desengatilhei na fala de uma experiência (não só) pessoal, para falar de construções outras, em Cuba aprendi a fazer uma montagem de luz encapando e desencapando fios, aprendi como carros e coisas podem ser consertadas e reutilizadas quase ao infinito e como é precioso ter internet (e toda a rede de comunicação que ela representa) ao seu alcance, em casa…
Depois do México e Cuba, tiveram São Paulo, Noruega e Rio de Janeiro. Estive com artistas diferentes e experimentamos maneiras de construir juntos, apontar diferenças e funcionar sobre distintas localidades, nacionalidades e condições materiais. Durante o processo artístico, estiveram inevitavelmente em jogo os assuntos de colaboração, continuidade e as condições econômicas do entorno.
Tecemos como esses pontos encostam-se aos interesses de cada um de nós e chegamos a um lugar diferente a cada vez. Ou melhor, apontamos caminhos juntos, mas cada um chegou a seu próprio lugar, carregando e sendo carregado pelos outros. E a linha do trabalho permaneceu sendo esticada em minhas mãos, transitando entre pessoas e lugares, carregando e sendo carregada pelos rastros dos encontros. Tivemos um compromisso em comum: compartilhar, roubar e emprestar simultaneamente.
Colaboração e o entorno econômico, vontades e diferenças, como prosseguir? Perguntas constantes para respostas incompletas e móveis.
Trabalhei com (queridos) artistas-colaboradores. Nada do que pesquisei com eles, em sua expressão formal, pode ser visto no Eu Prometo, isto é Político. Mas a presença e passagem deles são constitutivas do edifício todo. E o nome deles está na minha ficha técnica, como colaboradores.
Depois dali foi o inferno, recebi um não depois do outro, alguns no mesmo dia. Exercício de auto-estima para um artista, reflexão sobre esta (falta de) política cultural do Brasil, esforço de invenção de outras possibilidades.Mas como continuou e como recebi ainda mais nãos, resolvi olhar para o não.
Inventando o que seria trabalhar com o não, comecei a trabalhar sobre o material excluído, jogado fora, não utilizado em Eu Prometo, isto é Político e sobre a ideia de ser excluído, jogado fora, descartado, não pertencer ao lugar.
Quando me dei conta, já tinha começado o terceiro solo, me debruçando por sobre um material que nunca foi para a cena e sobre uma ideia: ser excluído, excluir-se, não pertencer. Comecei então a trabalhar sobre imigrantes, suas histórias e ficções, trajetórias e tentativas de acolhimento.
Aí veio um sim, em Dusseldorf, na Alemanha. E fui pra lá.
Chegando lá tinha tudo pronto (na cabeça): trabalhar em cima de um material físico já conhecido, remexê-lo, e trabalhar sobre os imigrantes. Mas que imigrantes? Quais? Onde? Abordar na rua? Falar que língua? Procurar pessoas que se pareçam imigrantes na Alemanha? Como estabelecer uma maneira de aproximação que propiciasse um encontro menos invasivo?
Então comecei a frequentar um curso de alemão para imigrantes, ia a todas as aulas, três vezes por semana. Minha turma: eu e mais cinco afegãos que estavam pedindo asilo político na Alemanha. Foi incrível. E difícil.
O tempo passou, a pesquisa se fisicalizou e o terceiro solo chama-se Pequenas Histórias sobre Pessoas e Lugares.
Coloque aí mais uns anos neste relato e vieram as duas oficinas, uma sobre performance, a outra sobre composição coreográfica em dança contemporânea. As duas com o subtítulo: Compartilhando, Roubando e Emprestando Simultaneamente. Elas me levaram para cidades muito diferentes e contextos bem desafiantes.
O coração destas oficinas sempre foi investigar corpo, política e profanações do fazer artístico, além do exercício de estar com pessoas e lugares. Meu meio de transporte para alcançar estes objetivos sempre foi bastante técnico e rigoroso, cenicamente falando, e sempre trabalhei em cima do treino físico para atores, do Grotowski.
Sabe quando você acha que sabe o que está dizendo e com o que está mexendo porque se vê fazendo isso há anos? Mas tem um dia que você chega na sala, e você não sabe mais de nada, embora intuitivamente maneje bem cada peça e saiba como articulá-las… Então este dia chegou e me senti desafiada ali, enquanto ria da minha própria desajeitação com aquelas pessoas e o caminho que a oficina estava tomando. De repente dei um zoom out e olhei surpresa para aqueles jovens e famílias, mãe, pai e avô, discutindo política com a cena que acabaram de construir e de ver, as visões críticas se multiplicando e se confrontando e se redefinindo, e as pessoas se descobrindo como fazedores da História, produtores de realidades críticas enquanto as horas passavam e já era noite e estávamos numa sala do Circo Baixada, em Queimados, construindo cenas à partir de rigorosas sequências de ações físicas misturadas a estímulos de imagens de livros e somando a isso a pergunta: O que é político para você?
Eu acompanhava em silêncio (e absolutamente feliz) as discussões sobre a cena e seus sentidos, sobre a diferença nas repetições das ações, sobre que mudança de interpretação causa um braço mais alto ou mais baixo e sobre o que achou o avô da Ana, que via tudo aquilo pela primeira vez.
Sabe quando você para no meio do furacão e observa, e repara na beleza da coisa dando-se por si mesma, muito maior do que você previu, muito maior do que você? Quando você sorri para a beleza do tamanho inesperado de um encontro?
Essa coisas maravilhosas aconteceram e acontecem e isso tudo é uma profissão e em uma profissão nós somos pagos pelo nosso trabalho. Mas às vezes não somos.
Em 2011 eu ganhei um edital, concorridíssimo, mas a empresa que me representava não apresentou a documentação. E eu perdi o edital. Afora todos os desdobramentos emocionais, jurídicos, existenciais e profissionais disto; afora e a partir deste acontecimento, comecei nova pesquisa em 2012. Queria falar sobre fazer arte contemporânea no Brasil, sobre os desafios e adaptações, sobre o mercado de arte e sobre a produção em dança contemporânea, teatro e performance, suas aventuras e engajamentos. E eu queria falar sobre como, mesmo sendo pequeno, pode-se transformar caminhos. Eu tinha lido uma pequena reportagem do filósofo Michel Onfray, onde ele falava do “princípio de Gulliver” — a força e a união dos pequenos contra o poder dos grandes — e sobre “mudar o mundo sem tomar o poder”.
Eu queria me envolver em tudo isso.
Graaaaaande pretensão.
Então para não me perder na ganância do meu alvo, comecei a procurar nos livros de aventura o conteúdo ou alguma tradução simbólica deste discurso. Livros como Moby Dick, 20.000 léguas submarinas, Viagem ao centro da Terra, todos os livros das viagens de Amyr Klink, O velho e o mar, Volta ao mundo em 80 dias e As viagens de Gulliver são o pano de fundo dramatúrgico para falar de aventuras, viagens, desafios e superações, usando esta temática para tratar da dança, da aventura de produzir e viver de dança no Brasil. O argumento desta pesquisa é ao mesmo tempo político e aventuresco e é o trabalho onde mais danço.
Chama-se A Seguir.
Agradeço aqui ao Leonilson as palavras e o entendimento, que é também a ousadia de autorizar-se contra parametros que não interessam mais.
“A obra é conseguir fazer.
A gente trabalha com o que tem. Se não é possível fazer alguma coisa, tem que fazer outra. É preciso respeitar isso.
Eu já disse que a obra não é tão importante quanto o aprendizado. É muito importante ir aprendendo com o que se faz.”
(Leonilson, 1992, p?)
Neste ano de 2014, ano de profundas transformações sociais e também de aridez no espaço, território e paisagem da cultura no Brasil, me detenho na performance Latino-Americanos à Procura de Um Lugar Neste Século, performance que existe ainda no meu coração e que se materializará junto à comunidade imigrante da cidade de Wuppertal, Alemanha, no segundo semestre. Eu vou lá e vou procurar lá o encontro com os que saíram daqui, e não sei o que virá.
A idéia desta performance é um arremesso.
Meu Corpo é Minha Política é um arremesso.
“Um arremesso começa sempre antes e só finda depois, como se cada arremesso comportasse dois sentidos.
Um que segue e não sabemos nunca se volta e outro que já segue voltando, uma dobra do sensível.
O futuro desse gesto é seu eterno retorno, sua variação por acúmulo.
É preciso pensar uma dramaturgia do arremesso, de como jogar as coisas, de como se jogar nas coisas, de como jogar junto…”
Alexandre Veras
Por fim, daqui, dedo no teclado, quase silencioso cair da tarde nesta cidade que desafia qualquer cidadão (e/ou artista) a permanecer atravessando esta transformadora e predatória pré copa do mundo, ao mesmo tempo que você lê este texto, do seu aqui agora, do meio dos seus desafios e invenções para prosseguir em suas escolhas, aceno com o oferecimento deste relato pessoal pessoal pessoal que guarda riquezas, desafios, histórias, encontros e muitas e inesquecíveis pessoas, colaboradores que fizeram tudo isto possível: Daniela Mattos, Alexandre Sá, Marcio MM Meirelles, Charles Feitosa, Mia Haugland Habib, Marcio Shimabukuro, Marianne Baillot, Min Kyoung Lee, Sille Dons Heltoft, Hanna Barfod, Pernille Holden, Anne Sofie Norn, Monteserrat Payró, Flavia Meireles, Sylvia Barreto, Orlando Cani, Ana Paula Albé, Andrea Bardawil, Gustavo Schettino, Marcelle Sampaio, Calixto Neto, Flávia Lopes, Angelina Mello, Junior Santana, Roberto Unterladstaetter, Marcia Zanelatto, Juliano Gomes, Renato Machado, Sertãozinho/Paraíba, minha inestimável família e Marcus Vinicius (in memoriam).
Micheline Torres é bailarina, coreógrafa e performer, estudou Artes Cênicas na UNIRIO e Filosofia na UFRJ. Trabalhou por 12 anos como bailarina e assistente da Lia Rodrigues Companhia de Danças. Desde 2000 desenvolve trabalhos próprios situados entre a dança contemporânea, a performance e as artes visuais. É integrante do coletivo internacional Sweet&Tender Collaborations.